03/08/2018 - 20:59

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Comissão da Verdade não quer punir, mas recuperar a História

03/08/2018 - 20:59

Comissão da Verdade não quer punir, mas recuperar a História

'Comissão da Verdade não quer punir, mas recuperar a História'

 

Marcos Rolim

 

Especialista no tema e integrante da equipe que redigiu o Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH) do governo federal, o jornalista Marcos Rolim é incisivo ao defender o documento, lembrando que as propostas são resultado de um processo iniciado ainda no governo de Fernando Henrique Cardoso e fruto de ampla discussão. Ele se vale da mesma contundência para justificar a criação da controversa Comissão Nacional da Verdade. "O papel da Comissão é recuperar a história a respeito das violações, trabalhar para a abertura completa dos registros oficiais do período e colaborar na busca pelos restos mortais dos desaparecidos. Entendemos que o essencial era o acesso à verdade e que o comprometimento com a ideia da punição não agregava consenso e poderia ser contraproducente", afirma Rolim, que concedeu à TRIBUNA a seguinte entrevista (leia a íntegra no Portal da OAB/RJ: www.oabrj.org.br).

 

 

Por Marcelo Moutinho

 

Como se deu o trabalho de elaboração do PNDH?

 

Rolim - O PNDH foi proposto e aprovado durante o primeiro governo Fernando Henrique Cardoso, em 1996. Ainda no governo FHC, surgiu o PNDH-II, que agregou novas metas, especialmente na área dos direitos econômicos e sociais. O PNDH-III procura atualizá-las e torná-las mais concretas a partir da definição de responsabilidades. Foi precedido de um amplo processo de discussões com a sociedade que culminou na 11ª Conferência Nacional de Direitos Humanos, com mais de duas mil pessoas. A Conferência aprovou uma resolução com milhares de propostas, que funcionaram como uma pauta para o governo. Ou seja, era preciso que o governo decidisse quais seriam incorporadas ao programa e elaborar alternativas para temas sobre os quais não havia acúmulo significativo. Para isso, a Secretaria Especial de Direitos Humanos contou com a colaboração de três especialistas - Paulo Sérgio Pinheiro, Luiz Alberto Gomes de Souza e eu -, que auxiliaram no processo de redação do documento. Trabalhamos por seis meses com a equipe técnica da SEDH.

 

 

A criação da Comissão da Verdade tem provocado polêmica.  Seus críticos acusam o governo de querer revogar a Lei da Anistia...

 

Rolim - A acusação é completamente infundada e assinala uma das manifestações mais graves de antijornalismo que já presenciei. A 11ª Conferência havia sugerido a criação de uma Comissão de Verdade e Justiça. O nome reflete, exatamente, a pretensão dos delegados de investigar e punir os responsáveis pelas violações na época da ditadura. Debatemos o tema e entendemos que o essencial era o acesso à verdade e que o comprometimento com a ideia da punição não agregava consenso e poderia ser contraproducente. Por isso, mudamos a sugestão, propondo a criação de uma Comissão de Verdade cujo papel seria recuperar a história a respeito das violações, trabalhar para a abertura completa dos registros oficiais do período e colaborar na busca pelos restos mortais dos desaparecidos. Isto significa, em bom jornalismo, que a notícia era exatamente a oposta àquela que foi produzida: com o programa, o governo se afastava da proposta de punir os responsáveis pelas violações da época da ditadura. Não porque se tenha entendido que esteja vedado pela Lei da Anistia (que nunca mencionou o crime de tortura), mas por se entender que a proposta não era conveniente.

 

 

Os críticos cusam o governo de querer punir só os que participavam do aparato estatal e lembram que muitos dos que lutaram contra a ditadura também cometeram crimes...

 

Rolim - Não há como se equiparar as condutas por duas razões: primeiro, a resistência armada às ditaduras é um princípio do Direito Internacional consagrado há mais de um século - pelo liberalismo, assinale-se, não pelo marxismo. Segundo a doutrina liberal, além de um direito, a resistência às autocracias é um dever do particular, já que os atos do Poder Público não possuem a presunção da legalidade. Na tradição jurídica brasileira não há dissenso quanto a isto. Em segundo lugar, os militantes que pegaram em armas no Brasil foram, em sua maioria, mortos pela repressão. Entre os sobreviventes, quase todos foram processados e presos, e boa parte enfrentou ainda a tortura e/ou o exílio. Os militantes da esquerda armada possuem nome, rosto e endereço conhecidos; já os torturadores vivem nas sombras e boa parte deles sequer foi identificada até hoje; muitos foram promovidos em suas carreiras nas polícias e nas FFAA e alguns, como Brilhante Ustra, escrevem livros negando o ocorrido, o que é nova agressão e desrespeito às vítimas e a seus familiares. O conflito que tivemos durante a ditadura não envolveu “partes” com os mesmos direitos e obrigações. De um lado estava o Estado, que optou pela repressão ilegal e  montou aparatos especiais de tortura e execução extrajudicial, de outro estava uma dúzia de pequenos grupos de esquerda que imaginaram ser possível desencadear uma guerra revolucionária a partir de "focos" nas cidades ou na zona rural.  A reivindicação histórica é conhecer os responsáveis pela tortura e pelos assassinatos dos que foram presos (e que, portanto, como prisioneiros, estavam sob a tutela do Estado).  Isto não significa que uma Comissão de Verdade não possa examinar reclamos sobre eventuais violações praticadas por grupos de esquerda. Há, certamente, casos que mereceriam, a meu juízo, uma discussão específica; o que faria bem a todos, especialmente à esquerda.

 

O senhor diz haver um "pacto de mediocridade" entre políticos e comandantes militares para manter o silêncio oficial. O que é preciso para que os arquivos sejam abertos?

 

Rolim - É preciso coragem, o que, infelizmente, não é uma característica muito comum entre nossos políticos. Observe-se que mesmo o governo Lula tem se caracterizado por tratar a chamada "questão militar" com luvas de pelica. Em sete anos, pouco se avançou neste tema e o governo chegou a recorrer de decisões judiciais que o obrigavam a revelar os registros oficiais sobre o Araguaia. Neste aspecto, Argentina, Uruguai e mesmo o Chile e o Paraguai estão muito à frente do Brasil.


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