26/07/2023 - 17:54 | última atualização em 26/07/2023 - 18:21

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A OAB e a prisão especial

A prisão especial para advogados certamente não é a lei mais iníqua do Brasil. Mas na teia de privilégios que sustenta nossa sociedade desigual, ela tem valor simbólico

Por Roberto Feith*




A prisão separada para alguns acusados de crimes no Brasil nasceu na ditadura. Mais precisamente, no Estado Novo, durante o qual foram promulgadas diversas leis corporativistas. O artigo 295 do Código de Processo Penal de 1941 determinou que onze categorias teriam o direito de aguardar julgamento em um local distinto da prisão na qual ficavam os demais cidadãos, ou, se este local não existisse, em uma cela separada dentro da prisão comum. A lista de beneficiados incluía não só autoridades, como qualquer cidadã ou cidadão que tivesse um diploma universitário — na linguagem da época, qualquer “Doutor”.

A tese de que um individuo com curso superior não deve ficar preso com pessoas que não completaram a faculdade, é coisa nossa. Não existe lei semelhante em outro país do planeta. Esta invenção verde e amarela não chega a surpreender, pois somos, na frase feliz do antropólogo Roberto DaMatta, “o país do sabe com quem está falando?”. Ou melhor, éramos, nos anos 1940, na vigência do Estado Novo.

Nas seis décadas desde então o país mudou. Aumentou a renda per capita, as cidades cresceram, e com elas, a escolaridade e a expectativa de vida. A política também mudou. Depois de mais uma ditadura, esta imposta pelos militares em 1964, promulgamos em 1988 uma nova Constituição. Desde então o Brasil viveu 25 anos de uma vibrante e diversa, ainda que imperfeita, democracia, e a ideia de que todos devem ser iguais perante a lei ganhou força e se espalhou até alcançar boa parte dos nossos 211 milhões de cidadãs e cidadãos.

Portanto, não é surpreendente que vimos alterando nossas leis, revogando as mais arcaicas e claramente patrimonialistas. A prisão especial para doutoras e doutores até que resistiu. Uma tentativa de alterá-la foi aprovada pelo Senado em 2001, mas bloqueada na Câmara. Mais recentemente, no dia 30 de março, 82 anos depois de sua criação, a prisão especial para quem tem curso superior — regra que, segundo a Procuradoria-Geral da República, ofende os princípios da dignidade da pessoa humana e os objetivos fundamentais da República — foi, em voto unânime do plenário do Supremo Tribunal Federal, declarada inconstitucional. Acabou, podemos celebrar, um dos mais injustificáveis privilégios de uma sociedade que luta para se tornar menos desigual.

Só que, não. A prisão especial para quem tem diploma universitário acabou, mas outras categorias continuam, por lei, a desfrutar do privilégio. Quem? Para tomar emprestado uma expressão dos filmes policiais, os “usual suspects”, os mesmos de sempre: autoridades do andar de cima, ministros, governadores, parlamentares, prefeitos, etc.. Existe, entretanto, um integrante desta lista que pelo seu papel em uma sociedade democrática chama atenção: os advogados.

A Ordem dos Advogados do Brasil tem um histórico de serviços prestados à sociedade, notadamente na luta pela liberdade de expressão e contra o arbítrio no período do regime militar. A OAB é justamente orgulhosa desta história e seus dirigentes têm, ao longo dos anos, sublinhado o papel da instituição na defesa dos valores libertários e das legítimas demandas da sociedade. Então, como explicar que uma instituição historicamente comprometida com o interesse público vem insistindo que, mesmo depois do Supremo declarar inconstitucional a prisão especial para portadores de diploma universitário, advogados devem manter este privilégio?

Em nota divulgada após a decisão do Supremo o presidente da OAB, Beto Simonetti, afirmou que a prisão especial “não é um privilégio ao advogado, mas sim uma garantia de que não haverá perseguição em eventual investigação apenas por sua atividade profissional”. A lógica da frase é ligeiramente convoluta, mas, salvo engano, Simonetti argumenta que a prisão especial para advogados não é privilégio, e sim, garantia, em virtude do risco de que advogados venham a ser presos e colocados com detentos comuns, por autoridades empenhadas em uma manobra ilegal para impedir o trabalho destes advogados na defesa de seus clientes.

Cabem, aqui, algumas observações. Em contraste com o argumento do presidente da Ordem, o privilégio da prisão especial definido em lei não está associado ao exercício da atividade do advogado, e sim, à sua pessoa. Ou seja, hoje, um advogado acusado de violência doméstica também terá direito à prisão especial.

Outro aspecto curioso da posição da OAB é que a questão central não parece ser o risco de uma autoridade prender um advogado para impedir o seu trabalho, e sim, o risco de, ao declarar esta prisão, ela colocar o advogado com os demais presos. Afinal, ao invés de propor medidas para coibir um possível e gritante abuso de autoridade, a Ordem prefere argumentar que, uma vez ilegalmente preso, o advogado deve dispor de cela especial.

Um terceiro aspecto exige reflexão: a leitora ou leitor destas linhas tem conhecimento de uma autoridade que tenha encarcerado um advogado para impedi-lo de defender seu cliente? Fiz a proverbial pesquisa na internet e encontrei dois relatos de advogados detidos por desacato ao discutirem com delegados. Minha pesquisa foi certamente incompleta e imperfeita. Mas, se a OAB justifica o privilégio da prisão especial pela perseguição de advogados em função da sua atividade, o mínimo que se espera é que cite casos em que este grave desvio de fato ocorreu. Na sua defesa da prisão especial o presidente da Ordem não citou qualquer caso, e não encontrei outra manifestação de um representante da OAB protestando contra a prisão de um advogado para impedir que este, como aventou Simonetti, defendesse um cliente.

Mas vamos dar ao presidente da Ordem o benefício da dúvida. Vamos partir da premissa de que o ato insólito e ilegal que ele usou como justificativa de sua defesa da prisão especial tenha de fato ocorrido, ou possa vir a ocorrer no futuro. Ainda assim, este ato será indiscutivelmente raro e aberrante. Uma exceção. Ou seja, o presidente da OAB cita um evento raro, até implausível, para justificar a violação de um princípio geral de uma sociedade democrática: a igualdade perante a lei. Para justificar o privilégio, Simonetti postula que uma exceção improvável deve pesar mais do que o princípio fundamental, universalmente reconhecido.

A prisão especial para advogados certamente não é a lei mais iníqua do Brasil. Mas na teia de privilégios que sustenta nossa sociedade desigual, ela tem valor simbólico. A OAB pode se orgulhar de sua trajetória. Ela é importante e sua voz conta. Está mais do que na hora da Ordem honrar sua história e seus ideais, se colocar firmemente contra privilégios arcaicos e se manifestar publicamente contra a prisão especial, inclusive para advogados.


*Roberto Feith é jornalista e editor. Artigo publicado nesta quarta-feira, dia 26 de julho, no Blog 'Fumus Boni Iuris' do O Globo em contraponto ao artigo do presidente da OABRJ, Luciano Bandeira

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