08/04/2014 - 13:03

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Quando o dano moral vira mero aborrecimento

08/04/2014 - 13:03

Quando o dano moral vira mero aborrecimento

No interior, ações de consumidores por prestação inadequada de serviços estão sendo indeferidas por juízes
 
RENATA LOBACK
 
Mero aborrecimento. É como alguns magistrados têm qualificado as constantes quedas de energia, falhas no sinal de telefonia, má qualidade dos produtos, descumprimento de prazos, cobranças indevidas e tantos outros problemas, cada vez mais frequentes nas relações de consumo. Os processos constantemente indeferidos pelos juízes e as sentenças irrisórias nas ações que versam sobre os direitos do consumidor foram uma das principais queixas apresentadas pelos advogados ao presidente da Seccional, Felipe Santa Cruz, em sua passagem pelas comarcas do estado. 

Para Felipe, falta ao Judiciário uma postura mais firme em relação às grandes companhias prestadoras de serviços e fornecedoras de produtos. 

“Chegamos a um ponto em que somente uma mudança ideológica e cultural pode resolver estas questões. Há, infelizmente, o pensamento, por parte dos juízes, de que os advogados inflamam uma indústria de danos morais. Mas basta uma rápida olhada para as relações consumeristas e fica fácil constatar a real motivação de tantos processos. Entendo que, quando os juízes voltarem a enxergar a importância didática que há na melhoria de serviços, as empresas serão obrigadas a mudar. Há até uma tabela dentro das grandes companhias, que antevê perda de prazos, por exemplo. Ou seja, já trabalham considerando o erro. Infelizmente, o que vigora é a mentalidade de que não vale a pena resolver o problema, pois o ônus gerado é ínfimo”, observa o presidente da Seccional.

Em estudo recente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), foi constatado que 92,89% das ações tramitando nos juizados especiais cíveis do Rio de Janeiro são sobre matéria consumerista. Destas, 32,29% referem-se ao sistema financeiro, 24,36% ao varejo, 20,96% a telecomunicações e 10,48% à energia elétrica. Para Felipe, o tribunal precisa entender que é peça fundamental no processo pedagógico dessas companhias. 

“Se o litígio for rigoroso com essas prestadoras, a ponto de elas começarem a temer processos de consumidores insatisfeitos, alguma medida terá que ser tomada. Enquanto o lucro for maior que os pequenos prejuízos causados pelas baixas sentenças proferidas, nada será feito”, pondera.

No entendimento da advogada Carolina Barreiros, que conversou com Felipe em Vassouras, desde que aumentou a procura da população pela Justiça houve uma transformação na postura do Judiciário. “Os juízes parecem temer o aumento no número de processos. Ao invés de trabalharem do lado da razão e aplicarem o desestímulo às empresas, para que passem a oferecer serviços melhores sob pena de prejuízos graves, os magistrados, quando indeferem um processo ou sentenciam valores irrisórios, desestimulam a população a procurar por seus direitos. Em Paty do Alferes, que fica na região onde Carolina milita, as sentenças oriundas de ações sobre relações de consumo variam de R$9 a R$200, no máximo. “É vergonhoso”, lamenta a colega.
 
Sabrina Cochito, que advoga em Cambuci, afirma que as questões de Direito do Consumidor estão sendo tratadas como “coisa sem importância”. “As agências reguladoras das empresas não conseguem resolver estes conflitos fora do litígio e a maioria das ações iniciadas pelos consumidores é indeferida logo de cara. O advogado não consegue sequer explicar para o juiz de que forma aquela experiência mal sucedida afetou a vida de seu cliente”, contou. 

Segundo Sabrina, nos poucos casos em que o magistrado reconhece o direito do consumidor, geralmente a sentença é voltada para atender apenas a chamada obrigação de fazer, como o cancelamento de um débito ou a retirada de nome do cadastro restritivo. “Os juízes não sentenciam mais com danos morais nas ações consumeristas e, quando o fazem, é com valores muito baixos. Eu mesma atuei em um processo cuja indenização foi de apenas R$100”, relata.

Como consequência desses fatos, aponta ela, a população está desistindo de recorrer ao Poder Judiciário. “Em janeiro, uma operadora de telefonia fixa e móvel ficou quase um mês sem oferecer o serviço de internet em Cambuci. Até hoje nenhum cidadão procurou a Justiça para fazer valer seus direitos, mesmo com as taxas tendo sido cobradas integralmente. Há um descrédito na população, causado tanto pelas dificuldades encontradas nos trâmites processuais, na morosidade e na falta de juízes, quanto pela certeza de que as ações desta natureza são preteridas pelos magistrados. O que vejo é a violação do acesso à Justiça, princípio basilar em um país que se diz democrático”, analisa Sabrina.

De acordo com a advogada Flávia Tapajóz, que atua em Teresópolis, a justificativa mais ouvida nos indeferimentos de processos desta natureza é a de que os prejuízos foram considerados pelos juízes meros aborrecimentos. “Eles desconsideram o caso a caso, as variações de importância. Em outubro, uma empresa de telefonia móvel de Teresópolis teve um ‘apagão’ de cinco dias. Ficar sem celular para um adolescente, pode até ser um mero aborrecimento, mas para uma pessoa que depende deste serviço para o seu trabalho é um problema sério”, pondera a advogada. “Todos os processos sobre esta situação estão sendo indeferidos. Justiça para quem? Estamos abandonados”, reclama Flávia.
 

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