08/04/2014 - 12:37

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Expedi ente de humilh ação

08/04/2014 - 12:37

Expedi ente de humilh ação

CÁSSIA BITTAR
 
Ameaças profissionais ou pessoais, ofensas, isolamento, menosprezo, sobrecarga de serviço, pressão exacerbada para o alcance de metas. Quando ocorridos de forma contínua no ambiente de trabalho, esses comportamentos caracterizam prática que, apesar de remeter a uma antiga cultura de abuso de poder, é relativamente nova, como instituto, para o Direito: o assédio moral.

Considerado um problema difícil de ser identificado, devido ao receio que empregados têm de denunciar, o assédio moral pauta cerca de 1.800 processos que correm hoje no Tribunal Superior do Trabalho (TST). Tratando-se do assédio moral coletivo, aquele que é recorrente na empresa, em 2013 foram apresentadas 115 ações civis públicas na Justiça do Trabalho em todo o país, segundo reportagem publicada em fevereiro pelo jornal Folha de S. Paulo.

Os números dos estados mostram que houve aumento nas denúncias, de acordo com levantamento feito pelo doutorando em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) André Luiz Souza Aguiar. Segundo ele, os inquéritos por assédio moral coletivo no Ministério Público do Trabalho de São Paulo subiram de 359 em 2010 para 792 em 2013, o que representa um crescimento de 120%. Já na Bahia, os processos no Tribunal Regional do Trabalho relacionados ao tema passaram de um, em 2001, para 981 em 2010.

“Hoje sabemos de mais casos porque os meios de comunicação nos informam com maior brevidade e, ao mesmo tempo, os empregados têm mais conhecimento para lutar por seus direitos, evidenciando esses comportamentos nefastos e perigosos”, explica o vice-presidente da Comissão de Justiça do Trabalho da OAB/RJ, Paulo Vilhena.

De acordo com André Aguiar, a primeira sentença sobre assédio moral no Brasil ocorreu em 2002, no julgamento de uma causa trabalhista do ano 2000. “Com a divulgação e a consequente conscientização por parte dos trabalhadores desse mal-estar permanente no trabalho, passou-se a questionar sua suposta legitimidade e naturalidade. Começaram então a surgir muitos processos judiciais trabalhistas em todo o Brasil, inclusive várias ações civis públicas, estas conduzidas pelo Ministério Público do Trabalho”, completa.

Porém, os dados da Justiça ainda não acompanham os relatos e dados sobre a prática e suas consequências. Segundo  a médica do trabalho Margarida Barreto, que integra o grupo de profissionais responsáveis pelo site Assédio moral no trabalho, chega de humilhação!, cerca de 300 denúncias são recebidas por dia através da ferramenta, que colhe depoimentos e reúne informações sobre o tema. 
 
Também coordenadora da Rede Nacional de Combate ao Assédio Laboral e outras Manifestações de Violência no Trabalho, ela conta que, em pesquisa recente do Sindicato dos Trabalhadores Ativos do Judiciário Federal de São Paulo, dos 761 entrevistados, 32% relatam o aparecimento de doença do trabalho, sendo as mais comuns tendinite, bursite e lesão de esforço repetitivo (LER). Para 53%, o controle da chefia é permanente sobre o seu trabalho e, para 85%, existe assédio. Além disso, 76% já presenciaram atos de violência moral que podem ser caracterizados como assédio no trabalho.

Informações do Ministério da Previdência Social mostram que, somente em 2013, 61 mil pessoas receberam auxílio-doença por casos de depressão no ambiente de trabalho, que tem, entre suas possíveis causas, o assédio moral e sexual. O número representa um aumento de 5,5% de afastamento por episódio depressivo em relação a 2012.

“Tivemos várias mudanças no mundo do trabalho e, entre elas, a reestruturação produtiva, a desregulamentação das relações e perdas de direitos e a adoção de novas políticas de gestão que estão preocupadas em produzir e faturar cada vez mais. O trabalhador é visto como uma simples mercadoria que, se adoece, envelhece ou não se submete às normas que são impostas, torna-se um objeto, perde o valor. Todo assédio tem como objetivo forçar o outro a desistir do emprego, pedindo a demissão”, avalia a médica.

Para Vilhena, a diferença entre o número de processos e as estatísticas se dá pelo constrangimento de muitos em denunciar: “O número de reclamações trabalhistas com este pedido ainda é baixo porque o assédio humilha o trabalhador, fragilizando-o até para postular reparação, pois todos aqueles atos e fatos voltarão a assombrá-lo, passando a ser de algum modo públicos, o que mais uma vez irá constrangê-lo”, observa.

Aguiar reforça: “Na minha compreensão, a subnotificação dos casos de assédio moral está relacionada ao medo de perder o emprego, de expor as chefias autoritárias e, principalmente, de ser mais perseguido. O atual modelo organizacional, que exige cada vez mais uma maior produtividade, utiliza o assédio moral como método de gestão. De uma violência sutil ou invisível, temos agora uma violência instituída, que é inerente à organização do trabalho”.

Como não há uma lei nacional que trate especificamente do instituto, os julgamentos efetuados pela Justiça do Trabalho referem-se aos direitos humanos preconizados na Constituição Federal, explica o doutorando. “Surgiram várias leis estaduais e municipais, voltadas apenas para os respectivos setores públicos, e que não atingem, em termos de proteção, o trabalhador celetista brasileiro”, informa.

Juiz trabalhista e professor da Universidade de São Paulo (USP), Paulo Eduardo Vieira de Oliveira acredita que não é preciso legislar sobre a questão: “Não existe lei que diga que o empregador tem que ser educado com seu empregado, pois ela não é necessária para que isso seja claro, considerando que a nossa Constituição, em sua regra geral, já estabelece o respeito à dignidade da pessoa humana”.
 
O magistrado ressalta que é importante diferenciar o assédio moral do dano moral. “O dano moral já é caracterizado em uma única ação. O assédio moral, por sua vez, é a conduta repetitiva, reiterada por parte do empregador, do superior hierárquico ou até mesmo de colegas de trabalho, no sentido de prejudicar, causar incômodo, constranger o empregado. Uma expressão muito comum utilizada pelas vítimas é ‘ele transformou a minha vida em um inferno’”, exemplifica ele, que acredita que parte dos advogados ainda não sabe aplicar os conceitos corretamente: “É uma prática relativamente nova e muitos não conseguem entender ainda a diferença”.
 
Para a médica Margarida Barreto, o assédio é questão de saúde pública. “Assediar significa estabelecer um cerco e não dar trégua ao outro, humilhando, inferiorizando e desqualificando de forma sistemática e repetitiva. São ataques verbais, gestuais, perseguições e ameaças veladas ou explícitas; fofocas e maledicências que, ao longo do tempo, vão desestabilizando emocionalmente e devastando a vida do outro. Trata-se de uma tortura psicológica nas relações interpessoais no local de trabalho”, afirma.
 
Os setores com mais ocorrências, de acordo com o levantamento de Aguiar, são o comercial, industrial e bancário. Neste último, segundo dados de estudo publicado pela Universidade de Brasília (UnB) em 2009, há uma tentativa de suicídio por dia. Dessas, uma se consumaria a cada 20 dias.

“O suicídio é um grito daquilo que se tornou insuportável. E, ao pensar nesta situação nas corporações, é possível constatar a indução a ele. Na prática, isso se dá na gestão pelo terror, pela ameaça, pelo medo. Este caos gestacional desequilibra o profissional. Há abuso de poder nas relações. E o trabalho é um porto seguro para sanidade, nos harmoniza quando há respeito, espaço para a criatividade, autonomia. Hoje virou local de sofrimento, de dores e medos”, analisa a médica.

Segundo o juiz Paulo Oliveira, o que estimula as empresas a continuar aplicando o assédio moral organizacional ou a manter em seus quadros assediadores é o baixo valor das indenizações impostas pelo Judiciário. “São baixíssimas e, pedagogicamente, é importante que não sejam. A multa imposta pelo Judiciário deve ter um caráter duplo: ressarcitório e punitivo. Para que cumpra essa função, a meu ver, a indenização deve ser alta, na casa dos seis dígitos. É de interesse inclusive do Estado não concordar com essa prática, haja vista que será o dinheiro público que custeará um possível afastamento por conta de depressão. Mas hoje, infelizmente, o Judiciário ainda não está pronto”.

O magistrado afirma que os advogados têm papel essencial na prevenção da prática: “A função deles talvez seja a mais importante, são eles que podem orientar a empresa de como agir, mostrando que o assédio moral é prejudicial para elas mesmas. E, para isso, devem estar bem preparados”.

Vilhena discorda: “Vejo os advogados e juízes perfeitamente preparados. É verdade que, por ser um assunto novo, por vezes ocorrem exageros, mas nada que prejudique o bom andamento ou resultado do processo”.

Já uma certeza é comum aos especialistas: a visibilidade que o assunto requer. “A presença de atos violentos no ambiente de trabalho não é característica específica do atual contexto produtivo, ela faz parte da cultura brasileira de dominação e abuso de poder, do estilo autoritário de administrar gerado no engenho, na casa-grande e na senzala, com o trabalho forçado durante o período da escravidão, sendo fortalecido pelo coronelismo e consolidado pela gerência empresarial em tempos atuais, com a aplicação de modelos administrativos moldados em torno da competência e habilidades funcionais”, analisa Aguiar. Tratando-se de dominação, a informação se mostra, mais uma vez, a melhor forma de combate.
 

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