27/02/2020 - 14:30 | última atualização em 27/02/2020 - 15:57 O furo da jornalista e a misoginia nacional atrás da porta Não é nenhuma novidade assistirmos, na sociedade brasileira, ao massacre diário que as mulheres sofrem no exercício de suas profissões, sobretudo nas classes sociais mais baixas e sem maiores instrumentos de blindagem e defesa. Mas o problema é geral e pode acontecer com qualquer mulher. Com a advocacia também não é diferente. É triste nos depararmos com a realidade de diferenciação de salários, tratamento e condições de trabalho das mulheres advogadas em muitos nichos laborais do mercado da advocacia. E a OAB tem sido vigilante nessas questões, sobretudo através da incansável perseverança das colegas conselheiras da OAB Mulher. Vivemos um momento delicado na sociedade brasileira, de grande retrocesso civilizatório e conquistas protetivas alcançadas pelas mulheres são vistas como indesejáveis aos retrógrados de plantão, revelando um crescente impulsionamento de misoginia nacional. A palavra significa ódio às mulheres e sua ascensão tem sido responsável por um grande número de crimes cometidos, desde agressões verbais (sobretudo no ambiente virtual) e físicas, ao feminicídio.Trata-se de um dospreconceitos mais antigos da humanidade, inferiorizando a mulher com naturalidade durante séculos e servindo de base para o pensamento ocidental, alicerçado em valores patriarcais. A necessária denúncia para a forma como a mulher e o feminino eram tratados na sociedade se deflagra somente em meados do século 20, através da corajosa militância das feministas (hoje outra palavra avilanada e propositalmente utilizada de forma errônea), notadamente profissionais que se destacaram em suas profissões rompendo obstáculos laborais e, nesse mister, temos o orgulho de dizer que lá estavam as advogadas e jornalistas brasileiras na trincheira dessa vanguarda. Os ataques às mulheres ganharam pujança, em nossa sociedade, com o anonimato, vedado pela Constituição da República de 1988, sendo um dos aspectos que mais contribui para a misoginia virtual na Internet, inclusive como ferramenta de ação política. Todos temos o direito assegurado pela Constituição Federal de expressarmos nossas ideias e convicções,desde que não ferindo o direito legítimo de terceiros. O discurso de ódio, com discriminação e exteriorização de pensamento, ocorre quando um indivíduo se utiliza desse direito para inferiorizar e discriminar terceiros baseado em suas características, como sexo, etnia, orientação sexual, religião.Com a Lei 13.642, de 3 de abril de 2018, a sociedade brasileira buscou combater quaisquer crimes praticados por meio da rede mundial de computadores que difundam conteúdo misógino, definido como aqueles que propagam o ódio ou a aversão às mulheres. A mais nova vítima de misoginia nacional foi a jornalista Patrícia Campos Mello, da Folha de São Paulo, que, no exercício da profissão, foi agredida,como são as mulheres de um modo geral, com ataques sexistas, desqualificando-a como profissional, primeiro por Hans River, depoente na CPI das Fake News, que, para não dar maiores esclarecimentos sobre o disparo ilegal de mensagens durante as eleições, preferiu proferir ataques de caráter misógino, violento e sexista à jornalista, insinuando que a profissional teria lhe ofertado favores sexuais em troca da informação. Tal atitude, digna do desprezo nacional, poderá lhe gerar inclusive prisão por mentir em depoimento. Essa acusação, destacou a deputada federal Lidice da Mata (PSB-BA), relatora da CPMI, revela uma campanha sistemática de agressão, de linchamento, de ameaças, inclusive de morte, a uma pessoa que apenas cumpre o exercício de sua profissão. Depois, de forma surpreendente, a jornalista continuou a ser atacada, no exercício da profissão, de modo covarde e vulgar, pelo chefe do Poder Executivo de nosso país, cujos constantes ataques aos profissionais jornalistas, sobretudo quando mulheres, são incompatíveis com os princípios da democracia liberal. E a medida democrática de um país depende da livre circulação de informações e da fiscalização das autoridades pelos cidadãos. As agressões cotidianas aos repórteres que buscam tão somente esclarecer os fatos em nome da sociedade são incompatíveis com o equilíbrio esperado de um representante eleito pela nação. Patrícia Campos Mello é uma trabalhadora e seu dever profissional é informar. Informar aos brasileiros. A necessidade de ser informado caracteriza-se como um anseio que acompanhou a humanidade através da sua história.Muitos séculos antes da Era Cristã, já existiam publicações referentes às administrações dos faraós egípcios. Em Roma, não obstante a tradição de divulgação oral das informações em lugares públicos, surgem, a partir da Lei das XII Tábuas, os chamados Acta Diurna, famosos manuscritos em pergaminho, distribuídos entre os barbeiros, com a finalidade de divulgar notícias de interesse geral. No Renascimento, com o indubitável crescimento da literatura, há uma maior expansão da informação, favorecida pela ambiência de intelectualidade instaurada pelos humanistas de época. Com a invenção da imprensa por Gutemberg, democratizou-se muito a informação, reduzindo seu status de privilégio, de uma casta de privilegiados, ainda hoje muitas vezes evidenciado. Pioneira na luta pela liberdade de informação, a imprensa britânica notabilizou-se ao enfrentar a Coroa, através da intervenção de Wilkes, diretor do North Briton, ao reproduzir pela primeira vez na história das democracias ocidentais, os debates do Parlamento, criticando os ministros da Coroa e o discurso do próprio Rei George III. Dessa forma, tornou-se bastião na história do direito de crítica dos negócios públicos, que nasce como um desdobramento natural do direito à informação, sendo uma necessidade de primeira grandeza para a manutenção de toda a sociedade que se apresente como democrática. Através do seu exercício, faz-se possível a defesa de direitos e interesses da comunidade. Destacam-se, também, como baluartes do reconhecimento do direito à informação, a França e os Estados Unidos da América. A Declaração de Direitos do Estado da Virgínia previa, no seu artigo 14, que “a liberdade de imprensa é um dos grandes baluartes da liberdade e não pode ser restringida jamais, salvo por governos despóticos”. Da mesma forma, o Bill of Rights(declaração de direitos que contém as dez primeiras emendas americanas, aprovadas em 1791) reza, em sua primeira emenda à Constituição Americana de 1787:"O Congresso não deverá fazer qualquer lei a respeito de um estabelecimento de religião, ou proibir o seu livre exercício; ou restringindo a liberdade de expressão, ou da imprensa; ou o direito das pessoas de se reunirem pacificamente, e de fazerem pedidos ao governo para que sejam feitas reparações de queixas". Na França, a famosa Déclaration des Droits de L’homme et du Citoyen estabeleceu em seu artigo 11:“A livre comunicação das ideias e das opiniões é um dos mais preciosos direitos do homem; todo cidadão pode, portanto, falar, escrever, imprimir livremente, respondendo, todavia, pelos abusos desta liberdade nos termos previstos na lei”. A liberdade de informação foi objeto de tutela de inúmeros documentos internacionais. A Declaração dos Direitos do Homem de 1948, responsável pela aclamação internacional de antigas demandas positivadas com statusde direitos humanos fundamentais, estabeleceu no seu artigo 19 o seguinte: “Todos os seres humanos têm direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras”. No Brasil, no período da ditadura que nos vitimou, de 1964 a 1985, o direito de acesso às informações públicas foi mais uma das garantias que o Estado autoritário cerceou, sendo fortalecida a cultura do sigilo, valendo a regra de que toda informação era imprescindível à segurança nacional. Com a Constituição Democrática de 1988 concebendo o Estado Democrático de Direito, elevou-se o direito de acesso à informação pública ao nível de direito fundamental, assegurando-se o direito de acesso à informação, e protegendo tanto o acesso às informações de interesse particular como as de interesse coletivo ou geral. O fato é que devemos lembrar que o totalitarismo, para parafrasearmos as elevadas lições do sempre mestre professor Celso Lafer, levou à ubiquidade da mentira a limites impensáveis pela tradição, o que acabou trazendo consequências para a experiência política contemporânea pós-totalitária. Com efeito, a manipulação ex parte principis da verdade factual, para obter o consenso ex parte populi, se viu multiplicada pelo uso da propaganda e pela força dos novos meios de comunicação, mesmo nos regimes democráticos. Foi por essa razão a preocupação “arendtiana” com o direito à informação exata e honesta, como alicerce fundamental para a preservação da verdade factual. É o que hoje vivemos, sobretudo com a ação propagadora de mentiras e desinformação realizada pelas milícias digitais. Hannah Arendt, em seu curso Basic Moral Propositions, ministrado na Universidade de Chicago em 1966, ressalta o quanto os regimes totalitários, como os de Hitler e Stalin, desrespeitavam a proibição do falso testemunho, um dos preceitos básicos do Velho Testamento. “Não espalharás notícias falsas, nem darás a mão ao ímpio para seres testemunha de injustiça”. Êxodo (23,1). Os ditadores da contemporaneidade agem do mesmo modo. Não podemos nos omitir diante do autoritarismo. Como muito bem asseverou o nosso presidente nacional da OAB, Dr. Felipe Santa Cruz: "É obrigação dos democratas uma reação forte. Concordar ou se omitir é garantir ao nosso país a paz dos cemitérios, da abdicação e da rendição. Nosso dever é o confronto com os que ameaçam a cidadela das liberdades, da legalidade e da democracia que juramos sempre defender, a qualquer preço". Se a timidez e a prudência do medo estiverem em toda parte, a coragem não estará em lugar algum. A OAB estará sempre com a liberdade de imprensa e em especial com a profissional, mulher, mãe, vilmente atacada de forma injusta e desproporcional por quem deveria guardar o decoro do cargo que ocupa. Somos todos e todas Patrícia Campos Mello. Os artigos publicados no site da OAB/RJ não refletem, necessariamente, a opinião da entidade.