08/04/2014 - 12:34

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A urgência de um marco legal para as migrações

08/04/2014 - 12:34

A urgência de um marco legal para as migrações

Alexandre Tolipan*

O ano de 2014 deve entrar para os livros de História. Não apenas pelos eventos e pelas manifestações ou pelas eleições, mas porque em meio a tudo isso acontecerá pela primeira vez uma discussão séria, sistemática e coesa das questões de migração e refúgio. Além disso, este ano é um dos primeiros em que o fluxo migratório no país se inverteu. Em menos de uma década, o Brasil passou de país de saída de migrantes para receptor deles. Neste novo fenômeno deve-se destacar o fato de que muitos destes imigrantes são, na verdade, brasileiros voltando.

Neste cenário, devemos lembrar que nosso principal arcabouço legal migratório é o Estatuto do Estrangeiro, lei aprovada por decurso de prazo em 1980, na vigência da primeira emenda à Carta constitucional de 1967. Esta lei segue até hoje em vigor sem nunca ter conseguido se encaixar confortavelmente no novo modelo jurídico democrático inaugurado pela Constituição de 1988. Até hoje, a lei é interpretada à luz de princípios e modelos arbitrários; tem como paradigma a segurança nacional e uma velada desconfiança do estrangeiro.

A tudo isto soma-se o fato de que nunca foi criada uma política coerente para a migração, delegando-se ao terceiro ou quarto escalão do governo a criação ou manutenção de políticas esparsas e muitas vezes discordantes sobre assuntos pontuais a seu cargo. Três ministérios dão conta do tratamento da migração, além da Polícia Federal e de vários órgãos que acabam se envolvendo. Nesse emaranhado, advogados e migrantes se perdem sem um fio condutor harmonioso para guiá-los.

Por estas razões e pela falta de uma política e um plano nacional de migração é que as questões migratórias continuam surgindo no noticiário e suas soluções são sempre através de ações pontuais e determinadas pela visibilidade política. Casos como de Zelaya [Manuel Zelaya, presidente deposto de Honduras que se refugiou durante quatro meses na embaixada brasileira], de Battisti [Cesare Battisti, ex-ativista italiano alvo de uma pendenga entre seu país e o Brasil em torno de sua extradição], dos haitianos [milhares deles cruzaram ilegalmente as fronteiras brasileiras] e muitos outros não encontram soluções sérias de largo prazo (ainda que muitas se repitam) calcadas em princípios de direitos humanos.
 
Além destes casos que ganharam repercussão, aqueles que advogam para imigrantes e estrangeiros no Brasil poderão citar muitos nos quais a incongruência das decisões impera. Ao contrário do que ocorre no Judiciário, os processos administrativos não mantêm uma base de jurisprudência e situações por vezes idênticas têm decisões opostas. Problema este acentuado pela falta de um órgão único que congregue os diversos tipos de visto. Assim, temos o Ministério das Relações Exteriores, o da Justiça e o do Trabalho, a Polícia Federal e uma miríade de órgãos e instituições dividindo a emissão de vistos. Para cada tipo e subtipo existe um caminho diferente, alguns começando pela Polícia Federal, muitos pelo consulado e alguns diretamente junto à pasta do Trabalho.
 
Soma-se a este pandemônio uma sortida variedade de portarias e resoluções ministeriais que funcionam como arcabouço legal, apesar de mal divulgadas e muitas vezes incoerentes.

A solução dada aos haitianos, com todos os seus méritos, não gerou estabilidade ou criou uma política previsível para outros casos análogos. Foram distribuídos “vistos humanitários” sem uma base legal. O que, por um lado, dá visibilidade positiva ao país, por outro não permite uma previsibilidade nos casos de catástrofes ambientais ou humanitárias, gerando, portanto, instabilidade jurídica sobre o assunto.

Finalmente, para coroar os variados problemas vividos pela advocacia e pelos estrangeiros no mundo da imigração no Brasil, ele é dominado por despachantes, geralmente servidores aposentados dos órgãos em que “atuam” e conseguem qualquer coisa, desprestigiando a classe dos advogados e criando uma verdadeira máfia para conseguir-se um visto.

Assim, fica clara a urgência de se estudar seriamente um novo marco legal para a migração, bem como um novo marco institucional. A migração deve ter casa própria sob a égide da Secretaria especial de Direitos Humanos da Presidência da República.

Felizmente, por iniciativa do Ministério da Justiça, ocorrerá este ano a 1ª Conferência Nacional sobre Migração e Refúgio (Comigrar), fórum onde todas as questões pertinentes poderão ser discutidas. Tráfico de pessoas, refugiados, deslocados ambientais, retornados, investimento estrangeiro e outras situações serão traduzidas em uma política nacional, bem como um plano de migração.

Como vemos, 2014 poderá entrar para história por várias razões, entre elas por ser o ano em que o país decidiu dar uma virada em seu tratamento dos migrantes e refugiados e fazer por merecer a fama de hospitaleiro.
 
*Presidente da Comissão de Direito Internacional da OAB/RJ

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