Recentemente o Brasil foi assombrado com um inusitado pronunciamento do então secretário especial de Cultura publicando um vídeo com frases extraídas de um discurso de Joseph Goebbels, ministro da propaganda do ditador Adolf Hitler. Com o clamor da sociedade, o secretário foi corretamente exonerado do cargo que exercia.

Mas é importante asseverar que tal incidente não foi um fato isolado. As ideologias lesivas aos direitos fundamentais vêm perigosamente ganhando esteio não só no Brasil como em muitos outros países.

Essa estética autoritária, com ideais extremistas e discursos de imensa violência, já permeiam a nossa sociedade contra negros, indígenas, homossexuais, mulheres, pessoas com necessidades especiais, moradores de comunidades periféricas e toda sorte de grupos vulneráveis que desagradam a dita supremacia dos que se consideram melhores do que os outros. Travestida de “opinião pessoal”, “liberdade de expressão”, “superação do politicamente correto”.

A lei brasileira é clara. Apologia ao nazismo é crime, e prevê multa e cadeia para quem fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propagandas que utilizem a cruz suástica ou gamada para fins de divulgação do nazismo. Mas tais incidentes têm se tornado corriqueiros em determinados estados da federação, contabilizando-se hoje, no Brasil, mais de trezentas células nazistas, situação que está se agravando porque o Poder Judiciário dessas localidades não tem tratado o assunto com a devida seriedade, escolhendo, por vezes, caminhos hermenêuticos mais complacentes no enfrentamento da problemática, tais como considerá-los como condutas de menor potencial ofensivo, ignorando as consequências advindas da malignidade de processos históricos totalitários, como os campos de concentração de Auschwitz-Birkenau, o maior dos estabelecidos durante o regime nazista, ou o campo Gulag de Kengir, onde foram aprisionadas as vítimas das perseguições do stalinismo.

E o problema extrapola as fronteiras de nosso país, configurando-se, hoje, como uma grave mazela social a ser enfrentada pela comunidade jurídica mundial.  A questão é tão grave que no Fórum Econômico de Davos, encerrado semana passada, na Suíça, o bilionário e filantropo George Soros anunciou a criação de uma rede acadêmica contra “ditadores em gestação”, cujo surgimento na cena política hodierna têm provocado tantos retrocessos civilizatórios. Tal iniciativa, vale-se dizer, demonstra que a situação é grave e diferenciada, e não se perfaz como uma rotineira disputa, salutar e natural, entre grupos ideológicos divergentes em uma democracia, mas de um eclodir nefasto de ideologias lesivas aos direitos fundamentais e às conquistas civilizatórias, cujo combate deve unir a todos os defensores do credo democrático, sublimando-se as divergências políticas que nesse momento tão gravoso para os democratas devem ser postas de lado.

Esses movimentos, malgrado intencionem o exclusivismo político, não podem desprezar uma sociedade engajada, ainda que manipulada por uma propaganda ideológica geradora de alienação. Dessa forma, os que sentem a conjuntura favorável para o alcance de suas intolerâncias macabras, desejam impulsionar a ideia falaciosa de uma sociedade “fora de controle”, para apontarem soluções políticas atentatórias ao credo democrático na sua empreitada de dominação. 

Diante dessa realidade, a competição, ou seja, uma estrutura competitiva de mercado, deve ser defendida e torna-se um vetor importante como instrumento de proteção e vantagens para o consumidor político, para o cidadão eleitor. A competitividade é um estado particular do jogo político. Trata-se de uma das regras do jogo eleitoral democrático. Portanto, a sua ausência ou a tentativa de impor, notadamente pela via cultural, uma determinada ideologia de Estado em face dos demais macula o esforço civilizatório em prol do credo democrático.

Uma conjuntura ditatorial, na qual os insatisfeitos não pudessem se pronunciar nem através da construção de uma oposição política, por uma ótica competitiva, nem sequer manifestar o seu dissenso em relação ao governo, em função dos perigos resultantes de qualquer enfrentamento a um status quo eivado de arbítrio político, não é algo desejável à Democracia.

Mesmo tomando por paradigma uma estrutura competitiva como a do Brasil, os defensores dessas correntes de comportamento criminoso, fortemente ideologizados, tentam a todo momento se impor pela força, procurando demonstrar, notadamente através da massificação da propaganda, as vantagens atribuídas à participação nesses nichos políticos.

A “era das massas”, intensificada pelo protagonismo de grupos outrora invisíveis nas redes sociais, acarretou o declínio das elites tradicionais. Através de organizações juvenis, hierarquia dos agentes, mecanismos de adesão controlada, apadrinhamento e desafios vencidos, esses movimentos constituíram novos quadros, instruindo-os para o cumprimento de suas tarefas políticas, enquadrando-os de modo permanente, dando-lhes estrutura e hierarquia. Dessa forma, os líderes políticos são ungidos tendo como missão maior não apenas administrar seus grupos, mas também garantir o dinamismo dessas ações e principalmente assegurar meios eficazes de verificação da fidelidade dos seus adeptos.  Por isso, os representantes desses grupos podem estar em qualquer parte do Estado e da sociedade, vigiando plenamente a tudo e a todos, e estarão, nessa conjuntura, presentes desde as administrações, sindicatos, cooperativas, associações culturais, comitês de rua e quaisquer outras modalidades associativas.

A ascensão dessas células nazistas dá-se paralelamente com o declínio da democracia. A fragilidade democrática pode gerar a deflagração de uma conjuntura autoritária ou até mesmo totalitária. A transformação de democracias frágeis em ditaduras explícitas, ou mesmo as veladas, ocorre a partir da adição dos seguintes elementos: a desintegração da ordem social, a ruptura da disciplina social, a debilidade dos líderes políticos comprometidos com a democracia, a fragilidade partidária provocada pelo multipartidarismo exacerbado e, por fim, com o aumento do processo de alienação do cidadão.

A problemática do totalitarismo e, por via indireta, a sedimentação de ideologias lesivas aos direitos fundamentais foram analisadas pelos cientistas políticos por perspectivas distintas, a saber: uma primeira corrente analisou o perigo do totalitarismo como um acidente político superado; outra corrente defende que o totalitarismo seja uma virtualidade permanente a ser vigiada e enfrentada, corrente à qual nos alinhamos.

O totalitarismo afirma categoricamente a existência de uma única explicação da realidade: a recusa total de qualquer explicação diferente.  Para Arendt, o advento do totalitarismo resulta da modernidade pelas seguintes razões: os movimentos totalitários dos anos trinta germinaram do fenômeno da massificação; a propaganda totalitária trabalhou num terreno previamente preparado, assumindo a forma de “previsão infalível”; o homem da era totalitária não era apenas um indivíduo isolado, mas desolado. A dominação totalitária alicerçou-se na desolação humana, na experiência de uma absoluta não participação no mundo. 

Desse modo, ao tecer considerações sobre a natureza e as causas da violência no universo político, Hannah Arendt sustenta que poder e violência sempre foram confundidos pela tradição do pensamento político. O poder foi alicerçado em paradigmas de mando e obediência, práticas bastante comuns quando impostas de modo distorcido pela conjuntura totalitária.  Nessa perspectiva macabra, as relações de poder se perfazem por relações de dominação e submissão.

Considerando-se que toda ação política é concebida a partir de um processo de fabricação que implica a projeção instrumental entre meios e fins, Arendt adverte-nos acerca da crença usual, no universo político, de que o fim corre o perigo de ser suplantado pelos meios que ele justifica e que são necessários para alcançá-lo. Por isso, Hannah Arendt provoca uma ruptura em tal mito, asseverando que a glorificação contemporânea da violência não é nada mais do que “a expressão dessa atitude técnica em relação à Política”, fruto do legado platônico e recepcionada na era moderna através da certeza de que “só podemos conhecer aquilo que nós mesmos fizemos”.

Admitindo que pensar o poder em termos de comando e obediência seja algo indubitavelmente tentador, Arendt demonstra que o poder jamais poderá ser algo único ou exclusivo, não pertencendo a nenhum paradigma de monopólio de uma pessoa ou de um grupo.

A marca mais transparente da destruição do poder político pela violência dá-se com o “isolamento” dos homens e a consequente derrocada da esfera pública enquanto espaço democrático de aparição do pluralismo de opiniões e, por via oblíqua, do pluralismo partidário. 

Nesse momento, pode-se com rigor afirmar que violência usurpa o lugar do poder. Mas interessante ressaltar que o aumento da violência evolui como um signo constitucional do enfraquecimento ou da perda do poder político e vice-versa, por uma simples razão: “poder e violência são opostos; onde um domina absolutamente, o outro está ausente” e “a violência não é e não deve ser a fonte do poder político”.

Malgrado estejamos em uma ambiência de pluralidade partidária, digamos que até excessiva, no Brasil, se considerarmos o quantitativo de agremiações partidárias existentes, essas reflexões se tornam necessárias na pauta de debates atual, visto que estamos entrando em uma rota de fragilidade democrática, com sensível falta de tolerância política e também do aceite de uma necessária diversidade ideológica que norteia qualquer democracia. E o totalitarismo começa, infelizmente, a encontrar berço nas sociedades quando se assiste paulatinamente à concretização da existência de uma única explicação da realidade a partir da recusa total de qualquer explicação diferente.

Oxalá estejamos longe disso no Brasil.

Os artigos publicados no site da OABRJ não refletem, necessariamente, a opinião da entidade.