13/06/2016 - 14:19

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Não pode ter sido em vão (ou: não tolerar é a ordem do dia)

13/06/2016 - 14:19

Não pode ter sido em vão (ou: não tolerar é a ordem do dia)

DANIELA GUSMÃO*

A palavra-chave é consentimento. Seja qual for a orientação sexual do indivíduo, não pode haver sexo sem consentimento. Claro, nítido, que dure todo o momento do ato sexual. Sim, porque uma pessoa pode consentir e depois, em algum momento, mudar de ideia. E seu parceiro deve, imediatamente, entender que não há mais o famoso e fundamental consentimento. A partir dessa premissa, não é necessário sequer explicar o caso de quem não pode emitir sons inteligíveis, seja por embriaguez ou por inconsciência.

O Brasil inteiro se mobilizou pela jovem moradora da Zona Oeste. Independentemente de qualquer opinião que algum sexista ainda tenha coragem de emitir, seus algozes, por absoluta liberalidade, se auto-incriminaram postando vídeos e fotos nas redes sociais, nos quais ficam evidentes a falta da palavra mágica consentimento, a brutalidade do ato odioso e o número de indivíduos envolvidos na monstruosidade perpetrada. O ônus da prova não é da vítima, nunca foi e nunca será.

Praticamente no mesmo dia em que veio à tona esse estupro coletivo, uma estudante de educação física da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro se matou por não ter superado o trauma da tentativa de estupro sofrida, três anos e meio antes, no alojamento do campus. E sejamos francos. Não conseguiu conviver com o fato de o crime ter ficado impune e com os olhares que passou a receber daqueles que a julgavam culpada. 

No mesmo sábado em que a adolescente da Zona Oeste foi encontrar seu namorado, várias outras mulheres e crianças foram estupradas em algum lugar do Brasil. Segundo estatística do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), uma mulher é estuprada no país a cada 11 minutos. O número não oficial, dos estupros que não são levados ao conhecimento das autoridades, jamais saberemos ao certo. Pouco antes havia acontecido um estupro coletivo no Piauí, sem a mesma repercussão nas redes sociais, e tantos outros permanecem ocultos, sem voz.

No mundo dito civilizado, existem alguns conceitos básicos de convivência em sociedade que precisamos reafirmar a todo momento na educação de nossas crianças e sempre lembrar aos indivíduos adultos. Equidade e igualdade entre os seres humanos, independentemente de sexo ou orientação sexual, talvez sejam os mais importantes desses conceitos. A título de exemplo, sabemos que um homem não pode tratar uma mulher como ser desimportante, inferior e desigual, e que as mulheres não podem ser agredidas moral ou fisicamente ou violentadas. Sabemos? Ensinamos? Algumas pessoas dirão que sim. Talvez muitas. Ainda não é suficiente. Precisamos finalmente aprofundar esse debate, sair do conforto das frases feitas, dos lugares comuns que não estão atingindo o núcleo duro do problema. 

Nossos filhos, nossos jovens, nossos homens sabem o que é consentimento? Conhecem o limite do corpo da outra pessoa? Explicamos claramente aos nossos filhos o que fazer quando ouvirem a palavra NÃO? Sabem que precisam parar, caso sua parceira pareça não ter condições de decidir, por ter bebido demais, ou por ter ficado inconsciente? Não há espaço para a mensuração de cada um. O consentimento da mulher deve ser claro.

Os homens brasileiros precisam aprender que seus instintos sexuais têm lugar e hora, e que no mundo civilizado estes instintos não podem se sobrepor à lei e à vontade da mulher. Não há mais espaço para grupos de pornografia por mensagens ou em redes sociais. Quem posta ou retransmite imagens pornográficas ou não autorizadas comete crime. Piadas sexistas não merecem risadas, frases machistas devem ser veementemente rechaçadas na mesa do bar, propagandas que utilizem a mulher como objeto sexual não podem ser veiculadas. 
Não tolerar é a ordem do dia. Não apenas por parte das mulheres, mas também pelos homens conscientes. Conscientes de que cada uma dessas atitudes é base de sustentação da chamada cultura do estupro. O mal precisa ser cortado pela raiz.

O principal óbice à luta contra a cultura do estupro é muito similar à dificuldade que enfrentam aqueles que lutam contra o trabalho infantil: a falta de sensibilização e mobilização da sociedade civil. De fato, ainda que todas as evidências demonstrem que a vítima foi subjugada, não pode se defender, não consentiu, ainda que os próprios estupradores tenham se auto-incriminado através de vídeos, ainda haverá vozes misóginas a proclamar que ela não deveria ter saído de casa, não deveria ter usado roupas provocantes ou incitado o estuprador. 

É chegado o momento. Precisamos lutar contra a violência em cada lar do país, em cada ambiente de trabalho, em cada vagão de trem. Se perdermos mais uma vez a chance de unirmos as instituições da sociedade civil, os poderes constituídos e os órgãos de comunicação numa campanha nacional sobre o tema, o retrocesso será ainda maior, a exemplo do vergonhoso projeto de lei em tramitação no Congresso Nacional que dificulta o acesso ao aborto por mulheres vítimas de abuso sexual.

As mulheres e as crianças brasileiras confiam em cada um de nós, porque vai acontecer daqui a 11 minutos novamente. E novamente. E novamente. 
 
*Presidente da Comissão Permanente OAB Mulher

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