26/06/2014 - 11:39

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Doutor ou não, eis a questão

26/06/2014 - 11:39

Doutor ou não, eis a questão

A cena é comum em todos os cantos do Brasil:
‘Ô doutor, vai uma graxa aí?’. ‘Doutor, minha dor de cabeça não passa’. ‘Infelizmente sua audiência está atrasada, doutor’.
Seja para designar determinados profissionais, especialmente em tribunais, delegacias e hospitais, ou apenas com o intuito de mostrar deferência na forma de tratamento, o termo ‘doutor’ faz parte do cotidiano de todos nós. 
Em relação ao emprego da expressão no meio jurídico, de tempos em tempos, volta à pauta a questão: advogados devem ou não ser chamados de doutores? Apenas um costume ou uma garantia?
 
EDUARDO SARMENTO 
Em outubro de 2013, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais acatou o pedido de um advogado que ingressou com ação pleiteando que fosse obrigatoriamente tratado pelo título de doutor durante as audiências de que participasse, “bem como em demais atos da vida privada”. Já em abril deste ano, o ministro do Supremo Tribunal Federal Ricardo Lewandowski negou o pedido de um juiz que reivindicava o tratamento de ‘doutor’ ou ‘senhor’ por parte dos funcionários do prédio onde mora. A indecisão do próprio Poder Judiciário, que ora determina a utilização do tratamento, ora dispensa a deferência, serve de combustível para a polêmica.

De um lado estão os defensores do argumento de que doutores são apenas aqueles que fizeram doutorado. Do outro, os que afirmam ser direito e tradição tal reconhecimento para os profissionais do Direito.

Diante da controvérsia sobre o tema, o professor universitário e especialista em etimologia Deonísio da Silva elucida a origem do termo. “A palavra doutor vem do latim doctor, que é do mesmo étimo de docere, o mesmo que docente, aquele que ensina”, explica, deixando clara a ligação direta entre o rótulo e o conhecimento. “O título originalmente foi dado a professores, inclusive àqueles que ensinavam as leis e, consequentemente, exerciam o Direito”, confirma Deonísio.

O uso da distinção no meio acadêmico, especificamente para profissionais do Direito, data da Idade Média, segundo ele. “O primeiro título de doutor para um advogado é conferido pela Universidade de Bolonha ainda no século XII, no que foi seguida pela Universidade de Paris”, informa.
 
Esclarecidas as origens etimológicas e históricas do vocábulo, é possível tratar o debate sob a ótica brasileira. Argumenta-se por aqui que um suposto alvará régio editado no início do século XIX por D. Maria I, rainha de Portugal, teria dado origem a um decreto imperial responsável por conferir aos advogados o grau de doutor.

Em relação ao alvará, não há provas concretas de sua existência, mas a Lei Imperial de 11 de agosto de 1827, que criou os cursos de Ciências Jurídicas e Sociais nas cidades de São Paulo e Olinda, determina, em seu artigo 9º, que  “os que frequentarem os cinco anos de qualquer dos cursos, com aprovação, conseguirão o grau de bacharéis formados. Haverá também o grau de doutor, que será conferido àqueles que se habilitarem com os requisitos que se especificarem nos estatutos, que devem formar-se, e só os que o obtiverem, poderão ser escolhidos para lentes”.

Está criada uma nova confusão. Autores de artigos sobre o tema, o procurador do Ministério Público da União Marco Antônio Ribeiro Tura e o advogado Rodrigo Martins Carvelo discordam em relação ao sentido dado à palavra ‘estatutos’, que, de acordo com a legislação imperial, determinaria a correta aplicação do termo doutor.

Para Tura, ao possibilitar a candidatura a lente (o equivalente a livre docente, pré-requisito para ser professor titular de uma universidade nos dias de hoje), fica claro que “os estatutos são os das respectivas faculdades de Direito existentes”. Em relação ao mesmo trecho, Carvelo acredita que as exigências são equivalentes ao Exame de Ordem atual. “Tendo o acadêmico completado seu curso de Direito, sido aprovado e estando habilitado em estatuto competente teria o título de doutor. Assim como os advogados habilitados na OAB”, compara.

Apesar das discordâncias em relação à aplicação teórica do termo, os dois fazem questão de tratar o assunto no dia a dia com respeito às tradições de tratamento aos profissionais da área, mesmo fazendo claras ressalvas em relação à obrigatoriedade de sua aplicação.

Tendo advogado por dez anos e integrado a Comissão Especial para Acompanhamento da Reforma do Poder Judiciário da OAB/SP, além da Comissão Permanente de Direito Comunitário do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB), Tura trata o tema de forma objetiva. “Não falo de tradições, leigas ou religiosas, mas de direito positivo. Respeito os rituais na vida cotidiana. Estes, porém, assim como regras de etiqueta, são aceitos por mera deferência com os demais integrantes daquela comunidade, mas não por serem deveres jurídicos ou mesmo morais. Não confundamos simples tradições com costumes juridicamente vinculantes”, ressalta.

Carvelo, por sua vez, destaca a importância da advocacia para a sociedade e afirma que, apesar de defender que todo advogado é doutor, não faz nenhum tipo de reivindicação em relação à forma como é tratado. “A advocacia sem sombra de dúvidas é a mais social das profissões, pois tratamos com o cidadão e suas necessidades diariamente. Apesar de sempre me dirigir aos colegas de profissão como doutores, dispenso o tratamento. A singularidade do profissional está no reconhecimento de um trabalho feito com qualidade e eficiência, e não em uma forma de tratamento”, conclui.

Como uma das expressões humanas menos afeitas à imposições, a língua falada é de difícil controle. Para Deonísio, apesar das polêmicas e diversas teorias, o problema é menor do que o alardeado. “O brasileiro já é muito respeitoso no tratamento. Doutor, hoje em dia, muitas vezes substitui outros termos como deferência, especialmente vindo de pessoas mais humildes. Você não pode proibir alguém de chamar outra pessoa de doutor, assim como não pode proibir que tratem alguém como senhor”, relaciona.
 
Indo ao encontro de Tura e Carvelo, ele trata a obrigatoriedade de um tratamento específico como equívoco. “São esdrúxulas as tentativas de regulamentação do tema. Os casos devem ser sempre resolvidos pelo contexto e depende do bom senso, que é o suficiente. Não é necessário disciplinar isso. De que adiantaria, no fim das contas, impor uma forma de tratamento a alguém que não reconhece no outro doutor em coisa alguma?”, salienta.
 

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