08/10/2012 - 17:10

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Relação a três: contrato de união estável gera polêmica

08/10/2012 - 17:10

Relação a três: contrato de união estável gera polêmica

Um homem e duas mulheres que vivem juntos, como uma família, no Rio de Janeiro, e a tabeliã Claudia do Nascimento Domingues, de um cartório de Tupã, no interior de São Paulo, foram responsáveis por uma decisão histórica para o Direito de Família. Isso porque Cláudia, no fim de agosto, lavrou uma escritura pública inédita no país, que declara uma união estável poliafetiva entre os três.

Mas haveria alguma vedação da lei para esse tipo de união? A presidente da Comissão de Direito Homoafetivo e especialista na área, Raquel Castro, entende que não. "Não há impedimento legal para se fazer uma escritura pública declaratória. Essas pessoas estão declarando que vivem dessa forma, ainda que ela não seja reconhecida pelo ordenamento jurídico. Não há previsão legal ou jurisdicional no Brasil permitindo essa forma de união, nem reconhecendo direitos a ela, mas também não tem nada que a impeça", diz.
Contrato de união estável entre um homem e duas mulheres, lavrado em São Paulo, suscita discussão entre especialistas das áreas jurídica e psicanalítica sobre o conceito de família

A confusão com a bigamia prevista como crime no Código Penal também não se aplica, segundo Raquel, pois esta se refere a dois casamentos simultâneos, não a uniões estáveis. "Alguns chamarão o caso de poligamia e, com certeza, não é uma monogamia. Mas deve-se entender que monogamia é um costume, e não é um princípio jurídico. A lei só fala em união entre duas pessoas, mas nada diz que, além disso, é proibido. É um contrato apenas. Não tem nada a ver com o instituto do casamento, no qual isso está explícito", explica.

A advogada alerta que o caso também não pode ser confundido com relações paralelas, em que pessoas casadas mantêm amante ou outra família: "Estamos falando aqui de uma família só, três pessoas que já vivem sob o mesmo teto e que querem oficializar essa união".

para a presidente da Comissão do Direito da Família do Instituto dos Advogados de São Paulo, Regina Beatriz Tavares da Silva, a escritura é inconstitucional e, portanto, sem validade: "A união estável existe entre duas pessoas. Isso está especificado. Quando o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu a união homossexual, o fez porque a sociedade a aceita como uma união familiar. Mas relações poligâmicas configuram um retrocesso gravíssimo em nossa sociedade".

"A sociedade brasileira não aceita a poligamia", continua. "Perante a sociedade, portanto, essas pessoas são indignas e o posicionamento da tabeliã afeta os princípios constitucionais da preservação da dignidade humana e da proteção da família e de seus membros".

O procurador da República e doutor em Direito Público pela Uerj Daniel Sarmento discorda de Regina Beatriz, mas pondera: "Do ponto de vista de filosofia política, o Estado não deve interferir na organização de vida familiar das pessoas. E a tendência do Direito de Família, da qual comungo, é não adotar olhares moralistas. Mas acho muito difícil que isso vingue no Poder Judiciário hoje".

No documento, as vontades do trio ficam claras em cláusulas que especificam regras para pensão, benefícios em planos de saúde e seguros, comunhão de bens e até separação. Segundo os especialistas, porém, essas regras são sujeitas à aprovação das empresas e órgãos públicos e ao julgamento dos tribunais.

Perante a sociedade essas pessoas são indignas
Regina Beatriz
integrante do Instituto dos Advogados de São Paulo
É um caso muito complexo e ainda há muitas coisas que o Judiciário vai ter que decidir. Em uma união entre duas pessoas, metade do patrimônio vai para cada um, de acordo com o regime de bens da união parcial, por exemplo. Nesse caso, se houver separação, não temos como saber como será feito. Se só um membro do trio se separar? Se só se separar de um dos outros dois membros? Como será feita a divisão? Como será dividida a herança em caso de falecimento? Isso tudo ainda deve ser bem amadurecido pela Justiça", observa Raquel.

"Como não acho que essa decisão vá ser tutelada agora pelo Direito, o que eles devem conseguir é apenas o reconhecimento de uma sociedade de fato, o que só tem consequências em partilhas de bem", explica Sarmento. Nesse caso, Regina Beatriz observa que deverá ser comprovado investimento de capital ou trabalho na renda do outro para ter direito à parte dela. "A sociedade de fato precisa ser provada pelos fatos do dia a dia, não em uma escritura prévia", opina.
 
Para Raquel, o conceito de família é amplo: "Esse é só um exemplo de que existem vários tipos de família, ainda que a Constituição só tenha dado alguns exemplos. Antigamente só era possível constituir uma família pelo casamento. Hoje, isso não é necessário e casais homoafetivos foram reconhecidos. É um conceito em contínua transformação".

Essa mudança está só começando e é uma chance de as pessoas viverem muito melhor do que vivem
Regina Navarro
psicanalística e sexóloga
A opinião da advogada é a mesma da psicanalista e sexóloga Regina Navarro Lins, que trabalha o conceito de "poliamor" e analisa o caso pelo viés social. "A família é muito maleável, seu modelo já mudou bastante e continua mudando. Surgem outros valores, outras formas de pensar, de se relacionar, e cada vez mais as pessoas estão buscando alternativas para a relação fechada a dois". "É um momento muito especial", continua, "em que os padrões tradicionais de comportamento não dão mais respostas satisfatórias e abre-se espaço para cada um escolher sua forma de viver".

Segundo ela, dentro de 20 a 40 anos, a quantidade de pessoas com parceiro único poderá ser mínima. "O amor romântico dá sinais de que está saindo de cena para uma busca de cada um pela sua individualidade. O que estamos observando é que existe uma tendência de cada vez menos pessoas se fecharem numa relação a dois e mais pessoas optarem por relações múltiplas, baseadas na amizade, na cumplicidade", opina.

Para Regina, o documento lavrado em Tupã é parte do processo de mudança e aceitação social em curso: "É um processo gradual, que começa com um cartório aceitando uma união entre três pessoas, depois vem alguém e dá uma declaração na mídia contando uma experiência do tipo, o assunto é abordado na novela... São pequenos sinais da gradativa mudança de mentalidade da própria população".

"Essa mudança está só começando e é uma chance de as pessoas viverem muito melhor do que vivem", acredita Regina. "Elas sofrem muito com seus medos e culpas, amando duas pessoas ao mesmo tempo e tendo que escolher. Acho que é uma tentativa de viverem algo que corresponde mais à realidade. Afinal, não amamos vários amigos e filhos ao mesmo tempo?", questiona.

À parte opiniões e questionamentos sobre a validade do documento, o fato é que o conceito de família vive uma fase de expansão. Até que ponto o Judiciário a acompanhará é assunto para os próximos capítulos.

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