15/09/2014 - 15:50

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Adoção da videoconferência coloca em discussão ampla defesa e segurança pública

15/09/2014 - 15:50

Adoção da videoconferência coloca em discussão ampla defesa e segurança pública

Instalado pelo Tribunal de Justiça, sistema  para interrogatório de presos perigosos gera questionamentos de defensores públicos e advogados sobre limites de uso

CÁSSIA BITTAR

Trinta e um de outubro de 2013. O Fórum Regional de Bangu é invadido por quatro homens armados para resgatar dois prisioneiros que prestavam depoimento em uma audiência. Na tentativa de fuga, um tiroteio resultou em duas pessoas feridas e na morte de uma criança e um policial.

A partir do trágico episódio, aumentou a pressão para o uso do recurso da videoconferência em inquéritos e depoimentos de presos, previsto na Lei 11.900/2009, e os tribunais iniciaram o processo de instalação de salas para atender o modelo, pensado para uso excepcional com detentos considerados de altíssima periculosidade. Com a estrutura do Tribunal de Justiça (TJ) pronta, especialistas acompanham seu funcionamento e abrem novo questionamento sobre os limites de adoção da videoconferência no processo penal.

Atualmente, o TJ conta com cinco salas de videoconferência no Fórum Central, três no Complexo de Gericinó e uma na Unidade Prisional da Polícia Militar, disciplinadas pelo Ato Normativo 05/2014. As salas de audiências das 42ª e 43ª varas criminais e da Auditoria Militar também foram adequadas e equipadas para utilização do sistema.

Segundo a juíza auxiliar da presidência do tribunal, Alessandra Bilac, antes de o ato entrar em vigor, somente as duas salas da Central de Assessoramento Criminal possuíam o sistema de videoconferência. “Até então o modelo era utilizado apenas para audiências de presos custodiados em outros estados, em especial nos presídios federais”.

O processo de instalação no TJ, iniciado em novembro do ano passado, foi acompanhado por representantes da OAB/RJ, do Ministério Público, da Secretaria de Segurança Pública, da Secretaria de Administração Penitenciária e pela Defensoria Pública, entidade que demonstra preocupação com a possibilidade de uso excessivo.

“O modelo de videoconferência está disciplinado no Código de Processo Penal (CPP) com a especificação de que seja aplicado apenas em casos excepcionais. A utilização, portanto, deve seguir esse rol de possibilidades apenas”, afirma o defensor-geral do Estado, Nilson Bruno, ponderando que alguns defensores alegam a inconstitucionalidade do dispositivo do CPP porque desrespeitaria o princípio de ampla defesa. “Eles alegam que, para o princípio ser respeitado, é necessária a presença do defensor no local. Mas esta não é uma posição uniforme da Defensoria. Estamos atentos, mas também não temos o poder de declarar inconstitucionalidade em qualquer legislação, então devemos cumpri-la”, frisa Bruno.

A 1ª subdefensora pública-geral, Maria Luiza Saraiva, acrescenta: “Temos em jogo dois bens jurídicos em contraposição: a garantia de ampla defesa do réu preso e a segurança de se evitar o deslocamento para os interrogatórios”. Segundo ela, a questão principal que preocupa o órgão é a fundamentação da decisão de utilização do sistema: “O modelo só não pode virar regra. Para isso, é importante que a alta periculosidade seja determinada pelo juízo e não pela Secretaria do Estado de Administração Penitenciária [Seap]”.

Defensor público e participante da comissão de implementação do sistema de videoconferência criada pelo TJ, Eduardo Gomes Moraes explica: “Praticamente como regra, a Seap classifica como presos de alta periculosidade a grande maioria deles. Por isso estamos tão preocupados para que a prática não seja banalizada”.

O presidente da OAB/RJ, Felipe Santa Cruz, afirma que é favorável ao uso do sistema, mas ressalta que a Seccional compartilha da preocupação da Defensoria, apontando outra questão: “Por questão de segurança do processo, a presença de dois advogados ou defensores está sendo mais comum em audiências deste tipo: um junto ao preso e outro na sala do Fórum, com o juiz, o que cria um ônus a mais para a parte”.

Ele salienta que a Ordem acompanha a implantação desde o início. “Como qualquer novidade, estimulamos que esta seja usada para o bem e esses pontos preocupantes devem ser amplamente discutidos antes da disseminação do sistema”, salienta.

Para o advogado e professor de Direito Penal do Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais (Ibmec) e da Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (Emerj) Antônio Pedro Melchior, a possibilidade de nomear um defensor para ficar junto ao preso somente na hora é problemática: “O réu tem direito ao acompanhamento de um advogado de sua confiança.”

Melchior é ainda mais crítico: “Não podemos ser ingênuos. Sabemos como os complexos penitenciários funcionam. Devemos desconfiar dos canais de comunicação disponibilizados para a conversa a distância entre réu e defensor. Há pouquíssimo tempo, vimos e protestamos contra a interceptação judicial de ligações telefônicas de advogados com seus clientes”, observou, citando a investigação policial sobre supostos crimes cometidos durante protestos no Rio de Janeiro.

“O direito de audiência, ou seja, de acompanhar a instrução ao lado do defensor, é desdobramento do princípio constitucional da ampla defesa. Nesse sentido, a perspectiva de o preso não ser conduzido para acompanhar a audiência ao lado do defensor presencialmente representa uma perspectiva utilitarista do processo penal, na qual as garantias são vistas como entraves ao exercício do poder punitivo”, ressalta, ainda, o advogado.

Melchior alerta para a questão dos autos de instrução: “O réu tem direito de acesso imediato ao processo e, longe do juízo, perde esse respaldo”. Ele argumenta que as expressões presentes no Código de Processo Penal para autorizar a videoconferência são vagas. “Termos como ‘periculosidade’ e ‘ordem pública’ são sujeitos a interpretação de cada juiz, são passíveis de arbitrariedade.”

O advogado acredita que o uso da videoconferência já está sendo ordinário. “O que era para se ater a casos específicos está se alastrando para um número além do razoável. Os gastos com os deslocamentos justificam oficialmente, mas a finalidade oculta da utilização abusiva da videoconferência é clara: realizar uma espécie de ‘assepsia’ do foro, que acompanha o contexto de uma sociedade neoliberal e seus processos de higienização social de uma forma geral. As pessoas evitam contato com os presos.”

A presidente da Comissão de Defesa, Assistência e Prerrogativas (Cdap) da Seccional, Fernanda Tórtima, afirma que ainda não recebeu nenhuma reclamação de advogados quanto ao uso irrestrito da videoconferência ou problemas enfrentados na sua aplicação. Fernanda, que também participou da comissão de implantação do sistema no TJ, diz que pontos como a segurança da sala particular de conversa a distância entre advogado e preso foram acompanhados de perto pela Ordem.

O presidente da Comissão de Segurança Pública da OAB/RJ, Breno Melaragno, que também integrou o grupo, explica: “Há um telefone à prova de grampos nessa sala restrita e o advogado que está no Fórum pode interromper o interrogatório à hora que quiser para falar reservadamente com seu cliente”, citando uma das exigências da Ordem e da Defensoria durante o processo de instalação. Ele observa, porém, que considera mais relevante que o profissional opte por ficar junto à parte: “A qualidade do equipamento é muito boa e é possível ver tudo que acontece na sala de audiência. Não há danos à falta de presença física.  Isso minimiza nossa preocupação em relação a eventuais coações ao detento”.*

Fernanda aponta outro lado da questão: os problemas enfrentados no deslocamento dos prisioneiros. “É uma desumanidade o que fazem quando eles têm que ir para o Fórum. Ficam trancafiados em um furgão por horas, por vezes em situações de muito calor e sem água. É possível que muitos prefiram, sim, ser interrogados das cadeias”, opina.

Presidente da Associação dos Magistrados do Estado do Rio de Janeiro (Amaerj), Rossidélio Lopes concorda que o modelo atende a liberdade integral do preso. Para ele, a videoconfência pode ser comparada com o processo eletrônico no que diz respeito à atuação do juiz: “Há de se entender que essa é uma medida inevitável para o futuro do Judiciário, que, levando sempre em consideração as prerrogativas do advogado e o direito de defesa do réu, só traz segurança e economia na estrutura necessária para locomoção dos presos”.

Breno Melaragno afirma que não há ilegalidades na prática. “Acompanhamos de perto e interviemos no processo de implantação. Cabe ao tribunal manter a videoconferência no caráter excepcional determinado na legislação”, frisa.

A presidente da Cdap reforça: “A necessidade da realização da videoconferência deve ser fundamentada nos termos do CPP. No Ato Normativo 05/2014, discutido pela comissão antes de sua publicação, consta a determinação de que esse sistema só seria aceito em casos de presos de altíssima periculosidade, assim classificados pelos órgãos de segurança e pela Seap. E a decisão que a determina deve ser disponibilizada às partes com antecedência de dez dias, para permitir, inclusive, impugnação”.

Os próximos meses parecem ser decisivos para estabelecer com clareza os limites do uso da videoconferência. A certeza é de que o modelo é mais um passo para a modernidade da Justiça. Resta saber como esse passo será dado.
 
 
*Trecho modificado em 16/9
Versão online da Tribuna do Advogado

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