19/07/2022 - 12:16 | última atualização em 21/07/2022 - 12:30

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Artigo: As lutas hão que dar as mãos: antirracismo e anticapacitismo

Ivone Ferreira Caetano* e Deborah Prates*

A morte de Genivaldo, asfixiado pela polícia de Sergipe, deixou nítida a urgência de ser compreendida, de uma vez por todas, a necessidade das lutas antirracista e anticapacitista de darem as mãos. Genivaldo era um ser humano de pele preta e com deficiência psicossocial. Foi noticiado, largamente, que, ao ser abordado, exibiu o seu remédio como prova da sua deficiência, sendo ignorada pelos policiais, sob o protesto dos que assistiam, perplexos, o assassinato. O bárbaro crime, assim, trouxe a reflexão sobre o peso e a necessidade de ser considerada a interseccionalidade, na prática, para a compreensão das desigualdades e das discriminações, que potencializam as opressões sofridas pelos seres humanos ao longo da existência.

Fala-se sobre o racismo e o capacitismo, preconceitos estruturais que excluem o indivíduo afetado de participar da vida em sociedade, subtraem seus direitos humanos e civis, despejam a sua cidadania e inclusão no mercado de trabalho e tantas outras violências. Essas pessoas são marginalizadas e subalternizadas, tão-só, pelos seus estereótipos. A cor da pele e o corpo que foge ao padrão ordenado pelo capitalismo colocam esses sujeitos em um não lugar; o sentimento é o de não pertencimento. Isso acarreta uma sensação de baixa autoestima patente, desencadeando os afetos de angústia, ansiedade, fobia, depressão e outros. Dessa forma, a sociedade, por suas subtrações e discriminações, adoece a psique destes, levando-os, em alguns casos, ao suicídio.

A barbárie consumada contra essas pessoas vem crescendo assustadoramente e, na mesma velocidade, crescem também os movimentos de oposição: Vidas Negras Importam (iniciado nos Estados Unidos) e Vidas Negras com Deficiência Importam (inspirado no anterior). O segundo visa sobrelevar as peculiaridades/especificidades com que as pessoas com deficiência são assujeitadas, em decorrência dos seus corpos.

As pessoas negras representam mais de 54% da população no Brasil em 2022, de acordo com o IBGE. Apesar de ser a maioria da população esse contingente sofre com o racismo - discriminação contra pessoa ou agrupamento pela etnia ou cor da pele -, que atua na estrutura histórica da sociedade. Torna-se complexo mexer no imaginário social ante a naturalização da subalternização das pessoas negras, perpetrada por séculos de práticas e simbologias escravistas, a partir da chegada de grandes contingentes de pessoas escravizadas, vindas de várias regiões do continente africano a partir do final do século XVI. Portanto, reverter a injustiça institucional, econômica, cultural e política, a fim de devolver às pessoas negras seus direitos, somente será possível através da conscientização e educação da população em geral.

Já o capacitismo, preconceito contra as pessoas com deficiência, existe desde sempre. No entanto, somente ganhou nome na década de 1980 dentro dos movimentos sociais das pessoas com deficiência dos Estados Unidos. Apesar de, em 2011, ter sido ventilado a presença do termo capacitismo em um encontro LGBTQIA+, ainda hoje não aparece com esse título na legislação brasileira. Dessa forma, vale trazer o conceito, elaborado por Prates: capacitismo é uma "espécie do gênero preconceito que a sociedade atribui às pessoas com deficiência, reduzindo-as à própria deficiência. É uma visão reducionista, de sorte que vê-se, tão-só, os instrumentos tecnológicos de deslocamento desses seres humanos, como, por ilustração, a bengala, o cão-guia, a cadeira de rodas, a muleta, etc.".

Na obra O Corcunda de Notre Dame, Victor Hugo descreve o personagem Quasímodo como um “quase alguém", fazendo alusão para como, dentro de sua história, a sociedade medieval francesa via as pessoas com deficiência. Lamentavelmente esse olhar assistencialista permanece até os dias atuais. Tão cristalizado na mente humana está que, na 40ª ata do Comitê Gestor do CNJ/PJe, de 12 de setembro de 2013, o capacitismo estrutural está presente da seguinte forma: "(...) tendo o Dr. Marivaldo apontado que, como há a possibilidade de capacitar idosos, mas não de melhorar a visão dos deficientes, devemos atender os demais." Ora, o CNJ descumpriu as normas planetárias de acessibilidade web do Consórcio W3C, bem como a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (Art. 9,g), dando mostra de que era a sua intenção excluir as pessoas com deficiência visual, uma vez que, sem conteúdo codificado (acessibilidade), os leitores de tela nada leriam. O sistema do PJe poderia ter sido construído de forma acessível às pessoas com deficiência visual, porém não foi feito.

Ainda dentro do tema do assistencialismo, diversas ONGs, empresas, instituições etc. agem com o fim de tirar vantagens de pessoas em situação de opressão, oferecendo produtos e eventos voltados para esses públicos, ao invés de revisar suas estruturas internas organizacionais contratando pessoas com deficiência ou oferecer necessária acessibilidade aos seus funcionários e clientes. Nas suas prestações de contas esse assistencialismo está amarrado principalmente no espaço do marketing. Nítido que querem mostrar ao seu público-alvo a sua "humanidade" e "solidariedade"; porém, de fato, não desejam a liberdade desses oprimidos, mas, sim, que permaneçam acorrentados, escravizados, presos a essas desumanas armadilhas, dependentes de terceiros e incapazes de decidirem sobre suas vidas.

Segue outro caso, bem emblemático, que sela a questão da interseccionalidade. Douglas foi detido pela polícia e, a todo custo, esforçou-se para explicar que apenas queria uma informação. Tratava-se de um rapaz surdo e preto. Pelo seu estereótipo, a coletividade julgou-o como um fora da lei e chamou a polícia. Douglas morreu porque queria se comunicar. Há, por isso, a necessidade de um olhar interseccional, a fim de aquilatar o tamanho da opressão sofrida por uma pessoa negra e com deficiência, caso contrário inexistirá justiça. É, majoritariamente, via educação que os preconceitos do racismo e do capacitismo serão enfrentados sem novas violências. Por isso é que todas as lutas dos movimentos sociais hão que dar as mãos.

Finalizando o presente artigo de opinião é que tem lugar trazer o pensamento da filósofa americana Angela Davis: "Numa sociedade racista não basta não ser racista, é preciso ser antirracista." E, de mãos dadas com Davis, as pessoas com deficiência pedem permissão para parafraseá-la: Numa sociedade capacitista, não basta não ser capacitista, é preciso ser anticapacitista. A educação liberta. Sem ela, inexistirá justiça!

*Ivone Caetano, desembargadora aposentada do TJRJ, é diretora de Igualdade Racial da OABRJ

*Deborah Prates é presidente da Comissão da Diversidade do IAB e integrante da Diretoria de Igualdade Racial da OABRJ

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