29/09/2008 - 16:06

COMPARTILHE

Artigo: '20 anos da Constituição democrática' - Carlos Roberto Siqueira Castro

20 anos da Constituição democrática


Carlos Roberto Siqueira Castro 

Todos sabemos o quanto a Constituição democrática de 1988 tem sido, desde sua promulgação, ameaçada pelo revanchismo das elites reacionárias. Estas jamais pouparam argumentos falaciosos para desacreditar a Carta Política que comemora 20 anos e apressar uma revisão constitucional e sucessivas emendas que lhes restaurem os privilégios castiços e interrompa a ascenção do povo brasileiro aos predicados da cidadania e dos direitos humanos. Nunca se atacou tanto um diploma constitucional reponsável pela pacificação nacional e restauração do convívio democrático em nosso país.

Contra a Constituição de 1988 levantaram-se sempre alguns dos mais funestos personagens do período ditatorial, a vociferar seu desdém para com as causas populares e os legítimos interesses da soberania nacional. Trata-se, enfim, dos reacionários de sempre, ultimamente travestidos de neo-liberais e de arautos da modernidade, que há duas décadas sustentaram a inconveniência de uma Assembléia Nacional Constituinte corregedora das trapaças institucionais que perpetraram e, sobretudo, que resgatasse os malefícios inflingidos aos direitos humanos e ao povo trabalhador na fase obscurantista da vida brasileira pós 64.

Desses algozes da Constituição podemos dizer, com Camile Claudel: "A imaginação, o sentimento, o novo, o imprevisto que surge do espírito desenvolvido, é proibido para eles, cabeças fechadas, cérebros obtusos, eternamente negados à luz". Infelizmente, esses partisans do arbítrio e do elitismo em fim de linha possuem lugar cativo em certos setores da mídia cartelizada, que acolhem e não raro se associam aos seus apetites de poder e de lucro fácil. É isto o bastante para disseminar a desinformação e a dúvida do grande público acerca das virtudes e do saudável roteiro de transformações sociais descortinado pela Constituição do Brasil.

Lembro-me, para exemplificar a insanidade e o preconceito de tantos detratores da Constituição, que uma das críticas mais comumente ouvidas durante e após o encerramento do trabalho constituinte pautava-se na extensão analítica do texto constitucional, contando com 245 artigos na parte permanente e com 70 artigos no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.

Essa intolerância cúmplice de interesses inconfessáveis recebeu à época a resposta lúcida e cortante de Osny Duarte Pereira, ao sustentar: "As pequenas constituições de países industrializados não são duráveis pelo fato de serem sintéticas, mas pela circunstância de regularem a existência de povos de economia já estratificada, sem uma distribuição insultante de riquezas como ocorre com a dos países periféricos. O atendimento à maior parte da classe trabalhadora em suas necessidades fundamentais, nos países ricos, que recolhem também renda dos países pobres, possibilita um relacionamento pacífico e pouco reivindicativo. Daí uma constituição estável.

O mesmo não ocorre em países como o Brasil, em que a estrutura do Estado é tremendamente injusta e a insatisfação do povo gera um equilíbrio precário e sujeito a transformações sempre almejadas.... A nação encontra-se em período de transição de um regime autoritário, ainda presente, para um regime que se espera democrático e impregnado de justiça social. Essas esperanças devem estar consignadas no texto constitucional, para que não sejam esquecidas e abolidas, pela inércia e pelo cansaço de tanto lutar" (no volume Constituinte – Anteprojeto da Comissão Afonso Arinos, Ed. Universidade de Brasília, 1987, pág. 24).

Creio que devamos bem compreender a importância histórica da Constituição de 1988 para o processo de transição democrática em nosso País. Após 20 anos do regime autoritário que caracterizou o "governo dos generais" iniciado com o golpe militar no ano de 1964, a sociedade brasileira não mais escondia seu desprezo e inconformismo para com a nefanda experiência da ditadura.

A par do imperativo histórico da anistia ampla, geral e irrestrita que resgatasse todos os compatriotas que amargaram no exílio, na clandestinidade ou no simples banimento social e político os horrores e a truculência ditatorial, generalizava-se, de um lado, no início dos anos 80, a reivindicação por eleições diretas para Presidente da República que pusesse fim ao seriado de nomeações de presidentes decididas nos quartéis, de resto  homologadas por um Congresso Nacional subserviente em sua maioria.

De outro lado, as forças da resistência democrática - sediadas sobretudo no então único partido de oposição – o MDB - e em instituições de vanguarda intelectual e política, como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a Associação Brasileira de Imprensa (ABI), as universidades, os sindicatos e também em setores da Igreja progressista - pregavam a inadiável convocação de uma Assembléia Nacional Constituinte.

Esta era vista como única via de expressão popular legítima e capaz de encerrar o ciclo do barbarismo jurídico representado por dezenas de atos institucionais e complementares editados pelos governos militares que conspurcavam o ordenamento constitucional, com o propósito declarado de centralizar o poder governamental nas mãos do Executivo militarizado, de maneira a fragilizar a atuação do Poder Legislativo, a subtrair as garantias da Magistratura e a desfalcar as liberdades públicas e os direitos fundamentais do homem.

Só a Constituinte, livremente eleita pelo povo, estaria habilitada a reconstruir a comunidade nacional após duas décadas de arbítrio e de ressentimentos em face das autoridades golpistas escudadas na arrogância das baionetas. Não foi mera coincidência, portanto, que tanto as eleições presidenciais quanto a Constituinte sobreviessem praticamente juntas num espaço de dois anos.

Primeiramente, instalou-se a Assembléia Nacional Constituinte em 1° de fevereiro de 1987, convocada que fora pela Emenda Constitucional n° 26, promulgada pelo Congresso Nacional em 27 de novembro de 1985. Em seguida, e já por  determinação da nova Constituição do Brasil, esta finalmente promulgada em 5 de outubro de 1988, fez-se possível a realização do sufrágio direto para Presidente da República há tanto reclamado pelo povo brasileiro, que ocorreu em 15 de novembro de 1989, segundo o sistema de dois turnos estabelecido no art. 77 do novo estatuto constitucional, semelhante àquele previsto no art. 7 da Constituição francesa de 1958.

É certo, todavia, que o ato convocatório da Constituinte (a Emenda Constitucional n° 26/85) não cuidou de instalar uma Assembléia autônoma e unicamente dedicada à tarefa monumental de editar e promulgar a nova Constituição. Em realidade, elegeu-se um novo Congresso-Nacional integrado por 487 Deputados e 72 Senadores, nos moldes da tradição bicameral brasileira herdada no constitucionalismo republicano norte-americano.

Tal circunstância infortunada provocou, por certo, o refugo da candidatura de inúmeras personalidades expoentes do pensamento democrático nacional, a exemplo de Barbosa Lima Sobrinho e Raymundo Faoro, que não se animaram a disputar um mandato eletivo com políticos profissionais, tanto mais que o êxito de uma postulação eleitoral num sistema partidário rigidamente proporcional exigia, além da concorrida indicação dos poucos partidos historicamente respeitáveis, a disponibilidade de vultosos recursos financeiros. Por isso, a Constituinte, apenas num primeiro momento, refletiu mais a representação da classe política tradicional do que propriamente a capilaridade extensiva da sociedade civil.

Sua composição exibiu em grande parte parlamentares já detentores de mandato eletivo ou egressos da militância político-partidária nas últimas décadas, ora de tendência conservadora, ora de inclinação progressista, mas de um modo geral comprometidos com o esquema da transição constitucional lenta e gradual projetada pelos arquitetos do declínio da ditadura, o que vale dizer, sem qualquer vocação para a ruptura drástica com o recente passado autoritário. Era, enfim, a Nova República cumprindo o seu papel de carruagem rumo ao governo civil e aos umbrais da democracia representativa.

Nada obstante, esse perfil ideológico temperado da Constituinte, onde predominou o chamado grupo do Centrão, cujos componentes tinham um pé no passado autoritário e outro em diversos degraus de um projeto utilitarista de sobrevivência política, os debates e as votações constituintes foram  bastante energizados e enriquecidos com a agitação crítica e idealista provocada pelas bancadas progressistas da esquerda democrática instaladas notadamente em setores do PMDB de Ulysses Guimarães, no PDT de Leonel Brizola, no PT de Lula, como também no PS, no PCB, no PCB e, a partir de junho de 1988, no PSDB, então criado, que atuaram como bloco parlamentar e alcançaram para a sociedade brasileira e para o povo trabalhador as mais retumbantes vitórias no Plenário daquela memorável assembléia de reconstrução da nação.

Por outro lado, a intensa participação popular que envolveu o processo constituinte, desde a subscrição de emendas populares pelos mais diversos segmentos da sociedade civil até o assédio avassalador aos parlamentares dentro e fora do Congresso Nacional, traduziu fenômeno da psicologia social de certa maneira inédito em nossa formação político-cultural, que ganhou notoriedade na esteira das jubilosas manifestações populares em prol da realização das eleições diretas para Presidente da República - a contagiante campanha das "Diretas Já", que empolgou as ruas e praças de todo o País.

Pode-se afirmar que o entusiasmo participativo diante da Constituinte revogou a denúncia trágica de João Barbalho - de que a "República no Brasil não teve povo". De fato, na campanha das diretas e na Constituinte, a massa deu testemunho de seu vigor e maturidade, o que possibilitou um leque de alianças jamais visto em torno do desejo de mudança, embora fadado a desatar-se em favor das indispensáveis definições ideológicas e partidárias, uma vez esgotada a penosa caminhada para a restauração democrática. Em que pese a bem comportada transição para a democracia, é inegável que a alma nacional rejubilou-se com o rechaço ao regime de arbítrio. Se as representações da soberania popular apresentaram as apontadas imperfeições de origem, a sociedade em si mesma sublimou-se na paixão constituinte e no repúdio uníssono às práticas nefandas do autoritarismo. Pode-se afirmar, nesse sentido, que, no cotejo entre o Congresso Constituinte e as instâncias primazes da sociedade civil, quem ganhou foi conjunto da nação.


A Constituição de 1988 não resultou, com efeito, sob o aspecto histórico-formal, de um desafio às lideranças políticas e aos estamentos elitistas hegemônicos que prevaleciam no aparelho de Estado e na organização privada da vida nacional. A bem dizer, a nova Carta Magna não foi precedida de um ato de ruptura histórica, a exemplo do que ocorrera com a primeira Constituição brasileira na fase imperial, em 1824, ou com a queda do império formalizada com a Carta Política inaugurante da era republicana em 1891, ou com a derrocada dá república oligárquica pelas armas da Aliança Liberal em 1930, ou, ainda, com a ruína do Estado Novo simbolizada com a Constituição de 1946, restauradora da claudicante democracia-liberal no Brasil.

Como típica Carta-compromisso, a atual Constituição encarnou excelentemente a síntese de nossas contradições e ideais de mudança. Dada a mescIa ideológica de seus autores, traduz o encontro das águas encapeladas entre as forças conservadoras e as aspirações mudancistas. Sua linguagem politicamente híbrida e que mistura dezenas de normas de princípio com centenas de preceitos analíticos, de teor não raro inconcluso, nem sempre  auto-aplicável e dependente da aprovação futura de dezenas de leis complementares e ordinárias, transformou o texto supremo num estimulante manancial exegético para a discussão do ideário brasileiro e de um projeto crítico de nação.

Inspirada nos mais consequentes postulados do humanismo solidarista em que radica a social democracia naquele ocaso do século XX, a nova Constituição retrata muito mais um elenco de direitos à esperança do que propriamente uma solução acabada de organização social e política para um país marcado por impenitentes contrastes classistas e regionais Em tal contexto, como adverte Francisco Weffort em obra sempre atual dedicada à democracia no Brasil, impõe-se ao Estado uma alternativa inadiável: cumpre promover o estabelecimento de uma comunidade nacional, o que implica na construção de uma democracia de massas; ou, então, optar pela exclusão das massas no processo de convivência política e, neste caso, por em risco a possibilidade de uma comunidade nacional desenvolvida (na obra "Qual democracia?", Ed. Cia das Letras, 1992, pág. 17).

A efetividade da Constituição e a concretização dessas esperanças foi confiada a final  às gerações políticas adventícias e às energias próprias de uma sociedade pródiga do sincretismo étnico e cultural,  detentora de riquezas e contradições incomparáveis e próprias dos trópicos – a "Roma Tropical", a que aludia o imortal Darcy Ribeiro.

Num balanço histórico, e em que pesem as marchas e contra-marchas do avanço civilizatório,  creio que umas e outra – instituições políticas e sociedade – fizeram um bom uso do estatuto supremo conquistado mercê de tanta luta republicana e ideais legítimos. Aí reside a sua virtude: o hibridismo ideológico, que caracteriza a tipologia das constituições mistas do pós-guerra,segundo a festejada classificação de Sanches Agesta, e que tomou consistente a rearrumação constitucional de um País que exibia e ainda exibe, a queimar a consciência de nossos compatriotas, focos de soberba riqueza em meio ao alastrante pauperismo da população.

Não tendo partido de um projeto preconcebido de Constituição, fosse ele elaborado pelo Executivo, pelo próprio Legislativo ou por alguma comissão de juristas proeminentes, a nova Carta Política foi receptiva de toda sorte de demandas da sociedade civil traumatizada por 20 anos de autoritarismo. Abriu-se o processo de feitura constitucional em 1º de fevereiro de 1987 com a apresentação e defesa das emendas populares, que contaram com pelo menos 30 (trinta) mil assinaturas e que desde logo depositaram na consciência dos deputados e senadores constituintes aspirações multiformes e legítimas da sociedade civil organizada.

Em seguida, nos termos do roteiro regimental, o processo de elaboração da nova Constituição prosseguiu com a constituição pelas lideranças partidárias de 24 (vinte e quatro) subcomissões temáticas, que entregariam seus anteprojetos a 8 (oito) comissões temáticas e estas encaminhariam seus anteprojetos à Comissão de Sistematização, presidida pelo saudoso  Senador Afonso Arinos De Mello Franco, que por sua vez ofertaria ao Plenário da Assembléia Nacional Constituinte, para discussão e votação final em dois turnos, o Projeto de Constituição do Brasil.

Releva assinalar que nas subcomissões temáticas foram ouvidas e convidadas a se manifestar expoentes do pensamento nacional, não apenas na área jurídica, mas também em variados setores do conhecimento e da militância social. O tempo era exíguo para pactuar, intra e interbancadas, uma distribuição tão ampla de cargos e investiduras sobremodo importantes. Basta ver que só a soma dos cargos de presidentes de subcomissão e comissão, de vice-presidentes e relatores chegava a 132 parlamentares.  Esbouçou-se um Cronograma Possível dos Trabalhos constituintes, como faz ver a circular assinada pelo Presidente da Assembléia Ulysses Guimarães em 23 de março de 1987, prevendo a promulgação da nova constituição para coincidir com a data da proclamação da república, em 15 de novembro de 1987.

A eleição do Senador Mário Covas – nome que pronuncio com muito respeito e saudade – para a liderança do PMDB permitiu a entrega à ala progressista de 6 (seis) das 8 (oito) Relatorias das comissões temáticas e  de 10 (dez) das 13 (treze) subcomissões que então couberam a essa legenda partidária. De um modo geral, somadas às investiduras conquistadas pelos partidos da esquerda democrática, o bloco progressista passou a contar com 12 (doze) das 24 (vinte e quatro) Presidências das Subcomissões Temáticas e, de igual modo,  com 12 (doze) das 24 (vinte e quatro) Relatorias.

Por certo, em virtude da aglutinação das forças e ideais progressistas fez-se notória  e benéfica nos trabalhos constituintes a  influência das Constituições de Portugal, de 1976, e da Espanha, de 1978. Tal se deveu não apenas em função dos laços histórico-culturais que associam a formação política do Brasil à penínsuÍa ibérica, mas sobretudo ao fato de que essas nações por igual emergiram de longo e agônico período ditatorial - o Salazarismo e o Franquismo - tendo ambas buscado, na seiva da Constituinte, um nutriente de redemocratização e de pacificação nacional. Além do mais, devido ao seu caráter pós-moderno, como ainda à estrutura extensiva de seus respectivos textos, capaz de agasalhar as multiformes e catárticas aspirações de sociedades em ebolição e recém libertas dos grilhões da ditadura, as Constituições portuguesa e espanhola serviram de atrativo natural ao constituinte brasileiro, na medida em que se ocuparam em dicção minuciosa de toda sorte de temas e de problemáticas que cativam a sociedade de massas e os ambientes das megalópoles num mundo cada vez mais urbanizado e globalizado.

Dentre tantos exemplos figuráveis, haurimos nesses ordenamentos peninsulares a preocupação constitucional quanto à ecologia e ao meio ambiente, à proteção do consumidor, à tutela da imagem e da intimidade, ao direito à informação, ao processo de urbanização e à qualidade da vida nas cidades e no campo, ao papel dos partidos políticos para a democracia pluralista, às formas de exercício direto e não delegado da soberania, através do plebiscito e da iniciativa popular das leis, aos meios de comunicação de massa, muito especialmente no relativo à concessão e ao controle dos órgãos de telecomunicações, ao avanço tecnológico e aos efeitos da automação industrial, à salvaguarda dos materiais e atividades nucleares, aos instrumentos de participação da cidadania nos negócios do Estado, ao sistema educacional, de saúde pública e de seguridade social, e, de um modo amplo, no que respeita  ao extraordinário alargamento dos direitos individuais e coletivos, que traduz a reciclagem constitucional da questão democrática na generalidade de seus aspectos sociais, políticos e econômicos naquela  antevéspera do terceiro milênio.

O Título II -  Dos direitos e garantias fundamentais, que é o mais monumental de todos quantos editados na história das constituições da era moderna, simboliza um brado de guerra dos valores que edificam o gênero humano na quadra histórica em que nos encontramos.

Por outro lado, investindo contra os vícios deformadores de nossa cultura política patrimonialista, a Constituição condena a devassidão moral de nossas instituições governativas, notadamente o nepotismo, o paternalismo e toda sorte de imoralidades no serviço público, além de impor um código ético para a Administração em todos os níveis da Federação, que foi testado e aprovado, sem qualquer rasura do rito democrático, no exitoso processo de impeachment do governante que desonrou o mandato presidencial. Aprofundando a investida moralizadora no mundo privado e financeiro, a Lei Magna deplorou e incriminou a ciranda dos juros extorsivos que de longa data  infelicita o nosso povo, ao limitar em 12% ao ano os juros reais cobráveis nos empréstimos em dinheiro.

A aplicabilidade dessa norma, lamentavelmente, foi desde logo postergada por desastrosa decisão do Supremo Tribunal Federal na Adin nº 4 naquele mesmo ano de 1988, e depois revogada pela EC nº 40/2003, a demonstrar o poderio inconteste dos bancos privados que dominam a economia brasileira. Indo mais longe, a nova Carta questiona o endividamento externo e as perdas internacionais que comprometeram a soberania nacional e sangraram as virtualidades do nosso desenvolvimento, exigindo a instituição de comissão mista do Congresso Nacional para o seu exame analítico e pericial. É assaz significativo, também, o resgate indenizatório do recente passado autoritário, expresso nas normas que consagram e ampliam a anistia política, bem como nos dispositivos que criminalizam a prática da tortura que grassou nos subterrâneos da ditadura, qualificando-a como delito inafiançável e insuscetível de graça ou indulto.

Mas, nem tudo foi fácil e de tranquila superação na Constituinte. Embates houveram e renhidos. Como descreve com propriedade o Prof. Adriano Pilatti, então assessor parlamentar e hoje Diretor da Faculdade de Direito da PUC do Rio de Janeiro em valiosa obra dedicada ao processo constituinte sob o título "A Constituinte de 1987 – 1988 – Progressistas, Conservadores, Ordem Econômica e Regras do Jogo", (Editora Lumen Juris, 2008), cuja apresentação tive a honra de subscrever e que contou com prefácio do querido Mestre José Afonso Da Silva, o início do segundo turno de votação se deu em 27 de julho de 1988, no momento de maior tensão entre o Governo e a Constituinte.

"Na antevéspera" – diz o autor autorizado – "o Presidente José Sarney se reunira com o Estado-Maior das Forças Armadas. Na véspera, os jornais destacavam as fotos do presidente ladeado por generais e anunciavam pronunciamento presidencial para aquela noite, em cadeia nacional de rádio e televisão. Ao fazê-lo, Sarney atacou duramente o texto aprovado em primeiro turno – o chamado Projeto (B) -, lançando o bordão segundo o qual a nova Constituição tornaria o País ingovernável, sobretudo por causa das transferências de recursos da União para os Estados e Municípios. O efeito de tal libelo acusatório na sessão plenária do dia seguinte foi desastroso para os que pretendiam deslegitimar os trabalhos da Assembléia Nacional Constituinte.

Os porta-vozes de partidos de esquerda modificaram sua posição: se, antes do recesso de duas semanas que precedeu o início do segundo turno, haviam se revezado ao microfone do Plenário para criticar o suposto conservadorismo do Projeto (B), na véspera de sua votação – com a fala presidencial já anunciada – mudaram o tom  e passaram a defender, ainda que com restrições, o texto aprovado, ao mesmo tempo em que, à direita e à esquerda, multiplicavam-se denúncias e protestos contra interferências do Governo, da UDR e de outros lobbies empresariais, com a cumplicidade do líder do PFL, no sentido de sabotar a aprovação da nova Constituição". ... Na defesa do Projeto (B) não faltaram referências a Camões e à ousadia dos navegantes. Ao tocar os pontos relativos à transferência federativa de recursos e à suposta ingovernabilidade, o grande – o gigante – Ulysses Guimarães foi duro e direto, ao advertir alto e bom som:


"Após quase 500 anos – bradou Ulysses Guimarães, o projeto redime a geografia do Brasil. Nossa geografia é violentada pela concentração nacional de rendas e de competências ... As urnas dão votos para os governadores e prefeitos administrarem. Mas, só a autêntica Federação, que estamos organizando, dá dinheiro para que tais governos dêem respostas às necessidades localizadas. ... Esta alforria, do homem e de seus governantes, foi decretada pela transferência de 47% dos recursos da União para os Estados e Municípios... Se não tivéssemos feito mais nada, só com isso teremos feito muito... A Constituição, com as correções que faremos, será a guardiã da governabilidade. A governabilidade está no social. A fome, a miséria, a ignorância, a doença inassistida são ingovernáveis. A injustiça social é a negação do Governo e condenação do Governo... Repito, esta será a Constituição Cidadã. Porque recuperará como cidadãos milhões de brasileiros... Cidadão é o usuário de bens e serviços do desenvolvimento. Isso hoje não acontece com milhões de brasileiros, sogregados nos guetos da perseguição social. Esta Constituição, o povo brasileiro me autoriza a proclamá-la. Não ficará como bela estátua inacabada, mutilada ou profanada. O povo brasileiro nos mandou aqui para fazê-la, não para ter medo. Viva a Constituição de 1988! Viva a vida que ela vai defender e semear".

Este pronunciamento de Ulysses Guimarães foi o mais intensamente ovacionado que se ouviu naquele patriótico plenário.  Não foi por outra razão que o ressentimento elitista jamais perdoou as vitórias da cidadania. Vitórias efêmeras ou perenes, dirá o futuro. Assim é que, entre 1990, com o abortado "Emendão" proposto pelo infausto Presidente Fernando Collor, e 1994, com a naufragada tentativa da revisão formal, ampla e irrestrita, com base em desvirtuada interpretação do artigo 3º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), não foram poucas as vezes que os grupos  conservadores buscaram  mitigar as conquistas da cidadania. 

Após 1995, no governo Fernando Henrique Cardoso, outras tantas investidas foram desferidas contra a Constituição. Algumas lograram êxito, outras não. O fato histórico e determinante é que a luta da cidadania prossegue, já nesses últimos 20 anos revigorada pelo oxigênio da Constituição democrática do Brasil, o que tem permitido ao nosso país seguir em frente e suplantar o ar rarefeito das crises e decepções de que nenhuma nação está livre.

Graças à Constituição democrática de 1988 temos hoje no Brasil uma imprensa livre e sem o medo da censura. Graças à Constituição abrimos um debate responsável sobre as históricas e odiosas discriminações contra a mulher, contra o negro especialmente e contra a orfandade social em nosso país, o que nos permite hoje aprofundar a questão das cotas raciais com sinceridade histórica e livre das mistificações cínicas da visão branca caucasiana dominante. Como dizia Albert Camus: "quando o escravo era acorrentado com grilhões de ferro era fácil perceber a escravidão. Quando agora desfila acorrentado a algemas semânticas torna-se difícil perceber a escravidão do homem".

Graças à Constituição ampliamos o debate sobre a ética pública e privada, desnundando práticas de corrupção e de toda sorte de vantagens ilícitas.

Graças à Constituição discutimos em profundidade a questão da pesquisa científica com as células tronco embrionárias, descortinando esperanças para tantos pacientes crônicos e seus sofridos familiares. Graças à Constituição conquistamos o estágio da evolução jurídica que nos permite questionar judicialmente o mérito das ações de governo, o mérito das leis e o mérito dos atos administrativos, sob o viés do princípio da razoabilidade e da proporcionalidade que se irradiam da garantia do devido processo legal. Graças à Constituição o acesso à Justiça é crescentemente ofertado à maioria dos brasileiros, conforme exemplariza as centenas de milhares de processos em curso nos Juizados Especiais cíveis e criminais em todo o país.

Graças à Constituição a jurisdição constitucional atingiu entre nós um grau invejável de sofisticação teórica, a nada dever à jurisprudência das mais veneráveis Cortes Constitucionais do planeta, e a permitir que o ativismo judicial possa servir de suprimento aos anseios de justiça e às omissões intermitentes do Poder Executivo e do Legistivo no campo das políticas públicas e da efetivação dos direitos fundamentais.

Graças à Constituição a advocacia foi alçada ao patamar de função essencial à Justiça, o que faz de nós advogados protagonistas qualificados da implementação das normas e princípios consitucionais e da defesa do Estado Democrático de Direito. Graças à Constituição estamos aprendendo o sentido do pluralismo, da alteridade, da tolerância e do respeito para com as diferenças no plano da cultura, dos costumes, das opções sexuais e das singularidades humanas, tema superiormente desenvolvido por Ernest Gellner (na obra "Condições da Liberdade: a sociedade civil e seus críticos").

Graças à Constituição, constitucionalizamos entre nós o direito civil, trazendo para o confronto com os bens e valores supralegais, a disciplina dos contratos, da propriedade, da família, do consumidor, da criança e do adolescente, do meio ambiente, das comunicações, da bio-ética, da ciência e da tecnologia, dentre tantos outros campos de atividades e do saber antes à margem do nível sobranceiro de questionamento que só a instigante exegese constitucional é capaz de oferecer. Graças à Constituição o princípio da dignidade da pessoa humana tornou-se o epicentro das questões constitucionais e inscreveu-se em definitivo na agenda do projeto soberano de nação, que desejamos justo e fraterno. Enfim, graças à Constituição forjamos aquilo que denominei em trabalho doutrinário de um "constitucionalismo comunitário brasileiro". Com isso todos  sentimo-nos mais cidadãos plenos, na medida em que tranpusemos o estágio de "Estado dirigente" para o de uma "Sociedade dirigente", dirigente de suas instituições e de seu próprio destino.

Adverti-vos, pois, contra a enganosa catequese dos predadores da Constituição, cuja intenção malévola é transforma-la numa "soft law" e trivializar os temas constitucionais, máxime as formidáveis conquistas do povo trabalhador no campo dos direitos humanos e sociais, para submeter a Constituição ao alvedrio de uma maioria congressual contingente, não raro arregimentada à custa de benesses despudoradas e sem legitimidade para impor ao País um ordenamento supremo que seja servil aos interesses do grande capital e descompromissado com os desígnios de grandeza da nacionalidade.

Esses arautos da pretensa modernidade, da desmobilização do Estado e da privatização a qualquer preço do patrimônio público fazem por ignorar, porque lhes convém, a lição insuspeita do respeitado liberal Guy Sorman, constante da obra "A Nova Riqueza das Nações", de que todos os países desenvolvidos, inclusive e especialmente os novos "tigres asiáticos", são economias em que o setor público exerce papel de destaque, eis que lhe incumbe por imperativo indeclinável promover a assistência social e garantir os predicamentos da dignidade humana nas áreas sensíveis e que não sensibilizam a livre iniciativa, o propósito do lucro e o pragmatismo empresarial. Em verdade, o próprio mercado nacional, consoante reconhecido por Karl Polianyi, no importante livro "A Grande Transformação", foi preponderantemente uma criação do Estado moderno.

O deslumbramento individualista, que exorta a adoração blasfêmica do privado e a satanização do espaço público, tem servido para dispersar e fragmentar os vínculos de solidariedade indispensável ao convívio democrático, justo e fraterno. A "metástase do ego", como condenada pela pena enérgica e brilhante de Edgard Morin (na obra "Por uma política da civilização"), só tem servido para fomentar a solidão do homem e levar bilhões de seres humanos ao abandono, à paralisia social, à fome e à miséria. Nada melhor do que um dia após o outro para demonstrar a falácia da idolatria do mercado e do fundamentalismo neoliberal.

Ainda há duas semanas, após o estouro da bolha imobiliária calcada nas hipotecas subprime e da crise do sistema de crédito norte-americano, aconteceu o impensável num governo em fim de linha de partido republicano nos Estados Unidos da América: a nacionalização das duas empresas gigantes hipotecárias – Fannie Mae e Freddie Mac –, a concordata do 5º maior banco de investimento Lehman Brothers, a absorção da Merrill Lynch pelo Bank of America e a estatização da seguradora American International Group - AIG, entre outros lances dramáticos que puseram por terra a ortodoxia privatista e da auto-regulação da economia.

O desarranjo das forças livres do mercado, após a orgia da especulação financeira e de lucros anti-sociais,  exigiu a  intervenção do Estado, na esteira do melhor exemplo de socialização dos prejuízos, o que já custou ao povo americano cerca de US$700 bilhões de dólares, sem falar nos prejuízos e desgraças repercutidos em todos os continentes. Além disso, faliram ou estão em vias de falir instituições financeiras que nas duas  últimas décadas, sob o receituário amargo e dogmático do Conseso de Washington, se arvoraram  na pretensão de ditar regras de desestatização e de sustentabilidade macroeconômica para as nações de terceiro mundo. Em comparação, com as graças do Bom Deus, os indicadores sociais e econômicos no Brasil apresentam-se crescentemente menos injustos e mais satisfatórios, em que pese a conjuntura mundial adversa.


Enfim, nada como um dia após o outro para sementar as lições da história e ajustar o relógio da sabedoria. E não há esquecer que 20 anos de vigência da Constituição de 1988 não é nada, embora seja muito para aqueles que viveram intensamente o processo constituinte e ganharam cabelos brancos ou os perderam de todo nesse interrégno desafiador. Por certo, o tempo das constituições é diferente do tempo dos homens. Mas o que é importante é que essas duas décadas já representam o mais longo período de estabilidade democrática da vida republicana de nosso país, iniciada em 1889. Daí dizer o genial Bertold Brecht: "A verdade é filha do tempo e não da autoridade".

Meus caros colegas e amigos: uma Constituição não é apenas um texto-legal. É, antes, uma vivência coletiva, um carma histórico-político, uma saga a ser cumprida pelos povos na trilha da civilização. A Constituição de 1988, mesmo vergada pelo peso de 56 emendas de caráter ora supressivo, ora modificativo e ora aditivo que alteraram, para o bem ou para o mal, sua original feição, longe de ser perfeita, tem cumprindo galhardamente um papel de vanguarda para a superação dos vícios e deformações  que desde a origem colonial marcaram a formação da nacionalidade. É ainda uma Carta Magna recém nascida.

Mal cumpriu a primeira infância. Suas virtudes devem florescer e seus defeitos revelar-se no longo caminho da maturidade cívica que coroa a auto-determinação e a sabedoria política dos povos. Portanto, antes de se descartar a novel Constituição, como desde a primeira hora pretenderam as elites reacionárias derrotadas na Constituinte, há que se promover a sua eficácia plena, o seu integral conhecimento e discussão pela sociedade civil, a formacão de um acervo doutrinário e jurisprudencial que esclareça, construa e amplie a dimensão normativa e axiológica de seu texto.

Cumpre, em suma, promover a aderência da cidadania ativa ao conjunto de bens e valores nela plasmados, a fim de forjar entre nós o sentimento constitucional tão superiormente valorizado por Pablo Luca Verdú na obra clássica “El sentimiento constitucional”, de que tanto carecemos e que vem a ser o mais vigoroso antídoto de um povo contra as tentações tirânicas e as   intempéries na vida das nações. Não há esquecer também que a eficácia social da Constituição depende diretamente das condições sócio-econômicas em que a mesma há de operar. Sem condições de igualdades materiais elementares que assegure a todos o mínimo existencial frustra-se o sistema supralegal de proteções essenciais, aprofundando-se o fosso do nominalismo e do semantismo constitucional, ou seja, frustra-se a efetividade de muitas normas e princípios constitucicionais.

Nesse quadro de frenagem das virtudes de uma Constituição, esta passa a viger seletivamente: efetiva-se para uma minoria em condições  de desfrutar em plenitude os direitos básicos à dignidade humano, porém esmorece para aqueles destituídos de meios de para viver no cotidiano o padrão de existência idealizado pela Lei Maior. É como se os fatos, as circunstâncias e as diferenças no plano da vida discriminassem a própria Constituição, debilitando sua força normativa, para utilizar a consagrada expressão de Konrad Hesse, ao expor: “A norma constitucional não tem existência autônoma em face da realidade.

Devem ser contempladas aqui as condições naturais, técnicas, econômicas e sociais. A pretensão de eficácia da norma jurídica somente será realizada se levar em conta essas condições. A pretensão de eficácia de uma norma constitucional não se confunde com as condições de sua realização" (em "A força normativa da Constituição", Ed. Sérgio Antônio Fabris, Porto Alegre, 1991, págs. 15 e 19).

 Daí sustentar Hans Peter Schneider na obra notável Constituição e Democracia que o Estado Constitucional Democrático necessita de condições justas, igualitárias e estabilizadoras do convívio humano para a sua plenitude (em Democracia e Constitutución, Ed. Centro de Estudios Constitucionales, Madrid, 1991, págs. 38 e 39).

Adverti-vos, pois, contra os ataques ensandecidos à Constituição do Brasil - à "Constituição Cidadã", como batizada por Ulysses Guimarães que presidiu a memorável Assembléia Constituinte de 1988. Falo sobretudo aos jovens advogados do Piauí aqui presentes que me honram com sua audiência e que não tiveram os sonhos da juventude ceifados pelo insânia ditatorial.

Aos algozes da constituição  respondamos com o herói enlouquecido de Cervantes - Don Quixote De La Mancha ao bradar aos moinhos imaginários: "Por onde quer que a virtude se encontre em grau eminente, é perseguida: pouco ou nenhum dos famosos varões do passado deixou de ser caluniado pela malícia dos pérfidos".

Em palavras finais e conclusivas:  vista do alto desses 20 anos, creio que orgulha-nos a Constituição de 1988. Orgulha-nos a Constituição Cidadã. Orgulha-nos lutar e perseverar pela sua plena efetividade rumo ao porto seguro do Estado Democrático de Direito, que predica a união nacional por força da norma inaugurante do estatuto supremo.

Orgulha-nos, sobretudo, companheiros advogados, aqui viver, aqui criar e educar nossos filhos e netos, aqui depositar nossos sonhos de cidadania e, sobretudo, trabalhar e servir a um Brasil mais constitucional e mais democrático.


*Carlos Roberto Siqueira Castro é Conselheiro Federal da OAB/RJ

Terezina, 24 de setembro de 2008

Abrir WhatsApp