16/05/2022 - 12:23 | última atualização em 18/05/2022 - 12:22

COMPARTILHE

OABRJ discute marcas da escravidão e entrega Medalha Rosa Negra

Evento aconteceu na data da Abolição e contou com diversas palestras sobre o tema

Felipe Benjamin

O evento "A História invisibilizada da escravidão negra" marcou o dia 13 de maio, data da abolição da escravidão no Brasil, com uma série de palestras, entregas de medalhas e o lançamento do livro "Rosa Negra: retalhos de uma trajetória de superação", que tem como uma de suas autoras a diretora de Igualdade Racial da OABRJ, Ivone Caetano. A cerimônia, que aconteceu no Plenário Evandro Lins e Silva, na sede da Seccional, contou com depoimentos emocionados de nomes da Diretoria da Ordem, além da presença de figuras ilustres da luta contra o racismo.

"Hoje não temos nada a comemorar", afirmou Ivone, que comandou a cerimônia. "A escravidão deixou várias consequências. Mesmo que eu tenha passado apenas um terço do que meus ancestrais passaram, a coisa foi muito séria. Por que pensar que 1888 houve uma abolição da escravidão, se ela nunca acabou e hoje continua com métodos diferentes? Por isso não me calo, mesmo que me digam que se trata de mimimi. Mimimi é a dor que o outro não sente, e por isso apontarei o dedo sempre que tentarem invisibilizar o nosso sofrimento e de nossos ancestrais".  

A mesa contou com as presenças do presidente da OABRJ, Luciano Bandeira; da vice-presidente, Ana Tereza Basilio; do presidente da Caixa de Assistência da Advocacia do Estado do Rio de Janeiro (Caarj), Ricardo Menezes; da presidente da Comissão OAB Mulher, Flávia Ribeiro; e da coordenadora do Tribunal de Ética e Disciplina, Ângela Kimbangu.  Em um ato simbólico, durante o evento a Presidência da OABRJ foi exercida por Ivone, marcando o primeiro momento em que o cargo foi ocupado - ainda que de forma interina - por uma mulher negra.  

"Esse debate e essa luta são permenantes", afirmou Luciano. "Não adianta ganhar um degrau e não fazer nada pois corremos o risco de retroceder dois. Conseguimos avançar muito na questão de gênero e fomos a primeira instituição do Brasil a alcançar a paridade em todos os seus cargos. Mas na questão racial ainda temos que avançar muito. Não me dá orgulho algum olhar para o quadro de ex-presidentes e ver apenas homens brancos. Em breve teremos mulheres e também mulheres e homens negros, pois isso é o que dará a dimensão verdadeira da OAB, instituição tão importante no processo de construção da democracia brasileira".



Em seu discurso, Ana Tereza destacou os avanços alcançados pela Diretoria da OABRJ na luta por igualdade. "Concordo que o país não tem muito a comemorar, mas a Ordem tem. Uma delas é a Diretoria de Igualdade Racial, e outra é o fato de uma das principais comissões desta casa, a OAB Mulher, ser presidida por uma mulher negra muito competente que é a querida Flávia Ribeiro. O nosso país ainda é baseado na desigualdade, na falta de oportunidades, na falta de escolas, alimentos e saúde pública para todos, mas na Ordem devemos destacar que temos uma Presidência comprometida, que deu espaço a mulheres, a negros, criando um exemplo que tem que ser replicado no país inteiro".

Primeira advogada negra a presidir a OAB Mulher, Flávia Ribeiro observou que a data ainda segue acompanhada de falsas impressões sobre o papel das lideranças negras no processo abolicionista.

"Nossa abolição foi incompleta e não foi fruto de militância e ativismo de pessoas brancas como lemos nos livros de História, e sim da militância de pessoas negras como Luiz Gama, André Rebouças e muitos outros nomes que lutaram para quer isso acontecesse. Também não foi fruto da boa vontade da princesa Isabel. Como se sabe, o mundo já vinha dando fim à escravidão em função da Revolução Industrial. Tivemos leis que proibiam os negros de estudarem ou ocupassem terras devolutas. Hoje é um dia de reflexão para que tenhamos não apenas a igualdade formal, mas também a igualdade material".

Completaram a mesa, o vice-diretor de Igualdade Racial, Rodrigo da Mata; o secretário-geral da OAB/Niterói, Carlos Alberto Lima de Almeida; o assessor do governador do estado, Vitor Travancas, e a deputada federal Benedita da Silva.

Ao fim da cerimônia, Ângela Kimbangu e a deputada receberam das mãos de Ivone Caetano a Medalha Rosa Negra, também entregue à Lotsove Lolo Lay Ivone, mãe do imigrante congolês Moïse Kabagambe, morto no quiosque em que trabalhava na Barra da Tijuca em janeiro; Luziane Ferreira da Cruz Teófilo, esposa de Durval Teófilo Filho, morto por um sargento da Marinha ao tentar entrar no condomínio em que vivia; e Edineisi Cristina Rodrigues Soares, avó do adolescente Cauã da Silva Santos, atleta de artes marciais de 17 anos, morto por policiais em abril na comunidade dos Dourados, em Cordovil, na Zona Norte do Rio, que foi representada por seu advogado. A presidente da Comissão de Mentoria Jurídica da Seccional, Thaís Fontes, e a  advogada e ativista de direitos civis Carla Luciene Lima, uma das palestrantes da noite, também receberam a medalha.

Primeira juíza negra do Estado do Rio de Janeiro e, posteriormente, a primeira desembargadora negra do TJRJ, a trajetória profissional e de vida da diretora de Igualdade Racial da OABRJ, Ivone Caetano,é o que inspira a comenda A Rosa Negra.

Futuro da inclusão em discussão

Além dos discursos na mesa, completaram o evento quatro palestras que discutiram o legado da escravidão e o futuro das relações raciais no país. O ciclo foi aberto pela juíza Katerine Nygaard, com o tema "Meritocracia para quem?".

"A meritocracia segue sendo um tema muito polêmico e que muitas pessoas ainda defendem, sob a ideia de que 'basta se esforçar que você consegue'", afirmou a juíza. "Trabalhei na vara de adolescentes e para todos eles, que eram 80% negros, eu dizia 'estude, arrume um emprego'. Isso pode acontecer, mas é muito difícil. No Brasil nem todas as pessoas têm as mesmas possibilidades. Temos um país extremamente desigual, e dependendo de onde a pessoa nascer, da cor de sua pele e de sua classe social, ela terá seus direitos fundamentais como educação e saúde, ou não".

A educadora Maura de Oliveira, representante do Projeto Anjos, de prevenção e combate à pedofilia e cyberpedofilia, falou sobre o drama da exploração sexual infantil, que atinge, ainda hoje, um número estarrecedor de meninas negras em todo o país.


 
"Venho aqui hoje falar das crianças negras. A cada 15 minutos no Brasil uma criança é violentada sexualmente, 83% delas são meninas, e a vasta maioria delas é negra. É difícil pensar de onde virão as próximas Ivones Caetanos se amanhã nossas crianças negras estarão adoecidas pela violência. Nesse cenário, a escravidão da criança negra, que é maltratada e invisibilizada, ainda permanece. E o que mudará isso são ações. Que esse 13 de maio seja para todos nós a transformação verdadeira".

Advogada e membro da Diretoria de Igualdade Racial da OABRJ, Carla Luciene Lima da Silva apresentou a palestra "Subalternidade e analfabetismo social X Emancipação e letramento racial".

"Peço que a branquitude presente entenda que esse é um processo de resistência que também passará por vocês e que ensinem suas famílias e seus vizinhos um novo modo de se relacionar com a diversidade. Se isso não for feito, não chegaremos ao mundo que queremos com todos tendo a dignidade humana. Este é um processo que tem que ser de todos. Sempre ouvimos "um dia os pretos chegarão lá", mas nós estamos aqui agora. Precisamos criar estratégias de qualificação do desenvolvimento preto. Quero pretos com cartões do BNDES. Sei que o algoritmo do sistema é perfilizador, mas precisamos superar essa terceirização do sistema".

Por fim, a advogada e membro da Comissão de Mentoria da OABRJ Sonia Maria Barbosa falou sobre as consequências do processo de escravidão na atualidade.

"A educação é o único caminho, não há outra saída. Temos legislações que prevêem a cota para os estudantes pretos, temos leis que falam de informação em relação à escravidão, que não se sabe como está sendo aplicada nas escolas. Fico triste de ver que as Dras. Ivones do mundo partirão e quem irá substituí-las? A grande maioria da população certamente não conhece o Estatuto da Igualdade Racial, e temos que levá-lo às salas de aula. Outro dia, uma senhora foi libertada de uma casa na qual vivia como escrava há 70 anos. O que dizer disso? Não sei, honestamente, dizer se avançamos".

Abrir WhatsApp