Organizações repudiam ação arbitrária de militares Do Jornal O Globo 17/06/2008 - Líderes de movimentos contra a violência e em favor dos direitos humanos voltaram a criticar ontem o envolvimento de militares do Exército no assassinato de três jovens moradores da Providência. Coordenador do Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH), Gilson Cardoso diz que chegou a hora de repensar o papel das Forças Armadas no regime democrático, que, segundo ele, não está sendo respeitado: "Precisamos repensar as instituições. A democracia é um bem que ainda não chegou para todos. Negro, pobre e favelado continuam à margem", disse Cardoso, que não entende por que o Exército está na Providência. "Por que ocupar um morro se há mais de 600 no Rio? Parece uma questão política". Defensor da presença das Forças Armadas no Rio, o coordenador do movimento Rio de Paz, Antônio Carlos Costa, diz que experimentou uma grande frustração. Mas espera que seja um fato isolado e que a população continue confiando no Exército. Segundo Costa, episódios recentes ocorridos no estado, envolvendo parlamentares e milícias e a corrupção nas polícias, mostram que o Rio vive hoje um quadro de ingovernabilidade. "Isso requer uma resposta imediata da sociedade. É inadmissível ter a reedição de problemas que já estavam superados, como arbitrariedade, tortura e maldade gratuita", disse Costa, que fará nova manifestação na última semana deste mês. "Em vez de lamentar as mortes, vamos dar um alerta. Se a estatística se confirmar, mais quatro mil pessoas vão morrer de forma violenta até o fim do ano". Manifestação contra a violência Em nota divulgada ontem, o presidente da OAB/RJ, Wadih Damous, disse que o episódio demonstra claramente por que não se deve atribuir às Forças Armadas o papel da polícia, de zelar pela segurança pública. "O crime bárbaro mostra o resultado desse equívoco: militares envolvidos com criminosos, adotando práticas comuns a elementos podres da polícia estadual e aos milicianos, que aterrorizam as comunidades onde o Estado não se faz presente", diz Damous, que também classifica como inadmissível o fato de militares serem usados como seguranças num projeto eleitoreiro de candidato a prefeito. Para o deputado Marcelo Freixo (PSOL), que é vice-presidente da Comissão de Direitos Humanos da Alerj, ao pegar três jovens, levar para o quartel e vendê-los para o tráfico, o grupo de militares teria operado com a mesma lógica do crime. Ele está propondo a realização de uma audiência pública na assembléia: "A concepção desses militares foi a mesma usada na guerra. A ação na Providência acaba envolvendo interesse público e privado. Primeiro um senador apresenta emenda para investir numa obra numa única comunidade. O Exército é chamado para dar segurança, que não é sua função. E agora ocorre um fato que estamos tentando superar na polícia". Presidente do grupo Tortura Nunca Mais, Cecília Coimbra diz que a morte dos rapazes é inaceitável para uma sociedade que se diz democrática: "Acham que a violência está só entre os pobres, mas está justamente com os agentes do Estado. Vivemos num fascismo social. Hoje voltam-se contra os pobres, mas daqui a pouco será contra todos". Especialista em segurança pública, o tenente-coronel da PM Milton Corrêa da Costa ressalta que as Forças Armadas só podem atuar no campo da segurança pública em casos de grave perturbação da ordem. A Federação das Associações de Favelas do Estado do Rio (Faferj) também repudiou a ação dos militares e, nos próximos dias, vai convocar as comunidades do Rio para uma grande manifestação e pedir um basta à violência. Deputado: 'É promiscuidade política' O deputado Chico Alencar (PSOL) encaminhou, há pouco mais de um mês, requerimento de informações ao ministro da Defesa, Nelson Jobim, e ao ministro das Cidades, Márcio Fortes, interpelando-os sobre os motivos de os dois ministérios terem feito o convênio para as obras no Morro da Providência, no Rio. O deputado, que é précandidato à prefeitura da cidade, queria saber se havia base legal para a atuação dos militares para proteger obras em uma área civil, que são resultado de uma emenda parlamentar do senador Marcelo Crivella (PRB), aliado do presidente Lula. "Há dois princípios que não estão claros. O da publicidade e o da legalidade. O Exército está lá desde o ano passado à revelia do próprio secretário de Segurança. O que foi feito lá é um acordo lateral, uma promiscuidade política", disse Alencar. O deputado Fernando Gabeira (PV), também pré-candidato, que pretende convocar o ministro da Defesa para prestar esclarecimentos ao Congresso, anunciou que também vai encaminhar um pedido ao Tribunal Regional Eleitoral (TRE) para que investigue se está havendo uso da máquina pública para beneficiar o candidato do PRB. A também deputada federal e pré-candidata à prefeitura Solange Amaral (DEM) classificou como lamentável a participação do Exército na obra: "O Exército não pode ser usado para reformar a casa dos favelados", disse ela. A ex-deputada federal Jandira Feghalli, pré-candidata pelo PCdoB, classificou como estranha a presença do Exército no morro para dar cobertura a um projeto de um parlamentar pré-candidato. Para ela, o ato caracteriza um desvio de função das Forças Armadas. Pré-candidato pelo PT, o deputado estadual Alessandro Molon classificou as denúncias como gravíssimas e afirmou ser fundamental que haja investigações rigorosas. Caso deve ser julgado pela Justiça comum Apesar de envolver militares fardados, o caso da morte dos três jovens do Morro da Providência caminha para ser analisado pela Justiça comum. O professor de direito penal Alamiro Velludo Salvador Netto, da Escola Superior de Advocacia, explica que uma alteração no Código Penal Militar, feita em 1996, estabeleceu que casos que envolvam homicídio ou co-autoria deste crime contra um civil, fora de área militar, não sejam julgados pela Justiça Militar. "À época, foi uma alteração cercada de muito envolvimento da sociedade civil, já que havia um grande temor em relação à possibilidade de haver corporativismo no julgamento dos casos em âmbito militar". O professor ressalta que os relatos sobre a atitude dos militares dão conta de outra irregularidade: "Os rapazes que foram mortos estavam numa área que não era militar. Se tivessem de ser detidos e levados para uma averiguação, isso teria de ter acontecido numa delegacia de Polícia Civil, não num quartel". Para o advogado Sérgio Bermudes, será fundamental que o inquérito policial-militar (IPM) conclua se os militares tiveram a intenção clara de atentar contra a vida dos jovens, para que fique caracterizada a coautoria do crime: "Os fatos precisam ser mais bem apurados, para que haja uma decisão sobre a competência judicial. Se ficar provado que os militares entregaram os jovens na favela rival sabendo que eles morreriam, ficaria caracterizada a co-autoria de homicídio e o caso teria que ser declinado para a Justiça comum". O caso terá de passar por várias etapas até que se chegue a um parecer final. O encarregado do IPM dará um parecer que será analisado pelo promotor da Justiça Militar. Em seguida, o MP pode denunciar os envolvidos ou pedir o declínio da competência, o que leva o caso para a Justiça comum. Se houver discordância entre o juiz e o promotor, a palavra final será do Superior Tribunal Militar.