08/04/2014 - 12:11

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‘Conseguimos desconstruir farsas e mentiras’

08/04/2014 - 12:11

‘Conseguimos desconstruir farsas e mentiras’

Um ano depois de assumir o comando da Comissão Estadual da Verdade, o presidente da Comissão de Direitos Humanos do Conselho Federal e ex-presidente da OAB/RJ, Wadih Damous, analisa os principais resultados do trabalho realizado, principalmente com os novos testemunhos sobre a morte, dentro do DOI-Codi, do ex-deputado Rubens Paiva, uma das vítimas da ditadura. Para Wadih, o Exército está na obrigação de pedir desculpas à sociedade e de dizer a verdade sobre o que ocorreu: “Ocultar a verdade é mentir também”.
 
PATRÍCIA NOLASCO
 
A Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro completa, neste abril, um ano da instalação no prédio do antigo Conselho Federal da OAB. Quais os principais resultados desse trabalho?
 
Wadih Damous – Conseguimos desconstruir farsas e mentiras. Um exemplo é a chamada Chacina de Quintino, que, em 1972, vitimou ativistas da organização VAR-Palmares na casa que funcionava como aparelho. Três pessoas foram mortas por agentes do DOI-Codi, inclusive uma mulher grávida. A versão que a ditadura sustentou é que reagiram e morreram na troca de tiros. Com testemunhos e provas periciais, descobrimos que todos foram executados. O conjunto probatório será remetido ao Ministério Público. Este episódio, ainda pouco conhecido, mostra as facetas da ditadura, mentindo ao forjar cenários de mortes em confronto, o que, aliás, a Polícia hoje copia. 

Mas talvez uma das investigações mais importantes seja a que diz respeito ao desaparecimento do ex-deputado Rubens Paiva. Preso e morto no DOI-Codi, seu corpo desapareceu. Na versão militar, foi levado por uma escolta num Fusca e no alto da Boa Vista o carro teria sido interceptado por um grupo e Paiva teria conseguido fugir – mesmo sendo um homem corpulento, de 1,90m e estando no banco de trás do automóvel. O autor da farsa, o coronel, então major, Raimundo Ronaldo Campos, contou-nos que ela foi montada a mando do comandante do DOI-Codi, major Francisco Demiurgo Santos Cardoso (já falecido).
 
Tivemos também o depoimento do coronel reformado Paulo Malhães, participante de alguns dos mais importantes episódios da ditadura. Organizador da Casa da Morte, em Petrópolis, esteve envolvido na morte de Rubens Paiva, na Guerrilha do Araguaia e na Chacina de Medianeira, no Paraná. O coronel nos disse que, em relação a Paiva, ele foi morto no DOI-Codi e teve o corpo enterrado no Alto da Boa Vista, desenterrado e novamente sepultado no Recreio dos Bandeirantes e anos depois desenterrado pela segunda vez. O corpo, segundo Malhães, foi posto dentro de um saco impermeável e jogado num rio da região de Itaipava, com a utilização de uma técnica para não viesse à tona. A arcada dentária foi retirada e os dedos, decepados para impedir qualquer eventual identificação. Malhães contou ainda ter sido chamado para desenterrar e aplicar a técnica nos corpos dos ativistas mortos no Araguaia. Também reconheceu ter organizado a Casa da Morte em Petrópolis.
 
O Exército tem a obrigação legal e moral de vir a público confirmar ou desmentir o que ele disse. Se desmentir, precisa dizer o que foi feito dos corpos e onde estão. E deve não apenas pedir desculpas, mas dizer a verdade, porque até hoje mente. Ocultar a verdade é mentir também.
 
Foi possível avançar nas investigações para a identificação dos responsáveis pela carta-bomba que matou dona Lyda Monteiro, secretária da presidência da Ordem, em 1980?
 
Wadih – Já temos a fundamentada certeza de que o inquérito foi uma farsa, e provavelmente a autoria foi a mesma do atentado no Riocentro, ocorrido no ano seguinte. Podemos supor que o sargento Guilherme Pereira do Rosário tenha sido se não o autor, um dos autores. Possivelmente vamos investigar outro agente que não posso citar por enquanto, mas que provavelmente participou do atentado e está vivo. Quando o sargento morreu, familiares de dona Lyda, ao verem a foto dele nos jornais, acharam-no muito parecido com um homem visto com flores junto à sepultura dela. Funcionários da Ordem e da Caarj que prestaram depoimento na Polícia Federal à época reconheceram num retrato falado alguém que lembra muito esse agente que era do DOI-Codi. É ele que vamos tentar entrevistar. Mas já podemos afirmar que o atentado à OAB foi obra de agentes do Centro de Informações do Exército, do DOI-Codi e do Serviço Nacional de Informações – mesma autoria do plano de explodir bombas no Riocentro.
 
Mesmo antes de estar à frente dos trabalhos da Comissão Estadual da Verdade, o senhor já defendia a transformação de antigos centros de torturas em espaços de memória e cultura. Como estão as negociações?
 
Wadih – Parece que no Rio tudo é mais difícil. O prédio do Dops, a Polícia não abre mão de transformar num museu da Polícia. Não aceitamos, e tampouco as entidades de defesa dos diretos humanos, compartilhar o mesmo local entre vítimas e algozes. Compete ao governador decidir. O DOI-Codi é prédio do Exército, que não aceita o tombamento. O processo de tombamento mais avançado é da propriedade particular onde funcionou a Casa da Morte. O preço já foi arbitrado e é possível que haja colaboração entre a União e o governo estadual para pagar a indenização. 
 
Como presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB e ex-presidente da OAB/RJ, o senhor acredita que a atuação da Ordem tem colaborado para melhorar a situação das pessoas mais vulneráveis a situações de abusos e violação de direitos?
 
Wadih – A Ordem conquistou, ao longo de sua história, prestígio social muito grande e às vezes acaba sendo vítima dele; há pessoas que acham que a OAB pode resolver problemas que estão fora do alcance da instituição. A Ordem não é órgão do Estado, não administra penitenciárias, não prende nem solta ninguém. O que ela faz, e bem, é denunciar e propor soluções, colaborar e exigir dos poderes públicos as providências cabíveis. Mas, respondendo à pergunta, a OAB tem sido porta- -voz da sociedade, especialmente de seus grupos mais vulneráveis e das vítimas de abusos. É bom lembrar que, em 2010, organizamos na OAB/RJ a Campanha pela Memória e pela Verdade, para resgate dos fatos ocorridos na ditadura militar. Com o apoio de grandes artistas, essa campanha se espalhou pelo país e, articulada a outros movimentos, ajudou a criar condições para a criação da Comissão Nacional da Verdade e das comissões estaduais.
 
Também neste abril, o atentado preparado para o show do Dia do Trabalho no Riocentro completará 33 anos com novas provas obtidas pelo Ministério Público Federal. Nesta tentativa de reabertura do caso, cinco militares podem ir ao banco dos réus. O senhor acredita haver condições para a responsabilização dos autores?
 
Wadih – Juridicamente falando, não há dúvida. A bomba no Riocentro e o assassinato de dona Lyda são fatos ocorridos depois de 1979, fora da abrangência da Lei de Anistia. Os autores podem ser processados e, provada sua culpa, devem ser condenados.
 

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