09/05/2024 - 17:03 | última atualização em 09/05/2024 - 17:22

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Artigo: Tangendo o nosso badalo: contra a criminalização da advocacia, por mais justiça e mais democracia

Ana Tereza Basilio e Rafael Borges*





Haver sido proclamada “indispensável à administração da justiça” (art. 133, CR/88) com garantias expressas de inviolabilidade (art. 7o, Lei 8.906/94) não garantiu vida tranquila à advocacia brasileira no período que sucedeu a redemocratização. Apesar de sua importância inquestionável nos processos históricos de superação do arbítrio e do longo inverno autoritário vivido pelo Brasil na segunda metade do século passado, Advogadas e Advogados continuam experimentando reminiscências antidemocráticas, perseguições, rebaixamento da classe e outros expedientes que, apontados contra nós, desidratam o Estado de Direito e a própria cidadania.

A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), imbuída de missão tão nobre quanto desafiadora, vem empreendendo esforços notáveis em linha com a dignificação de nossa profissão e o fortalecimento da democracia. Não basta. Os direitos e as garantias individuais da Constituição da República de 1988, os direitos sociais, as liberdades, o acesso à justiça e inúmeros outros primados do Brasil redemocratizado somente estarão em condições de se concretizarem na medida em que o exercício da representação mandatada — essa função nobre e essencial compartilhada por advogados e agentes políticos — não for alvo de ataques deliberados ou mesmo da omissão negligente das estruturas de poder. A criminalização sistemática do exercício da advocacia é inimiga das liberdades e da democracia e revela-se como estratégia vindicativa ou instrumental ao exercício ilegal do poder punitivo. 

O resgate histórico do compromisso da advocacia com a República brasileira e o texto constitucional vigente não é meramente laudatório. Como bem advertiu Bloch, outra vítima do autoritarismo, a “história é a ciência dos homens no tempo” , sendo-nos impossível compreender os avanços do país excluindo de sua narrativa o empenho e a transversalidade de Advogados(as) potentes, que fizeram do seu discurso ferramenta de intervenção efetiva; ora atuando em casos concretos e específicos, na defesa cotidiana de indivíduos e coletivos, ora emprestando suas vozes a causas políticas e transformadoras. A ambos os exemplos se dedicaram Luiz Gama, Esperança Garcia, Rui Barbosa, Myrthes Gomes de Campos, Sobral Pinto e Evandro Lins e Silva, cujas histórias inspiraram gerações inteiras de Advogados(as) e operadores do Direito em geral, notadamente aqueles que compreendem o sistema de Justiça na sua dimensão mais humana e acolhedora. São todos exemplos vívidos de resistência corajosa e destemida, que ofereceram sua energia vital e saber jurídico à defesa intransigente da liberdade — “essa palavra/ que o sonho humano alimenta,/ que não há ninguém que explique/ e ninguém que não entenda” —, vez ou outra até com certo lirismo, como Luiz Gama satirizou: “E que os homens poderosos/ D’esta arenga receosos/ Hão de chamar-me tarelo/ Bode, negro, Mongibelo/ Porém eu que não me abalo/ Vou tangendo o meu badalo/ Com repique impertinente/ Pondo a trote muita gente”. Intransigência, impertinência e postura inabalável são qualidades dos Advogados(as) que não se curvaram ao arbítrio, mesmo quando a violência parece a todos invencível, pavimentando a longa estrada que ainda há de desembocar numa sociedade mais livre e justa. Até lá nós vamos tanger o nosso badalo.

Ainda permeando o cotidiano brasileiro, as reminiscências antidemocráticas estão hoje nos níveis intoleráveis de violência, especialmente daquela praticada por agentes públicos, na manipulação de instituições de Estado para finalidades político-eleitorais, na deformação de tais instituições e na policização — episódica, porém preocupante — dos órgãos de controle. Quer seja como vítima direta, quer seja como dique de resistência, a advocacia está presente em todas as contendas que opõem o Estado de Direito ao estado de polícia. E nos é possível afirmar, sem falsa modéstia, a contribuição decisiva da classe em todas as ocasiões de vitória do primeiro sobre o segundo.

A tensão permanente entre a legalidade e o arbítrio conclama Advogados(as) à vigilância ativa e permanente. Dessa interlocução intensa e por vezes perturbadora com as estruturas de poder nascem demandas frequentes de contrapoder. Criminaliza-se a resistência da advocacia e/ou ferem-se às nossas prerrogativas porque o exercício ousado do contrapoder, para o qual somos habitualmente mandatados, deslegitima violências institucionais, revela parcialidades e desnuda intenções anti republicanas. A advocacia que não chancela as arbitrariedades, antes disso, a elas endereça combate e enfrentamento, não interessa às estruturas de poder formatadas para perpetuar desigualdades jurídicas. O ataque aos Advogados(as) e a inobservância de suas prerrogativas – que visam à proteção, ao fim e ao cabo, da sociedade – são funcionais a quaisquer projetos autoritários de gestão da coisa pública, em quaisquer dos três poderes. Enfraquecer a interlocução qualificada daquela voz que resiste e que brada por justiça é o caminho mais curto para neutralizar a dialética e prestigiar o pensamento único. 

Onde há prestígio ao pensamento único não existe espaço para o contraditório e a ampla defesa, essas pedras que a advocacia joga nos caminhos do despotismo. 

Assim, incumbiu à valentia genial de Luiz Gama e Esperança Garcia questionar com letras a talento jurídico sistemas de opressão cruéis e sanguinários, abalando estruturas de um Estado idealizado na perspectiva de explorar corpos pretos, fazendo-os combustível de uma engrenagem que moía gente para produzir commodities. Incumbiu à Myrthes Gomes de Campos questionar a “virilidade” dos espaços da própria advocacia e do Poder Judiciário, estabelecendo a autonomia da mulher como realidade inexorável. Incumbiu em grande medida à natureza inquieta da advocacia, tão bem representada por Rui, Evandro e Sobral, que as exerceram nos tribunais civis e militares, na produção acadêmica e também em manifestações populares, denunciar os horrores das ditaduras, sem prejuízo de consequências pessoais por todos conhecidas. E claro que essa pequena lista não se pretende exaustiva, bem como ainda não se exauriu completamente o tempo dos arroubos autoritários e dos abusos de poder.

O contato permanente com os três poderes, com a sociedade civil, a predisposição para o diálogo, o reconhecimento popular, as campanhas cívicas incansáveis e todos os esforços empreendidos pela OAB, desde sua fundação e muito mais intensamente após a redemocratização, no sentido de atribuir prevalência à legalidade e ao Estado de Direito não tem sido suficientes. Investidas contra a advocacia sempre transcenderão às pessoas dos advogados e avolumam-se, apesar dos esforços, episódios de rebaixamento da classe, desprestígio social, violação às prerrogativas, limitações indevidas ao exercício do direito de defesa, desqualificação profissional e confusão entre advogados e clientes, esta última alimentada por setores da mídia mal informada.

Resistir é dever da advocacia e não exclusivamente por suas prerrogativas. Fomentar hierarquia prática entre ocupantes de cargos públicos e advogados milita contra a cidadania e agiganta ainda mais o estado em sua dimensão opressora, aquela que opera as engrenagens das restrições a direitos e impõe limites ao regime das liberdades. Impedir ou dificultar acesso aos autos, criar obstáculos para audiências com autoridades, reduzir tempo de sustentação oral, atrasar injustificadamente o início de atos judiciais, prolongar a tramitação dos processos, manter linhas decisórias sabidamente equivocadas — do ponto de vista de qualquer concepção de Direito e de Justiça — e restringir a produção da prova, dentre outros, são ações que, embora mirem na advocacia, acertam em cheio no jurisdicionado. Inerente à advocacia, tanto quanto à política eleitoral, o poder/dever de representar seu cliente potencializa os efeitos dessas ações e omissões, uma vez que incidentes sobre o regular exercício de uma atividade profissional e sobre a esfera de direitos materiais de cidadãos, quase sempre alheios às disputas institucionais. 

As dificuldades de gerir o orçamento público brasileiro, as demandas de uma nação continental, nossas desigualdades históricas, pretensões de controle social da pobreza e opções políticas de duvidosa inteligência moldaram um cotidiano altamente judicializado. Juízes, promotores, delegados, escrivães e auditores visitam desde a briga de vizinhos até a aquisição de um medicamento de alto custo pelo Sistema Único de Saúde (SUS), passando pelo bullying escolar, a regulação do trânsito nas cidades e a definição de políticas nacionais de desenvolvimento; apenas para ficar em alguns exemplos. Nesse cenário de judicialização, indesejado em níveis tão intensos, a advocacia exerce um papel de mediação fundamental: Advogadas e Advogados são a chave de acesso da cidadania ao sistema de justiça. Medeiam conflitos, traduzem demandas, reclamam, suplicam por liberdade, identificam nulidades, dão contornos a circunstâncias complexas etc. Ao provocar o Estado, ainda que a pretexto de enquadrar e apreciar problemas individuais ou problemas coletivos bem demarcados, a advocacia reafirma nossa (recente) tradição democrática e legitima as engrenagens não-violentas de solução de conflitos. 

Prescindir de Advogados(as) constitui medida eficaz apenas para esvaziar direitos, negar garantias e recrudescer o viés repressor do estado brasileiro.

Criminalizar esse poder/dever de representação, como visto em cenas deploráveis de nossa história contemporânea, atende a interesses tortos, escusos e disfarçados. Usam-se as estruturas regulares dos poderes constituídos e evocam-se dispositivos legais vigentes. Fazem-no tortuosa, escusa e disfarçadamente porque falseiam realidades, confundem a figura do advogado com o seu cliente e submetem afirmações estatais a projetos de natureza político-eleitoral. O movimento que contamina o caso judicial, artificializando narrativas em prol de disputas próprias de outra cena, é o mesmo que sacrifica e rebaixa a política. Reduzir a “voz que pronuncia o Direito perante o Tribunal” à condição de criminoso ou mesmo investigado, mormente sob ausência retumbante de justa causa, importa na desqualificação completa da Defesa, reduzida a uma posição de acumpliciamento ou coautoria. 

Não se quer, e tampouco seria plausível cogitar que advogados(as) gozassem de imunidade absoluta pelos atos que praticam na representação de seus clientes. A disciplina da imunidade profissional, embora decotada com tesoura afiada pelo Supremo Tribunal Federal (ADI 1.127-8), parece adequada e satisfatória. O problema não está no arcabouço normativo, mas em práticas alérgicas ao Estado Democrático de Direito. Dos operadores do sistema de justiça a advocacia espera compromisso público, imparcialidade, eficiência e cortesia. A dialética presente nos processos judiciais não antagoniza seus atores na vida civil cotidiana. Esforços criminalizantes sem amparo na realidade concreta ou produzidos a partir de olhares viciados corrompem a noção de República, promovem o caos social, robustecem o Estado de polícia e nos afastam do ideário constitucional. 

No Estado de Direito, o exercício do poder punitivo, de inegável dimensão política, exige controles efetivos, sem os quais todas as estruturas de poder se transformam em ferramentas de arbitrariedade. Advogados(as) criminalizados à míngua de provas e indícios e, pois, gravemente limitados na sua capacidade de atuação profissional, fomentam perigosos desequilíbrios institucionais, em flerte permanente com regimes e governos de baixíssima densidade democrática. A Constituição da República de 1988 anotou tratar-se a advocacia de atividade essencial e inviolável, porque seu texto projeta um Estado nacional de prevalência das liberdades democráticas, redução das desigualdades sociais e participação ativa dos cidadãos na vida pública. Seria essa ambição incompatível com um país que reduzisse o direito de representação e o acesso à Justiça à mera formalidade ou que calasse as vozes da resistência e do contraponto.

*Ana Tereza Basilio, vice-presidente da OABRJ, e Rafael Borges, presidente da Comissão de Prerrrogativas da OABRJ. Artigo publicado no site da revista Justiça & Cidadania

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