26/06/2014 - 10:42

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‘Protestos são sintoma de uma crise de crescimento da nossa democracia’

26/06/2014 - 10:42

‘Protestos são sintoma de uma crise de crescimento da nossa democracia’

Doutor em Ciência Política e pesquisador em Direito na Fundação Casa de Rui Barbosa, Júlio Aurélio Vianna Lopes dedicou os últimos meses à análise das manifestações ocorridas ano passado. No estudo, ele busca interseções e diferenças entre os pleitos levados às ruas em países como Espanha, Turquia, Estados Unidos e, claro, o Brasil, além de traçar um perfil dos ativistas. “Os protestos são sintomas de crise da nossa democracia, mas de uma crise de crescimento. Não pugnaram por retrocessos autoritários, mas, ainda que de modo fragmentário, por uma representação política a ser exercida com transparência constante”, afirma Júlio Aurélio, que apresentou oficialmente a pesquisa dia 2 de junho, na sede da fundação, em paralelo ao lançamento do livro Desafios institucionais da ordem de 1988, que reúne artigos sobre os direitos difusos, e à abertura da exposição Cidadãos de junho, com fotos das manifestações.

MARCELO MOUTINHO

Sua pesquisa identifica pontos em comum entre as reivindicações ocorridas em diferentes países entre 2011 e 2013. Poderíamos afirmar que há uma “agenda mundial” nos protestos? 
 
Júlio Aurélio – Foram movimentos de renovação ética de democracias, pois só ocorreram em regimes democráticos vigentes e cuja classe política (em geral) foi objeto de uma crítica que tenta lhes impor uma ética retributiva – em políticas públicas específicas – entre eleitos e cidadãos. Não se limitaram à indignação com a corrupção, mas postularam papel mais funcional da ética nas democracias, associando-a diretamente com a garantia de direitos universais e difusos, ou seja, sem titulares delimitados por categoria ou grupo. Estavam animados por uma “ética de dádivas” ou de reciprocidade entre sociedade e Estado, exigindo aperfeiçoamento da democracia representativa e não sua eventual redução ou supressão autoritária. Enquanto, entre nós, o transporte, a saúde e a educação – nesta ordem – se destacaram, em outros países se enfatizaram os direitos ao trabalho (Espanha), à paz (EUA) e ao lazer (Turquia). Com maior (caso espanhol) ou menor (caso brasileiro) grau de formulação de propostas, foram movimentos em prol de medidas que não se esgotassem no plano imediato (como a redução de tarifas de transporte em cidades brasileiras), mas também, e principalmente, de longa projeção. Em todos os casos, reclamaram por qualidade de vida comum e urbana. Neste sentido, duas foram as interfaces dos movimentos por reforma ética das democracias. Uma delas, a crítica à legitimidade de gastos públicos em área (a Copa no Brasil, os bancos privados na Espanha e EUA etc.) na qual consideraram indevidos ou excessivos, em detrimento de certos direitos difusos, considerados tão ou mais importantes, bem como dependentes diretos da qualidade de alguns serviços públicos. Ao invés de questionarem as respectivas cargas tributárias, vocalizaram a necessidade de retorno dos recursos públicos em prestações condizentes. A outra interface foi a exigência de que a classe política, como um todo (não alguma liderança), retribua à sociedade inteira através de políticas que garantam direitos difusos específicos. 

Seu estudo mostra que mais de 80% dos manifestantes brasileiros que foram às ruas em 2013 não se identificam com partidos, associações ou lideranças. Assistimos ao nascimento de uma nova forma de fazer política?
 
Júlio Aurélio – Há, no mínimo, tantos indivíduos politicamente animados fora da vida política e associativa formal quanto dentro dela. Opiniões colhidas pelo Ibope, durante o auge das manifestações, em  junho de 2013, apontam uma magnitude, entre os manifestantes, tão expressiva destes indivíduos que indica que mesmo a profusão de novos grupos de ativistas (como o Movimento do Passe Livre, que detonou as mobilizações) não têm sido capazes de canalizar esta animação política. De fato, percentual equivalente aos que não se afinam com a política formal é de eleitores que votaram nas últimas três eleições, se lembram de seus votos e têm forte ou médio interesse na política. Ou seja, são, efetivamente, politizados, embora muito críticos do ativismo associativo e, principalmente, partidário. Ao contrário de outros cientistas políticos, estou convicto – e a comparação internacional reforça tal compreensão – de que este descolamento entre sociedade e representação política é um fenômeno estrutural e não apenas conjuntural. Isto é, expressa uma complexidade que continuará se afirmando, entre os indivíduos, porque as sociedades contemporâneas são ordens tão mutáveis, em todos os sentidos, que a política e os direitos modernos não conseguem e não conseguirão ordená-las, suficientemente. A atualidade necessita de uma reformulação dos regimes democráticos – cujos princípios de soberania popular e de pluralismo ideológico não foram postos em causa pela ampla maioria dos manifestantes – que possibilite expressões informais, como candidaturas avulsas (não partidárias), por exemplo.
 
Que papel partidos e entidades representativas desempenharão nesse novo cenário?
 
Júlio Aurélio – O papel fundamental é e será mobilizar para os direitos modernos – individuais e coletivos – nas eleições e, eventualmente, no campo judicial. Este último é papel já conferido pela Constituição de 1988, mas pouco exercido por partidos e associações, que tendem a carreá-lo para o Ministério Público, através de representações ao órgão, ao invés de, preferencialmente (quando o fazem), pugnar diretamente por aqueles. Também é fundamental que compreendam que seus temas específicos dependem, cada vez mais na realidade social contemporânea, de dimensões tão abrangentes (como as moradias da mobilidade urbana ou os empregos do acesso tecnológico), que direitos individuais e coletivos têm sua eficácia implicada em direitos difusos. Partidos e entidades precisam aprender a importância dos direitos difusos, para seus próprios interesses – mesmo os de curto prazo – e, ao mesmo tempo, não se considerarem seus únicos ou principais veículos, os quais sempre serão expressões pouco ou não orgânicas, mas igualmente efetivas, de ativistas alheios às formas estabelecidas, em qualquer momento.

Os protestos revelaram um aparente descompasso entre Estado e sociedade. Em que momento, a seu ver, esse divórcio começou a se dar? Como o poder público pode se reaproximar da população? 

Júlio Aurélio –
As manifestações de junho de 2013 não se opuseram à democracia de outubro de 1988. Apenas 5% dos manifestantes consideravam as depredações implícitas ao movimento. Mesmo considerando os 28% que as admitiam apenas em situações excepcionais – especialmente truculência policial –, eram amplamente majoritários os manifestantes contrários a elas, em qualquer hipótese. Por isso refluíram, em fins de junho, à medida que não cessava a polarização entre abusos policiais e manifestantes violentos, os quais passaram a predominar em 2014. De fato, os protestos são sintomas de crise da nossa democracia, mas de uma crise de crescimento. Afinal, não pugnaram por retrocessos autoritários, mas, ainda que de modo fragmentário, por uma representação política a ser exercida com transparência constante, permeável aos temas considerados fundamentais e que os priorizem na sua atuação. O alheamento dos manifestantes quanto à política institucionalizada revela potencial até então insuspeitado de participação e cidadania ativa. É preciso ressaltar, aliás, que o movimento de junho de 2013 foi vitorioso, embora de forma parcial. Não me refiro à redução das tarifas de transporte público, então recentemente majoradas, mas a outras importantes conquistas. Em junho, e sob as pressões das multidões, ocorreram inovações legislativas exatamente no sentido de renovação dos mecanismos democráticos e cuja relevância é inegável. Fim do voto secreto na cassação de parlamentares, ficha limpa para servidores públicos, a corrupção de gestores públicos se tornou crime hediondo, royalties do pré-sal foram destinados à educação e à saúde, o exercício do Ministério Público foi preservado pela rejeição de emenda constitucional prestes a ser aprovada. Ao poder público, em geral, caberia promover formas de controle independentes e permeáveis a cidadãos externos a associações organizadas. Embora não fosse meta dos protestos de junho, logo no início de julho e devido às multidões do mês anterior, foi retomada a tramitação de projeto de lei que confere direitos aos usuários de serviços públicos que dormitava há anos no Congresso. Aliás, se um mínimo de organização dos manifestantes tivesse redundado em direção provisória dos mesmos – o que se deu nos movimentos análogos ao nosso, em outros países já citados –, a aprovação desta lei talvez pudesse ser impulsionada, já que, sem a buscar, os manifestantes a prestigiaram. Tal legislação está prevista desde 1988 e é uma lacuna constitucional com a idade da atual Carta Magna. 

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