12/06/2019 - 12:00 | última atualização em 17/06/2019 - 14:48

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Juristas avaliam pertinência de criminalização do 'stalking'

Clara Passi

Novos tempos trazem nova roupagem para velhas infrações: a perseguição obsessiva, tratada no Brasil como contravenção penal, foi vitaminada pela miríade de novas formas de comunicação e passou a ser designada pelo termo inglês 'stalking', mais um estrangeirismo que entrou para léxico da vida moderna.

Insatisfeitos com a brandura do tratamento dado à prática de monitorar a vida de alguém no mundo físico ou virtual, por meio de contatos insistentes e indesejados por telefone, email, whatsapp, inbox ou posts em redes sociais, legisladores deste milênio buscam alterar o Código Penal, cuja redação é de 1940, para tornar crime o 'stalking'. São sete projetos de lei que tramitam na Câmara. O mais antigo é de 2009, de autoria do ex-deputado federal Capitão Assumção, hoje deputado estadual no Espírito Santo pelo PSL, que está na mesa diretora desde março deste ano.  O tema também está no radar da OAB Mulher, que promoverá debates este ano. O gênero, explicam especialistas, é um marcador importante do perfil das vítimas, assim como ocorre nos crimes sexuais.

Esta percepção, no entanto, carece de dados que a sustente: como o fato de o 'stalking' ser contravenção penal dificulta o registro de ocorrência nas delegacias pela vítima, o Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro (ISP) não consegue compilar dados.

Fernanda Fernandes / Foto: Fernando Frazão (Agência Brasil)

“Como os crimes cibernéticos não têm lei específica, não estão catalogados, não se consegue ter uma estatística”, diz a delegada da Delegacia de Atendimento à Mulher (Deam) de Duque de Caxias, Fernanda Fernandes, credenciada também pela atuação pregressa na Delegacia de Repressão a Crimes de Informática (DRCI) e pela pesquisa sobre infrações na internet realizada para o livro 'Temas Penais Contemporâneos', com lançamento previsto para este ano.

Fernandes e a criminalista e vice-presidente da OAB Mulher, Rebeca Servaes, concordam com a ideia de que o enquadramento do 'stalking' no Artigo 65 da Lei de Contravenções Penais não basta para coibir a prática. O texto determina pena de 15 dias a dois meses de prisão ou multa cobrada ainda em contos de réis a quem “molestar alguém ou perturbar-lhe a tranquilidade, por acinte ou por motivo reprovável”. 

“Se virar crime, a pena seria aumentada, a conduta ganharia mais visibilidade e a sociedade poderia ser mais conscientizada por meio de campanhas e políticas públicas de prevenção. Hoje, como contravenção penal, o 'stalking' não é considerado tão grave no âmbito jurídico”, avalia Servaes. “É muito mais fácil fazer um registro de ocorrência quando se trata de crime. Quem tentava denunciar importunação sexual antes de virar crime (em setembro de 2018) também encontrava dificuldade por se tratar de reles contravenção”.

Rebeca Servaes / Foto: Bruno Marins

Fernandes lamenta a leniência da legislação, que desobriga os grandes players da internet a fornecer conteúdo suspeito para embasar as investigações de casos de perseguição virtual.

“As empresas só entregam número de IP (a identificação única de cada computador conectado a uma rede) e informações de acesso. Muitas vezes, o TJ concorda com as corporações e ratifica essa recusa, o que favorece a  impunidade”.

O criminoso cibernético típico, ela conta, é inteligente e tem expertise em informática acima do normal ao ponto de ser capaz, por exemplo, de camuflar um IP. 

“Uma mulher me procurou recentemente para fazer o registro de ocorrência de uma perseguição que ela sofria havia oito anos. Sempre que tentava, caía em descrédito na delegacia. Tinha até fotos do assediador seguindo-a na rua. Como no crime cibernético as provas são voláteis, a percepção é de que a vítima sofre de mania de perseguição, está enlouquecendo”, conta Fernandes. 

A delegada diz que muitas vítimas são prejudicadas pelo desconhecimento de informática. Ela ensina que é preciso tirar foto da tela (print) com a URL (endereço do site) correspondente, o que permitirá ao investigador rastrear o criminoso cibernético mesmo se as páginas forem apagadas. 

Mas se vigilância da vida alheia é, em linhas gerais, a tônica das redes sociais, como traçar o limite do aceitável? A partir do momento em que alguém expressar que não quer mais receber contatos e as tentativas continuarem. “Isso já configura perturbação à tranquilidade. Não existe quantidade mínima de contatos”, diz Fernandes. 

A transformação do 'stalking' em tipo penal, no entanto, é vista com cautela pela integrante da Comissão Especial de Estudos sobre Direito Penal da OAB/RJ e conselheira da Seccional Márcia Dinis, para quem os projetos de lei surgem “mais em razão de demanda midiática do que propriamente de análises isentas e opiniões devidamente fundamentadas que demonstrem a efetiva necessidade de um tipo penal específico para esta modalidade de perseguição”. 

A advogada cita o caso do integrante do Big Brother Brasil 15, Adrilles Jorge, que teria perseguido sua vítima por décadas e o episódio que envolveu a apresentadora e empresária Ana Hickmann.

“A velocidade da transmissão das informações nas redes sociais está transformando as relações pessoais e isto se reflete diretamente na produção jurídica. Os 'stalkers' existem há muitas décadas, são perseguidores que têm um comportamento obsessivo direcionado a outra pessoa. Em geral, artistas e pessoas famosas conhecem bem este fenômeno, tanto que na Califórnia esta conduta foi tipificada na década de 1990. Com o advento das redes sociais, esta conduta obsessiva se vulgarizou”, explica Dinis. 

A perseguição obsessiva não raro é porta de entrada para crimes graves e pode até colocar a vida da vítima em risco. Encaixa-se em diversas classificações penais como: ameaça, perturbação da tranquilidade, vias de fato, importunação ofensiva ao pudor e perturbação do trabalho ou do sossego alheios, constrangimento ilegal, crimes contra a honra.  Mas caso se conclua pela efetiva criminalização do 'stalking', os parâmetros para tipificar tal conduta também devem ser objeto de profunda reflexão, avalia Dinis. 

“Como dimensionar o limite de uma perseguição a ponto de transformá-la em um crime autônomo? É imprescindível que se adote um boa técnica legislativa e em consonância com os princípios que regem o Direito Penal, com critérios bem definidos e claros a fim de que a aplicação da lei não exija interpretações subjetivas e discricionárias, que atendam tão somente a segmentos privilegiados ou fins eleitoreiros”. 

A advogada teme que o Direito Penal seja usado de forma abusiva, com o excesso de novos tipos penais. 

“A lei penal deverá ser a última ratio: somente se recorrerá à criminalização quando nenhuma outra medida for suficiente para coibir tal comportamento”, avalia.

Quanto menos exposição, menos riscos. Um 'like', um compartilhamento, uma interação reativa ou um 'check in' em tempo real, com geolocalização, são comportamentos virtuais que parecem inofensivos, mas podem alimentar a sanha de um perseguidor, aconselha a diretora de Inclusão Digital e Inovação da OAB/RJ, Maria Luciana Pereira de Souza.  

A advogada especializada nas interseções do Direito com a tecnologia orienta os usuários de rede sociais a evitar perfis abertos para o público ou aceitar solicitações de amizade de pessoas desconhecidas ou de perfis fake. Outra dica é nunca publicar números de telefone, endereço residencial ou comercial.

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