03/08/2018 - 21:01

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Torturadores, quem são eles?

03/08/2018 - 21:01

Torturadores, quem são eles?

Torturadores, quem são eles?


* Kátia Rubinstein Tavares

Muito vem sendo discutido o Projeto de Lei nº 7.376/2010, que tramita na Câmara dos Deputados, visando à criação da Comissão Nacional da Verdade, com atribuição de elucidar as circunstâncias das torturas, mortes e desaparecimentos dos perseguidos políticos no Brasil durante o regime militar (1964-1985). Diante da constatação de violações dos direitos humanos nesse período, poderá ser revista a decisão do Supremo Tribunal Federal que, em abril de 2010, rejeitou a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 153, proposta pelo Conselho Federal da OAB, questionando a concessão da anistia aos agentes do Estado pelos crimes cometidos nos anos ditatoriais.

A decisão fundamentou-se no entendimento de que a Lei nº 6.683/79 alcançou os crimes de qualquer natureza, políticos e comuns, praticados no período compreendido entre 1964 e 1979. Entendeu-se, ainda, que houve um acordo político da anistia (ampla, geral e irrestrita) e pela abrangência da conexão criminal entre os crimes realizados pelos agentes públicos e opositores do regime militar, o que juridicamente constitui equívoco. Segundo a doutrina, crime conexo é o que apresenta liame subjetivo com outro delito, a fim de facilitar ou assegurar sua execução, ocultação ou impunidade, ensejando um único fim em sua prática. O simples exame do texto legal demonstra que os agentes do governo jamais foram anistiados. Concedeu-se anistia, estritamente, aos delitos praticados com motivação política e, também, àqueles conexos a estes, não mencionando os crimes comuns, como tortura, estupro, assassinato, ocultação de cadáver, dentre outros.

Por outro lado, o Brasil é signatário de tratados internacionais, ratificados pelo Congresso, que asseguram o respeito aos direitos humanos, considerando, sobretudo, as torturas praticadas em razão de perseguições políticas, delitos contra a humanidade, sendo, assim, imprescritíveis. Além disso, atualmente, o Estado brasileiro encontra-se condenado perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos (OEA), que determinou a apuração das responsabilidades penais pelas atrocidades ocorridas na Guerrilha do Araguaia, no período da ditadura militar. Ressalte-se: a Constituição de 1988 não recepcionou legislações que violam seus preceitos fundamentais e os direitos humanos, logo, é inconcebível a impunidade estabelecida a autores e mandatários de crimes de lesa humanidade perpetrados nos chamados anos de chumbo.

A decisão do STF teve repercussão negativa no âmbito internacional, principalmente na ONU, ante da postura jurídica adotada por países latino- americanos, como Chile, Peru e outros, os quais puniram os agentes públicos que cometeram crimes durante suas ditaduras. O Brasil é o Torturadores, quem são eles? único país que ainda se recusa a investigar e dar publicidade aos fatos, ocultando o reconhecimento da verdade. Já na Argentina, devido à perseverança da sociedade, os julgamentos dos agentes da repressão foram iniciados a partir de 2005, depois de revogada a legislação de anistia, possibilitando que os tribunais impusessem punições severas a ex-presidente e aos demais autores pelos delitos cometidos no governo de exceção.

Seremos realmente uma nação democrática quando aprendermos a lição dos argentinos. Essa luta não é só de grupos de direitos humanos, membros do governo, entidades civis, como a OAB, especialmente, da Seccional do Rio, que lançou a Campanha pela Memória e pela Verdade, mas de todo cidadão brasileiro. É preciso que o Brasil enfrente o seu passado, reescrevendo essa página negra da nossa história.

Não se trata de revanchismo. No Brasil, muitos militantes de esquerda passaram por torturas desumanas, sequer se submeteram a processo com direito de defesa, foram condenados à morte sumariamente ou desapareceram. Os que sobreviveram ficaram encarcerados durante anos. Sem falar dos que tiveram de se exilar do país. E os torturadores, quem são eles? A sociedade precisa conhecê-los e os tribunais devem julgá-los, garantindo-lhes a ampla defesa. Por isso, é necessário abrir os arquivos militares, pois lembrar é combater, reprovar, ao passo que esquecer é permitir, tolerar ou aceitar a prática da tortura. Na lição do mestre Piero Calamandrei: "O esforço despendido por aquele que procura a justiça não é nunca infrutífero, ainda que a sua sede fique por saciar: Bemaventurados aqueles que têm fome e sede de justiça!"

* Advogada criminalista e doutoranda em Direito Penal Constitucional pela Universidade de Buenos Aires, Argentina.


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