20/05/2009 - 16:06

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Artigo: Minha casa, minha vida - Marco Aurélio Bezerra de Melo

Minha casa, minha vida


Marco Aurélio Bezerra de Melo*

Com esse sugestivo bordão que poderia apenas ser mais uma daquelas manobras do marketing político comum em épocas de eleição, o governo federal editou a Medida Provisória nº 459 em março deste ano. Tal medida se propõe a minorar a angústia de milhões de brasileiros que não tem onde morar ou então não tem a segurança de demorar no local em que resolver se fixar com sua família face a irregularidade de sua construção frente ao modelo burguês estabelecido pelo Código Civil brasileiro, estando sujeito a ser alvejado em choques de remoções ou demolições.

Dentre tantas novidades interessantes para atacar a aflitiva questão da moradia no Brasil trazidas pela recente norma jurídica, gostaria de tecer brevíssimos comentários acerca da utilização da legitimação de posse como instrumento para a regularização fundiária de assentamentos urbanos registrados no domínio privado, fato esse que deve ser visto com entusiasmo por todos que acreditam, como eu, na importância da inclusão de pessoas socialmente pobres no modelo formal de aquisição das titularidades imobiliárias com o fito de produzir o saudável efeito de possibilitar aos cidadãos o convívio em sociedade menos doentia pelas mazelas da discriminação, do preconceito e da perversa criminalização da pobreza.

Por ocasião do desenvolvimento de dissertação de mestrado no programa de pós-graduação da Universidade Estácio de Sá, tive a oportunidade de pesquisar a forma como o patrimônio imobiliário, originalmente público, foi fatiado no Brasil. Um dos fatos mais marcantes, sob a ótica do direito, foi a lei 601/1850, conhecida como lei de terras, cuja aplicação, em que pese seus elevados propósitos, acabou por excluir os trabalhadores e os cidadãos recém-saídos do modelo escravocrata do acesso à terra, proporcionando a concentração de portentosas datas de terras nas mãos de poucos, contribuindo, portanto, para a formação de latifúndios improdutivos que ao fomentar a violência e a injustiça no campo acabou por reproduzir esse fenômeno nas cidades.

No desenvolvimento do aludido estudo, apresentei com valiosas contribuições do professor Ricardo César Pereira Lira, do advogado Melhim Namem Chalhub e com o olhar crítico e experiente do defensor público Walter Elysio Borges Tavares, anteprojeto de lei ao deputado federal Rogério Lisboa tratando da legitimação de posse e que tomou no Congresso Nacional o número 1092/2004. Àquela altura, já estava convencido de que a urgência da matéria justificava, com fulcro no artigo 62 da Constituição, a edição de medida provisória tratando do tema. Tal projeto de lei teve por base trecho do projeto de lei 3057 que adormecera naquela casa de leis desde o ano de 2000.

E aí está a legitimação de posse a desafiar a imaginação e o compromisso dos agentes políticos que terão o poder-dever de retirá-la do papel. O projeto tem início com a elaboração do auto de demarcação urbanística que vem a ser o procedimento administrativo pelo qual o Poder Público, no âmbito da regularização fundiária de interesse social, demarca imóvel de domínio privado, definindo seus limites, área, localização e confrontantes, com a finalidade de identificar seus ocupantes e qualificar a natureza e o tempo das respectivas posses.

Após essa fase, estará o Poder Público autorizado a expedir títulos de legitimação de posse em favor daqueles que preencherem os requisitos objetivos e subjetivos previstos artigo 64: não sejam concessionários, foreiros ou proprietários de outro imóvel urbano ou rural; II - não sejam beneficiários de legitimação de posse concedida anteriormente; e III - os lotes ou fração ideal não sejam superiores a duzentos e cinquenta metros quadrados.

A outorga da legitimação de posse confere direito real ao seu titular, podendo, inclusive, ser dada em garantia real em financiamento com taxas de juros mais atraentes para, por exemplo, melhorar ou reformar a própria acessão.

A fase derradeira do procedimento é o registro da propriedade passados cinco anos da averbação da legitimação da posse, algo que pode ser considerado como uma forma de usucapião administrativo, estando tal possibilidade indo ao encontro das modalidades de desjudicialização dos procedimentos, pois cediço que a ação de usucapião se amolda apenas e com muita dificuldade para a formalização da propriedade considerada individualmente. Tal fato pode ser constatado no completo descaso que a comunidade jurídica teve com relação à usucapião coletiva disciplinada no artigo 10 do Estatuto da Cidade.

Com efeito, a legitimação de posse administrativa mostra-se mais efetiva para a regularização fundiária das favelas que nos moldes da Constituição da República, assumiram a natureza jurídica de bem ambiental, uma vez que estão integradas à estrutura de toda e qualquer cidade como observou com perspicácia o jurista e advogado Celso Fiorillo em obra coletiva coordenada pelo presidente da Comissão de Direito Ambiental da OAB/RJ, Flávio Ahmed.

Tal instrumental jurídico já está em vigor aguardando a sua conversão em lei que, inclusive corrigirá alguns equívocos, e torço que saia do papel para o bem de seus destinatários diretos e também para as pessoas que integram uma classe sócio-econômica mais privilegiada, pois acabarão beneficiados por conviver em um país com menos ressentimento e violência urbana.

*Marco Aurélio Bezerra de Melo é desembargador da 16ª Câmara cível do TJ-RJ

Artigo publicado no Jornal do Commercio, 20 de maio de 2009

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