15/09/2014 - 15:52

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Conciliação na delegacia

15/09/2014 - 15:52

Conciliação na delegacia

Para tentar desafogar o Judiciário, projeto de lei prevê que delegados de polícia possam promover conciliação em delitos de menor poder ofensivo, dispensando inquérito e processo. Iniciativa gera polêmica.

VITOR FRAGA

Criados pela Lei 9.099/95 para ampliar o acesso e desafogar a Justiça, os juizados especiais cíveis e criminais – voltados para crimes de menor potencial ofensivo e litígios menos complexos definidos em lei – estão sobrecarregados. Com o objetivo de amenizar o problema, tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 1.028/11, que prevê a possibilidade de os delegados de polícia promoverem a conciliação em situações envolvendo delitos desse tipo, dispensando o inquérito e o processo.

A iniciativa gerou polêmica em uma audiência pública realizada pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ) da Câmara, no dia 15 de julho, para debater o tema. De um lado, entidades como a Ordem dos Advogados do Brasil e a Associação dos Magistrados Brasileiros, que apoiam o projeto com algumas ressalvas, além da Associação dos Delegados de Polícia do Brasil, da Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal e da Associação Nacional dos Policiais Rodoviários Federais, que se manifestaram igualmente favoráveis. Já a Procuradoria-Geral da República, a Federação Nacional dos Policiais Federais, a Associação Nacional dos Membros do Ministério Público e a Associação Nacional dos Procuradores da República posicionaram-se de forma contrária à proposta.

O PL 1.028/11 trata dos juizados especiais cíveis e criminais “possibilitando a composição preliminar dos danos oriundos de conflitos decorrentes dos crimes de menor potencial ofensivo pelos delegados de polícia”. Segundo o artigo 73 do texto em tramitação, na fase anterior ao processo tal composição será realizada pelo delegado. Em juízo, “a conciliação será conduzida pelo juiz ou por conciliador sob sua orientação”. 

O parágrafo 1º do mesmo artigo estabelece que o acordo preliminar conduzido pelo delegado será homologado “pelo juiz competente para julgar o delito, ouvido o Ministério Público”. Relator do projeto na CCJ, o advogado e deputado José Mentor (PT/SP) argumenta que a medida poderia ajudar a desafogar o Judiciário. “A finalidade da proposta é simplificar, agilizar e reduzir os custos do atendimento nos juizados especiais criminais para uma melhor prestação jurisdicional”, afirma. O parlamentar salienta que além de analisar “o teor do debate, desde a inconstitucionalidade do projeto, que foi levantada com argumentos”, é preciso também avaliar sugestões de alterações como “a inclusão de outras profissões como conciliadoras.” 
Uma das alterações sugeridas pela Ordem foi no sentido de que a lei determine a presença de um advogado na conciliação. “Vamos aguardar as manifestações, analisá-las e aí pensar no nosso parecer. A audiência também demonstrou divergências, mas a participação da sociedade e dos representantes da OAB, dos delegados, dos procuradores, dos magistrados e dos policiais foi muito importante para ouvirmos novos argumentos favoráveis e contrários ao projeto”, pondera Mentor.

O membro da Associação Juízes para a Democracia e titular da 2ª Vara Cível da Leopoldina, André Felipe Tredinnick, defende o projeto. “Desde que observados os direitos fundamentais dos indivíduos – devido processo legal, inafastabilidade do Judiciário, vedação do juízo ou tribunal de exceção –, sou a favor de qualquer projeto que permita a adoção das chamadas soluções alternativas de litígios”, diz o magistrado. 
Para ele, o litígio “é um produto de uma sociedade não cooperativa, baseada na apropriação e na exclusão”, e não na cooperação e na mútua ajuda. “Uma sociedade litigante é, antes de tudo, produto de uma sociedade hiperconsumista. O processo judicial como solução única do conflito implica consumir igualmente a ideia de justiça, uma solução artificial, que produz apenas mais litígio e conduz à elitização do sistema”, critica Tredinnick, citando as cerca de 20 milhões de novas ações propostas no Brasil em 2013, que para ele representam “o fracasso de um sistema montado na ideia de uma Justiça consumível”.

Já o conselheiro seccional e criminalista Luís Guilherme Vieira considera a iniciativa inconstitucional. “O PL 1.028/11 nasce com a pecha da inconstitucionalidade. A Constituição de 1988 não delegou à Polícia judiciária tal competência, nem aos delegados. Não pode, por conseguinte, lei ordinária desafiá-la, ponto final”, enfatiza. Para Luís Guilherme, “estamos diante de um projeto de lei que, por desventura ultrapasse todas as etapas no Legislativo e venha a ser sancionado pelo Executivo, morrerá nas mãos do Supremo Tribunal Federal, que, guardião da Carta Cidadã, declarará a lei inconstitucional”. Ele estende a avaliação de inconstitucionalidade à lei que criou os juizados (Lei 9.099/1995), que na época da sua criação teria sido “decantada como milagrosa solução para desafogar o Judiciário dos processos penais decorrentes dos crimes de baixo potencial ofensivo e as contravenções penais”, o que não corresponderia à realidade, diz. 

“Pura panaceia!”, resume Luís Guilherme, acrescentando que “a prática demonstra que a ‘política criminal’ idealizada, em princípio dita eficaz, nasceu fracassada” quanto ao pretendido desafogo do Judiciário. “Desde a origem, pensou-se em um Brasil mil anos à frente, em que as situações inerentes aos crimes de menor potencial ofensivo e as contravenções penais seriam resolvidas em sede policial, ao tempo em que esta se encontraria aparelhada, ou seja: com as presenças de um juiz (togado e leigo), de um promotor, de um defensor público, de conciliadores e salas da OAB”, salienta o conselheiro.

Durante a audiência na Câmara, algumas mudanças foram sugeridas ao relator do projeto, como a presença obrigatória de um advogado à conciliação, proposta pelo Conselho Federal da Ordem. “Estou no processo de receber contribuições, ouvir todos os setores envolvidos, para elaborarmos o parecer. Superada a questão constitucional várias sugestões são tidas, em princípio e à primeira vista, como viáveis”, diz Mentor.

Luís Guilherme lembra que o fato de o texto do projeto não prever a obrigatoriedade da participação do advogado na conciliação foi um dos motivos pelos quais o Conselho Federal já havia se manifestado, em 2012, de forma contrária à proposição. “Porque, dentre outros, o advogado é, queiram ou não, indispensável à administração da Justiça”, reforça. Na opinião do juiz Tredinnick, a presença do profissional à conciliação também é fundamental. “Deve ser facultado às partes, nesse momento, se fazer representar por advogado ou defensor público. Acredito que tal deveria constar obrigatoriamente no termo de conciliação e que deveria haver disposição expressa no sentido de que as partes têm o direito de manifestar interesse de serem assistidas”, defende.

A adequação do perfil das delegacias e dos delegados para possibilitar a conciliação é outro aspecto polêmico da discussão. Mentor considera que, apesar de os agentes policiais já realizarem conciliações informais, serão necessárias medidas de adaptação. “Mudanças de ordem estrutural, administrativa e pessoal deverão ser realizadas. Por exemplo, assim como os delegados, os demais servidores da corporação irão passar por cursos de formação e conciliação ministrados pelos respectivos tribunais. Mas mesmo com as novas atribuições, a polícia continuaria exercendo sua atividade principal, estabelecida pela Constituição Federal”, diz Mentor. 

Na opinião de Luís Guilherme, a maioria dos agentes “ainda não introjetou sua relevante missão”, que seria a apuração de fatos supostamente criminosos. “Compete à Polícia judiciária, por comando da Constituição da República, com exclusividade, presidir inquéritos policiais”, apesar de alguns membros do Ministério Público compreenderem que também podem presidir inquirições criminais, no ponto, contra minha pétrea convicção”, aponta.

Tredinnick sustenta igualmente que “cabe à Polícia Civil, dirigida por delegados de Polícia, as funções de Polícia judiciária e a apuração de infrações criminais”, e que, portanto, a tentativa de atribuir à autoridade “a possibilidade de tentar a composição do litígio implica ampliação de suas funções.” Porém, para o magistrado, uma polícia mais preparada para a conciliação seria algo positivo. “Alterar a mentalidade de repressão, infelizmente entranhada em todas as instituições relacionadas a apuração criminal, ação penal e julgamento, sempre será positivo. Outras medidas podem ser buscadas para esse fim, como a desmilitarização das polícias militares, o corpo da polícia científica separado da polícia de investigação”, argumenta, acrescentando que a “Justiça criminal deve estar voltada para litígios complexos e de repercussão ampla na sociedade, como crimes de colarinho branco, de organizações criminosas, ações de prova complexa e ações coletivas”.

A proposição do PL 1.028/11 está sujeita à apreciação conclusiva pelas comissões, ou seja, se aprovada nestas instâncias não precisará passar por votação em plenário. O texto que tramita na CCJ é o substitutivo apresentado pelo deputado Fernando Francischini (SDD/PR) – que é delegado e foi o relator da proposta original do também deputado e delegado João Campos (PSDB/GO) –, e já aprovado na Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado.

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