03/08/2018 - 21:04

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O preço do abandono

03/08/2018 - 21:04

O preço do abandono

Decisão do STJ que condenou pai a pagar indenização por danos morais decorrentes de abandono afetivo gera polêmica
 
 CÁSSIA BITTAR

Discussão antiga do Direito de Família, a possibilidade de reparação por danos morais em casos de abandono afetivo ganhou contornos inéditos no mês de abril, quando o Superior Tribunal de Justiça (STJ) condenou um pai ao pagamento de indenização de R$ 200 mil à filha por não ter participado de sua vida, nem ter lhe dado a devida atenção na infância e adolescência.

Na primeira instância, o pedido fora julgado improcedente. Porém, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ/SP) reformulou a decisão e deu ganho de causa à filha, estabelecendo indenização de R$ 415 mil.  No julgamento, o TJ/SP reconheceu que a filha perdeu, inclusive, o direito de obter a mesma educação que os irmãos, visto que o pai tinha condições financeiras para isso. No dia 24 de abril, a sentença foi confirmada pelo STJ e o valor, considerado “demasiadamente elevado”, foi reduzido.

A relatora do processo no STJ, ministra Nancy Andrighi, considerou que qualquer relação parental em que haja sofrimento, mágoa e tristeza pode gerar pagamento de indenização à parte que foi vítima, indicando que danos decorrentes das relações familiares não podem ser diferenciados dos ilícitos civis em geral.

A diferenciação entre o sentimento – de caráter subjetivo e, portanto, não obrigatório – e o cuidado guiou o voto da ministra. Segundo ela, não se discutia o amor do pai pela filha, mas sim o dever jurídico de cuidar dela. Não se trata, portanto, de valorizar economicamente o sentimento. “É indiscutível o vínculo não apenas afetivo, mas também legal, que une pais e filhos”, explicou Nancy no julgamento, afirmando que “amar é faculdade, cuidar é dever”.

“Independentemente de os pais viverem juntos, ambos têm o dever, explícito no Código Civil, de conviver com a prole e dirigir sua criação”, concorda a advogada e vice-presidente nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFam), Maria Berenice Dias.
 
A decisão, que ainda pode ser objeto de recurso no Supremo Tribunal Federal (STF), teve repercussão nacional e se tornou mais um marco do novo paradigma paterno-filial, iniciado com o surgimento e disseminação do exame de DNA para comprovar vínculos biológicos. A sentença do STJ criou uma jurisprudência não vinculante, ou seja, caberá ao juiz decidir em casos similares.

Segundo o desembargador do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF-2) e especialista em Direito de Família Guilherme Calmon, a distinção é fundamental: “Não podemos dizer que já há uma jurisprudência consolidada. Temos algo que ainda está em construção. Ainda há muito a ser discutido e julgado, para que possamos afirmar que exista uma orientação jurisprudencial em um ou outro sentido”, afirma ele, lembrando um caso anterior apreciado pelo STJ em que não foi reconhecido o dano moral pela comprovação de alienação parental da mãe em relação ao pai.
A necessidade de analisar detalhes específicos de cada situação foi, inclusive, frisada por Nancy em seu voto, quando a ministra salienta que “merecem serena reflexão (...) as inúmeras hipóteses em que essa circunstância é verificada, abarcando desde a alienação parental, em seus diversos graus (...), como também outras, mais costumeiras, como limitações financeiras, distâncias geográficas etc.”

No entendimento do vice-presidente da Seccional e também especialista na matéria, Sérgio Fisher, impedimentos de ordem familiar devem contar na avaliação do juiz: “Deve haver razoabilidade para entender os casos. Muitas vezes, nem o próprio filho exige essa atenção. Ela é apenas um capricho da mãe, que usa, muitas vezes, um filho de fora do casamento como arma para atingir a família do pai. Por isso, essa decisão tem que ser vista com muita cautela. Não é absurda sob qualquer ponto de vista, mas não deve se tornar regra”.
 
As peculiaridades também são ressaltadas pelo presidente da Comissão de Direito de Família da OAB/RJ, Bernardo Garcia: “Não se pode afirmar que falta de cuidado com o filho implica, necessariamente, uma reparação civil. Nessa hipótese específica foi comprovado que o pai tinha condições financeiras de cuidar da menina, morava perto e não havia obstáculos impostos por terceiros para o convívio”.

Acreditando, diferentemente de Fisher, que, apesar do cuidado a ser tomado, o caso ajuda, sim, na criação de uma nova orientação, Garcia cita como exemplo sentença semelhante da desembargadora Maria Regina Nova, do Tribunal de Justiça do Rio, divulgada pouco tempo depois do julgamento do STJ. Na decisão, um pai foi condenado a pagar R$ 50 mil por não ter reconhecido a paternidade nem dado apoio material ou emocional ao filho. “Isso prova que uma nova jurisprudência está sendo formada”, conclui.

“É uma questão mais difícil de ser tratada, porque ainda é nova”, comenta Berenice. “Aplicar as leis é fácil. O difícil é construir o Direito”, analisa ela, lembrando que alguns tribunais regionais já seguiram a orientação: “Já houve decisões como essa na Justiça do Rio Grande do Sul e de São Paulo que não contaram com recursos e, por isso, não ganharam essa repercussão”.

Uma das grandes polêmicas que o dano moral por abandono afetivo gera é a questão da mensuração econômica da falta de cuidado. Para Calmon, à medida que mais casos como esse forem julgados, deverão ser estabelecidos valores mínimo e máximo para a indenização: “Tal como ocorre em relação a outras questões do Direito de Família, fica clara a necessidade de termos um parâmetro que possa gerar uma fixação da reparação por dano moral. Na verdade, esse também ainda é um tema não consolidado na jurisprudência”.

De acordo com o desembargador, critérios como reiteração de comportamento e ocorrência de dolo no dano devem contar na hora de se estabelecer o valor da compensação. “Esses não são critérios, porém, definidos por lei”, pondera.

“No fundo, essa indenização tem caráter simbólico. É uma penalização pelo descumprimento de obrigações legais, mas é aleatório. Quando se fala em dano moral e, agora, em dano afetivo, não existe parâmetro legal. Atenta-se um pouco para as condições de poder aquisitivo do filho ou do pai, mas isso tudo é muito relativo”, reforça Berenice.

A indenização se tornou mais uma forma de punição por abandono parental, o que era feito, muitas vezes, com a perda do poder familiar, ou seja, dos encargos de assistência e auxílio estabelecidos na lei e dos deveres de convívio e guarda.
“Os pressupostos para a perda do poder familiar não são os mesmos para a responsabilização civil. São situações diferentes que podem inclusive, eventualmente, gerar as duas sanções concomitantes. Mas em alguns casos, como nos de abandono afetivo, a perda desse poder seria um prêmio para o familiar em questão”, analisa Calmon.

Esse reconhecimento, para Garcia, ilustra uma evolução do Direito de Família, considerando o afeto como valor jurídico: “De dez anos para cá, observamos esse caminhar para o reconhecimento de que afeto cria vínculos”, observa, citando a paternidade socioafetiva – uma relação que se baseia em outras condições além da genética, como a convivência e a afetividade.

O fato é que, mais do que um marco na humanização do processo judicial, o caso já tem ramificações concretas: no Congresso Nacional, tramitam dois projetos de lei que pretendem criar a possibilidade de indenização por dano moral decorrente de abandono afetivo. É uma nova perspectiva para os filhos esquecidos.

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