28/01/2020 - 10:23 | última atualização em 28/01/2020 - 12:44

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No Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo, Ordem frisa importância da fiscalização

Cássia Bittar

Desde 1888 a escravidão está abolida no Brasil. Na forma da lei. Porque, mais de um século depois, ainda são encontradas no país situações de trabalho em que as pessoas são feridas na sua dignidade humana, privadas de sua liberdade, transformadas em meros instrumentos, no que é reconhecido como condições análogas à escravidão ou ainda escravidão contemporânea.

Esta terça-feira, dia 28, é um dia importante para o enfrentamento deste crime. Instituído em 2004, o Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo lembra as mortes dos auditores fiscais do Trabalho Erastóstenes de Almeida, João Batista Soares Lage e Nelson José da Silva, e do motorista Ailton Pereira de Oliveira, que foram assassinados durante inspeção em que apuravam denúncias de trabalho escravo em uma fazenda no município de Unaí (MG), no que ficou conhecido como a Chacina de Unaí. Na ocasião, grandes produtores locais de feijão foram apontados como os mandantes do crime, mas o caso segue até hoje em tramitação na Justiça.

Tipificada como crime pelo Código Penal - de acordo com o artigo 149 -, quatro elementos podem definir escravidão contemporânea: trabalho forçado, inclusive com o cerceamento do direito de ir e vir; servidão por dívida, algumas vezes fraudulentas; condições degradantes, que ferem a dignidade humana ou ainda colocam em risco a saúde e a vida do trabalhador; e jornada exaustiva – , a escravidão contemporânea  foi reconhecida como existente no Brasil pelo Estado em 1995, perante a Organização das Nações Unidas (ONU).

“É evidente que aquele trabalho escravo clássico não existe hoje. Vemos um ou outro caso de pessoas capturadas, mas é algo muito reduzido. O perigo está justamente em só atentar para esse formato. O que temos hoje é o trabalho análogo à escravidão, que é determinada situação em que o trabalhador é cerceado, inclusive sob o uso da força, dos seus direitos fundamentais, de seus direitos trabalhistas”, explica o presidente da Comissão de Direito do Trabalho da OABRJ, Sérgio Batalha.

Para Luciano, número de trabalhadores resgatados no último ano é preocupante

De acordo com o  Painel de Informações e Estatísticas da Inspeção do Trabalho no Brasil da Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT) do Ministério da Economia, em 2019 foram encontrados 1054 trabalhadores em situação análoga à de escravos em 267 estabelecimentos fiscalizados após denúncias ou investigação de auditores, procuradores e policiais. Destas, 934 pessoas estavam em estabelecimentos rurais e 120, em urbanos - dos quais 46 estrangeiros. As atividades econômicas que mais foram flagradas com esse tipo de mão de obra foram o carvão vegetal, o café, a pecuária bovina, o comércio, e a construção civil.

Presidente da OABRJ, Luciano Bandeira ressalta que o número prova como a escravidão ainda é presente no Brasil: “Embora ela tenha sido oficialmente abolida há mais de 130 anos, a escravidão ainda é uma chaga que assola o país em formas variadas. O fato de mais de mil pessoas terem sido libertadas de viver nessas condições só no último ano nos mostra que a fiscalização deve ser cada vez mais intensificada. O trabalho escravo é uma enorme violência contra os direitos humanos mais básicos e deve ser combatido firmemente pela sociedade e punido pela Justiça.”

Após o reconhecimento perante a ONU, o Brasil montou uma política de enfrentamento do problema. Em 2005, o Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo, reuniu grandes empresas no compromisso de enfrentar o problema em suas cadeias produtivas. Foi exposta uma “lista suja” com nome de empregadores, entre pessoas físicas e jurídicas, condenadas por trabalho escravo.

Presidente das comissões Nacional e Estadual da Verdade da Escravidão Negra no Brasil da Ordem e representante do Conselho Federal da OAB na Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae), Humberto Adami afirma, porém, que apesar de a legislação atual ser eficaz para o tratamento da questão, ela não basta. "É preciso ter um investimento nos órgãos de execução, investimento nos profissionais que trabalham com a fiscalização".

Adami frisa a importância de a advocacia estar posicionada e fortalecida para o enfrentamento da escravidão moderna. "Estamos fazendo um trabalho de unificação entre as seccionais. Algumas trabalham bastante o tema, outras menos. É preciso que a Ordem tenha um discurso uníssono para que a classe se fortaleça no combate a esse crime. Até porque muitos advogados são ameaçados diariamente no exercício de sua profissão, ao tratarem de casos dessa natureza".

Batalha se mostra preocupado com a atual perspectiva de enfrentamento ao trabalho escravo contemporâneo, em um cenário pós extinção do Ministério do Trabalho, no qual, acredita ele, a fiscalização foi enfraquecida: “Temos hoje no Brasil uma fiscalização já muito precarizada. E o fim do Ministério do Trabalho desorganizou toda uma estrutura já montada. Muitos casos denunciados são em lugares ermos, em fazendas longe, ou até mesmo ficam em fábricas escondidas, são casos que precisam de uma estrutura para serem solucionados”.

Segundo ele, posicionamentos do presidente da República Jair Bolsonaro sobre o tema também são preocupantes quando se pensa no enfrentamento do trabalho escravo moderno: “O presidente fez um discurso no qual claramente disse que ia tirar o fiscal do pé do empresário”, ressaltou, criticando também a sugestão que Bolsonaro deu, em cerimônia realizada em julho no Palácio do Planalto, de que discutiria mudanças na atual legislação de combate ao trabalho análogo à escravidão pois ele se confundiria com o trabalho escravo clássico e poderia resultar em pena severa demais, a seu ver, ao empregador.

“Na legislação em si não tivemos até agora nenhuma mudança preocupante, a situação ainda pode ser caracterizada e combatida, mas quando estamos vivendo um momento de enfraquecimento da fiscalização, isso nos preocupa. O efeito desse movimento que já está ocorrendo é aumentar a precarização do trabalho. Acredito que seja um fenômeno que vai aumentar no Brasil”, afirma Batalha.

Adami compartilha da preocupação com o atual rumo no combate ao trabalho análogo à escravidão: "O que nos resta fazer, e que está sendo feito em muitas áreas, é reforçar nosso trabalho de resistência e caminhar todos na mesma direção, chamando mais e mais pessoas para esse combate junto".

Números ao longo dos anos

Fazendo uma comparação entre os últimos anos, 1054 trabalhadores foram encontrados em situação de escravidão contemporânea em 2019; 1745, em 2018; 647, em 2017; 972, em 2016; 1205, em 2015; 1754, em 2014; 2808, em 2013; 2775, em 2012; 2496, em 2011; 2640, em 2010; 3765, em 2009; 5045, em 2008; 6025, em 2007.

O número de denúncias aumentou no último ano. De 1127 denúncias de situações de trabalho análogo à escravidão em todo o Brasil em 2018, o número passou para 1213 em 2019, de acordo com o Ministério Público do Trabalho.

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