Sabemos todos que os poderes constituídos do Estado possuem um alcance e um limite preciso, delimitados na Constituição da República. Esse necessário e cardeal limite à atuação de qualquer poder estatal é fator sine qua non para o implemento e para a sobrevivência de qualquer Democracia. Nesse sentido, faz-se da maior importância um sistema eficaz de controles.

O sistema de freios e contrapesos, recepcionado da teoria estadunidense dos 'checks and balances', assentou no direito brasileiro a necessidade de implemento de controles recíprocos entre os poderes do estado, com fins de se evitar um indesejável quadro de abuso do poder provocado pela invasão desmesurada de um poder na esfera de competência de outro poder.

Entretanto, a sociedade brasileira assiste hoje, com preocupação sensível, a um novo figurino no papel desempenhado pelo Poder Judiciário em face da onda crescente da judicialização que vem afetando seu próprio sistema jurídico, acirrando intensamente as relações entre Judiciário e o Parlamento, criminalizando a Política e até a Advocacia.

Em momentos de crise, como vivemos nos últimos tempos, assistimos uma hipertrofia do Poder Executivo, uma erosão do Legislativo e, capitaneando o revés institucional, a colonização da Política pelo Poder Judiciário, transformando os magistrados em julgadores da conveniência e da interpretação, assim como da legitimidade das decisões estratégicas fundamentais da Política, universo esse pertencente aos políticos pelo voto popular.

Essa politização do Poder Judiciário tem se revelado maléfica à República, notadamente pela assumpção pública de posicionamento político dos magistrados, "inclusive o que lhes é proibido pelo estatuto da Magistratura”. 

A separação de poderes prevista na Constituição da República encontra-se espatifada, pois vemos juízes e tribunais fazendo o que bem entendem, não mais vinculando suas decisões às claras regras constitucionais, fulcrando-se na extrema incerteza da avaliação principiológica, alicerçada na Moral e não no Direito, permitindo que os magistrados decidam “conforme suas consciências” e não conforme os ditames e corolários da Constituição Brasileira e das leis.

Nas relações contemporâneas entre Direito e Política, o Direito estabelece as regras do jogo, de modo a configurar, como nos ensina Luigi Ferrajoli, a configuração das esferas jurídico-políticas do “decidível” e do “indecidível”, que é a dimensão substancial das garantias, hoje tão esquecidas, em especial, pelo próprio Poder Judiciário. Como, afinal, controlar o exercício legítimo de um processo, sobretudo os políticos, se a imputação desconhece os limites da legalidade material?

Torna-se irreal a pretensão de Luigi Ferrajoli de excluir do universo do decidível situações jurídicas de tutela de direitos fundamentais, pois a proteção ao princípio democrático, a proteção às regras do jogo, vem sendo paulatinamente substituída pelo exercício abusivo do poder.

É importante salientar que a análise dessa problemática implica necessariamente na identificação entre o momento da legislação e o momento da jurisdição, afastando-se as teses defensoras de um ativismo judicial que confere ao magistrado-intérprete uma competência elástica, subjetivizada, e que alarga o balizamento da interpretação para ir até mesmo além do que a Constituição estabeleceu e, por vezes, manifestando-se até contrariamente ao que dita a Carta Magna Brasileira como estamos presenciando na matéria penal. Até mesmo notáveis representantes do pensamento moralista, como é o caso de Dworkin, revelam o perigo do credo ativista.

Contudo, observa-se hoje, no Brasil, que o perfil comportamental do Poder Judiciário e o modelo de constitucionalismo eleito pelos intérpretes juízes acolhem a defesa do ativismo judicial. O fato é que isso não pode servir para uma autorização em branco, a fim de que os membros do Poder Judiciário passem a fazer Política a partir de seus julgados fulcrados em posicionamentos isolados construídos a partir do legado axiológico do intérprete julgador, como se seus membros fossem os únicos representantes da Democracia no Brasil, falaciosamente legitimados a alterarem a legislação e até a própria Constituição, como com tanta ousadia temos visto acontecer. E as redes sociais provam esse comportamento pois as gerações mais novas não estão tendo a cautela e o comedimento necessários ao cargo que ocupam.

Ao contrário, no melhor esteio do constitucionalismo democrático, espera-se que, nas situações de inércia dos demais poderes, a atividade jurisdicional possa dar fomento aos mandamentos constitucionais, impulsionando o Direito sem, contudo, criar Direito, sem legislar criando o que a Constituição não criou, pois na ideia de Constitucionalismo não temos tão somente o papel da garantia, mas também a noção do controle e do limite aos poderes, inclusive do próprio Judiciário.

A noção de supremacia constitucional não pode ter como concorrente a de supremacia judicial. O princípio do Rule of Law, conquista advinda desde a Magna Charta Libertatum, de 1215, submete o império da lei a todos, inclusive aos julgadores, que também podem ser controlados.

Desse modo, limitar o poder judicial a partir da rejeição à discricionariedade exacerbada dos juízes perfaz-se como uma exigência pautada na responsabilidade política deles, para parafrasearmos Ronald Dworkin, que sustenta a tese de que os hermeneutas devem estar condicionados a um todo sistêmico que é o Direito. Há uma diferença entre decisão e escolha, como nos ensina o mestre Lênio Streck, em sua obra Lições de Crítica Hermenêutica do Direito, pois o juiz/intérprete não é constitucionalmente autorizado a apresentar solução entre esses vetores interpretativos baseando-se em axiomas subjetivos. 

E é fato que o Poder Judiciário tem transmutado a sua atuação de modo a criar direito novo para o cidadão, transformando-se indevidamente em uma arena política que deve pertencer ao Poder Legislativo, haja vista algumas decisões paradigmáticas do STF atentatórias à Constituição.

Essa é a marca diferenciadora da atuação tradicional de outrora e o novo comportamento do Poder Judiciário. E com um agravante superlativamente sério, pois malgrado tenham os adeptos da judicialização o modelo americano como paradigma, aqui, os cargos de magistratura são todos vitalícios, de modo que, além da séria carência de legitimidade que os juízes possuem para o exercício de funções legiferantes, que não lhes pertencem, os membros do Poder Judiciário não estão sujeitos à salutar alternância do poder, assim como estão os políticos, por meio das eleições.

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