22/10/2012 - 11:52

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Pena e demagogia - Fernanda Tórtima

22/10/2012 - 11:52

Pena e demagogia - Fernanda Tórtima

Com alguma frequência e, mais recentemente, a propósito do julgamento da ação penal 470, a opinião pública vem se manifestando no sentido de que se devam fixar em alto patamar as penas aplicáveis a crimes cometidos em detrimento da administração pública, em especial a corrupção (solicitação ou recebimento, por funcionário público, de vantagem indevida) e o peculato (apropriação, desvio ou furto de bens ou valores na posse do funcionário), em razão das consequências sociais decorrentes da prática de tais condutas delituosas.
 
Qualquer extrapolação acerca da definição das consequências imediatas, que integram o delito, implicará clara violação do princípio da legalidade
Não raro comparam-se as aludidas condutas criminosas ao crime doloso contra a vida de homicídio, sob o argumento - sedutor, à vista desarmada - de que o prejuízo causado à administração pública tem como consequência a impossibilidade de o Estado arcar com direitos básicos e essenciais que deveriam ser garantidos à população e, em última análise, a violação à integridade física e à vida de milhares de cidadãos brasileiros.

É preciso que se veja, no entanto, que as inegavelmente nefastas consequências socioeconômicas decorrentes da prática de tais crimes já foram por certo consideradas pelo legislador quando instituiu a escala penal - ou seja, as penas mínima e máxima - de cada um deles. Assim, não por acaso, e sim por conta da relevância dos bens jurídicos protegidos em cada caso, prevê o Código Penal, para o crime patrimonial de apropriação indébita, pena de um a quatro anos de reclusão, e para o crime de peculato – aí incluído o peculato apropriação – a pena de dois a 12 anos!

Também dispôs o legislador sobre os critérios dos quais o magistrado deve se valer para aplicar, em casos concretos, as penas sugeridas pela acima referida escala penal. Entre eles, é bem verdade, está prevista a circunstância relativa às consequências do crime. Parece óbvio, contudo, que se está ali tratando de suas consequências imediatas. O Direito Penal, como sabido, pune condutas determinadas e seus resultados diretos, desejados ou ao menos previsíveis. Qualquer extrapolação acerca da definição das consequências imediatas, que integram o delito, implicará clara violação do princípio da legalidade, que constitui um legado irrevogável do Estado democrático de Direito.
 
As consequências sociais e mediatas advindas da prática de crimes não podem ser tomadas em conta no momento em que o juiz aplica a pena ao caso concreto
Por outro lado, sabe-se que o acusado deve conhecer todas as circunstâncias que poderão ser objeto de futura eventual sentença condenatória, inclusive aquelas referentes à dosimetria da pena. Essa exigência correspondente ao princípio constitucional do exercício da defesa ampla. E parece bastante óbvio não ser possível ao réu defender-se de acusações consistentes em fatos absolutamente difusos e indeterminados, que consistiriam em consequências indiretas, tais como a falta de atendimento eficiente em hospitais ou de adequada moradia para a população.

Obviamente não é dizer que os fins sociais da lei e as exigências do bem comum devem ser ignorados pelo magistrado em seus julgamentos. No entanto, tais critérios não podem se sobrepor, notadamente quando em prejuízo do acusado, às acima referidas garantias processuais e penais - princípios da legalidade e da ampla defesa -, todas previstas em nossa Constituição Federal.

As consequências sociais e mediatas advindas da prática de crimes não podem ser tomadas em conta no momento em que o juiz aplica a pena ao caso concreto pelo simples motivo de que isso não está previsto em lei. As circunstâncias a serem consideradas para fundamentar a pena a ser aplicada estão previstas expressa e taxativamente no Código Penal. Isso é Direito Penal, o resto é demagogia.

* Fernanda Tórtima é presidente da Comissão de Defesa, Assistência e Prerrogativas (Cdap) da OAB/RJ
 
Versão online da Tribuna do Advogado, edição de setembro.

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