03/08/2018 - 21:02

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Proibição de filme sérvio gera polêmica sobre suposta volta da censura

03/08/2018 - 21:02

Proibição de filme sérvio gera polêmica sobre suposta volta da censura

PATRÍCIA NOLASCO

É impensável que o Estado se atribua o papel de decidir o que devemos e o que não devemos ver. Um ambiente assim, de intolerância, no fundo conspira contra a democracia.” A frase é do ex-ministro da Justiça Fernando Lyra, responsável pelo último veto à exibição de um filme (Je vous salue, Marie) no Brasil, em 1986, e foi dita a propósito da proibição recente de A Serbian film – Terror sem limites, motivo de intensa polêmica em torno das justificativas para se imporem, ou não, limites à liberdade de expressão nas obras artísticas.

Assim que soube da proibição do filme sérvio, Lyra fez questão de manifestar-se em carta, publicada pelo colunista Ricardo Noblat, afirmando que o veto do passado fora o único fato, “lamentável”, a entristecê-lo ao longo de sua carreira pública, comprometida com os valores democráticos. O ex-ministro explicou que acedera a um pedido do então presidente da República, José Sarney, para atender à Igreja católica, que se sentira afrontada pela forma como Maria e Jesus haviam sido retratados na obra de Jean Luc Godard.

No Brasil do Século 21, desde julho vêm se travando no Judiciário episódios da briga pela liberação ou proibição do filme sérvio, que conta a história de um ator pornô decadente e contém cenas de violência, pornografia, necrofilia, incesto com criança e, cerne da discussão, simulação do estupro de um recém-nascido. No Rio, foi proibido antes que entrasse em circuito.

O Diretório Regional do DEM, representado pelo especialista em Direito Constitucional Victor Travancas, obteve liminar da 1ª Vara da Infância, da Juventude e do Idoso na ação cautelar preparatória de ação civil pública contra o distribuidor, Rafaelle Petrini, o grupo Estação, responsável pelo Odeon Petrobras, sala onde seria exibido, e a estatal do petróleo, patrocinadora do cinema. Os dirigentes do partido não assistiram ao filme antes de pedir sua proibição. Tampouco Travancas, que não considera isso necessário para a defesa da causa.

O advogado Flávio Pougy, especialista em Direito Autoral e de Entretenimento, e o colega Carlos Rangel de Paiva Abreu, em nome de Petrini, tentaram cassar a liminar e liberar o filme, mas a desembargadora Gilda Carrapatoso negou o pedido. O agravo de instrumento interposto também foi recusado na segunda instância. A forte reação da classe artística motivou a criação de um blog na internet repudiando a censura, e a repercussão incrementou o acesso ilegal ao filme pela internet.

Em Minas Gerais, a Procuradoria da República tentou impedir que o Ministério da Justiça concedesse à produção uma classificação indicativa para a exibição comercial. Depois de algumas semanas, o ministério manifestou seu entendimento de que não lhe cabia impedir a projeção de uma obra e classificou A Serbian film, do diretor sérvio Srdjan Spasojevic, em 18 anos, liberando-o em território nacional, com exceção do Rio. O Ministério Público Federal ingressou com ação cautelar e obteve, em Belo Horizonte, a proibição para todo o país. Alemanha, Suécia, Espanha e Finlândia também teriam vetado a obra, segundo Travancas, e outros países, como a Inglaterra, permitido sua veiculação com cortes.

A base para as ações do DEM e do MPF foi o Estatuto da Criança e do Adolescente, que em seu artigo 241 C define como crime: “Simular a participação de criança ou adolescente em cena de sexo explícito ou pornográfica por meio de adulteração, montagem ou modificação de fotografia, vídeo ou qualquer outra forma de representação visual”. Diz o parágrafo único: “Incorre nas mesmas penas quem vende, expõe à venda, disponibiliza, distribui, publica ou divulga por qualquer meio, adquire, possui ou armazena o material produzido (...)”.

Travancas diz estar convencido de que a causa é nobre e que a ficção, mesmo sem a participação ou envolvimento de crianças nas cenas de sexo, macula sua imagem, e por isso não pode ser veiculada. Afirma também que sua exibição pode incitar alguém com transtornos mentais a tentar repetir o ato de pedofilia sugerido.

“O direito à liberdade de expressão não é absoluto, e há o direito preferencial das crianças e dos adolescentes, recepcionado pela Constituição. Recebemos a informação de que havia, no filme, exibição e propaganda de pedofilia, e submetemos a questão ao Judiciário”, explica o advogado.

Em sua ponderação, Travancas argumenta que não se pode “permitir que a liberdade de expressão seja usada como defesa e argumento para incentivar a pedofilia, atingindo o direito da criança”. Se o filme tratasse de zoofilia ou outra prática sexual, ele diz que não se oporia: “Mas não posso conceber a ideia de uma criança sendo violentada mesmo como expressão de arte”, frisa.

Para ele, quem o acusa de censura comete um “erro grotesco”. A censura prévia exercida pelo Executivo durante a ditadura nada tem a ver com a questão atual, defende Travancas. “O Judiciário recebeu a informação de que haveria cometimento de crime no filme. Requisitou-o para ver, já que ninguém viu, abriu o contraditório e a ampla defesa, todos estão podendo discutir. Isso é debate democrático, e é importante que a sociedade participe dele. A Justiça vai analisar o filme, junto com o Ministério Público, e julgar se nosso parecer está correto ou está errado. Se decidir que não temos razão e não houve afronta à legislação, o filme será liberado”.

O que incomoda o advogado do distribuidor do filme é justamente o fato de o Judiciário ter proibido o filme sem analisá-lo, apenas com base nas informações do DEM. “Não acho que cabe à Justiça avaliar preventivamente. O filme representa um crime, mas não o comete. O objetivo de suas imagens não é a excitação sexual. Acho que houve censura, com uso apelativo da moral”, pondera Flavio Pougy.

Pougy lembra o que disse o ministro do Supremo Tribunal Federal Ayres Britto, no julgamento que liberou a Marcha da Maconha, entendendo que não se tratava de apologia ao crime: “A liberdade de expressão é a maior expressão da liberdade”. O advogado ressalta que “ninguém é obrigado a ver o filme, cujo acesso só é autorizado a maiores de 18 anos que voluntariamente paguem ingresso”. E sustenta que “supor que uma obra artística é capaz de influenciar decisões pessoais é duvidar muito da capacidade individual de julgamento das pessoas”.

Ninguém age em função do que viu no cinema, “mas sim em função de seu background psicológico”, argumenta Pougy, recordando o caso do rapaz que atirou nas pessoas que assistiam em São Paulo ao filme Clube da Luta. “Nem por isso, se proibiu o filme”. Para o advogado, achar que filmes são apologéticos “é atribuir-lhes características de ‘propaganda’ na acepção fascista”, e esta interpretação dá margem a diversas proibições por suposta influência negativa. “É kafkaniano. Pela lógica do DEM, não vamos poder discutir crimes no cinema. Por essa lógica, Lolita não seria exibido. Isso faz parte do que existe na sociedade”, frisa.

Segundo o distribuidor Rafaelle Petrini, Serbian é um filme de terror, para causar repulsa e chocar. Nas cenas representando crianças, foram usados um boneco e um robô, diz, criticando o fato de os comentários contrários à obra terem partido de pessoas que não a viram, “e muito menos pediram uma cópia antes de entrar com a ação”.

O professor Cezar Migliorin, do Departamento de Cinema e Vídeo da Universidade Federal Flumi-nense, acha que a proibição “é um desastre absoluto” no campo das artes, com “um grupo querendo decidir as imagens que são boas para serem vistas pela comunidade e as que não são”. Cezar critica “o elitismo dessa visão” e observa que arte “não tem linha reta” com os valores aceitos pela sociedade, manifestando surpresa “com a corroboração da Justiça” à tese do DEM.

“Trabalhamos no Brasil de hoje com a noção de arte e de ficção, fazendo com que não existam mais os temas que podem ou não fazer parte da criação artística, os assuntos que podem ser representados e os que não podem. Se isso não está claro para o senso comum, está explicito na Constituição”, argumenta o professor.

No registro ficcional, destaca ele, “simular que alguém presenciou um determinado evento é um artifício amplamente utilizado, mas “antecede essa simulação o pacto com o espectador de que aquilo não existiu”. Ele acrescenta que, nesse pacto, não há simulação, no sentido de fingimento, “apenas uma insinuação sem que o crime se efetive e sem que se possa ter a impressão de que houve crime”.

No filme em discussão, “não só não houve crime como a impressão de ter havido crime é restrita ao universo da ficção”, sustenta. “Como sabemos que nenhuma criança foi exposta a situações que a aviltasse, não é tarefa da lei julgar se alguns indivíduos têm ou não a capacidade de lidar com imagens que insinuem pedofilia”, finaliza.


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