03/08/2018 - 21:04

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Terra sem lei?

03/08/2018 - 21:04

Terra sem lei?

Protestos contra projetos de lei americanos e ataques a sites de bancos no Brasil trazem à tona discussão sobre a regulamentação da internet no país
 
CÁSSIA BITTAR
A relativa perplexidade pelo fim do maior site de compartilhamento de arquivos na rede – o Megaupload –, somada à crescente popularidade do grupo hacker Anonymous (anônimos, em português) no Brasil,  fomentaram  no país a discussão sobre a regulamentação da internet. Os ativistas virtuais, apoiados por grande parte dos internautas, alegam que projetos de leis que tramitam no Congresso Nacional  iriam ferir a liberdade de expressão, enquanto outra parcela da sociedade e os especialistas da área encaram a falta de legislação específica para o mundo digital como um verdadeiro perigo.
A cruzada virtual começou a ser travada em janeiro, quando o FBI bloqueou as atividades do site, e os membros do grupo hacker Anonymous  se transformaram em soldados de um contra-ataque que derrubou páginas como a da Universal Music, uma das companhias que acusam o Megaupload de pirataria, a do Departamento de Justiça dos Estados Unidos, a do FBI, a da Riaa (associação das gravadoras dos Estados Unidos) e o da MPAA (associação dos estúdios cinematográficos do país).
O apoio mundial de grande parte dos internautas, mobilizados pelo fim do Megaupload, deu força ao movimento e levou um número consistente de congressistas norte-americanos a deixar de apoiar as leis antipirataria Stop Online Piracy Act (Sopa) e Protect IP Act (Pipa), suspendendo a tramitação da primeira no Congresso e adiando a votação do Senado sobre a segunda. A alegação era a de que o bloqueio do site provara que as leis seriam desnecessárias para a regulamentação da questão dos direitos autorais na web.
Aproveitando a popularidade do coletivo, os Anonymous brasileiros ganharam destaque na mídia com a “operação semana de pagamento” (OpWeeksPayment), que ocasionou a lentidão e paralisação, por alguns minutos, de sites das principais instituições financeiras nacionais na semana de pagamento do salário da maioria dos trabalhadores brasileiros.
“Nem esperávamos tamanha repercussão. Conseguimos ser ouvidos até mesmo em outros países e isso foi muito bom. Não nos preocupamos se iam gostar ou não de nossos atos, o que queremos é passar adiante nosso alerta à população contra a desigualdade social e a corrupção, seja pelo amor ou pela dor”, afirma, sob anonimato, um dos membros do iPirates, grupo que faz parte do movimento e que foi responsável pela invasão.
Segundo a professora do Departamento de Comunicação Social da PUC-Rio Adriana Braga, os protestos configuram uma nova forma, trazida pela internet, de defender velhas questões. Porém, assim como uma grande fração dos internautas, ela é contrária a esse tipo de ação: “A liberdade de expressão é nobre e legítima, mas sua banalização fere outros direitos já adquiridos. A mobilização é salutar, mas a invasão de um território privado, que está protegido, é um excesso. Deve haver locais específicos para esse tipo de manifestação”.
A advogada especialista em Direito Digital Patrícia Peck acredita que, mesmo sem uma legislação mais precisa sobre o assunto, essas atividades podem ser tipificadas em vários artigos do Código Penal: “Um ataque que tira do ar um site não é nada pacífico. Eles trouxerem prejuízos e/ou abalo à reputação das organizações envolvidas, portanto, temos meios legais para buscar uma reparação em relação aos danos materiais e morais. O desafio é a identificação”.
A facilidade com que os sites foram invadidos retomou a cobrança por uma lei brasileira específica para crimes virtuais. Na esteira disso, projetos de lei como o de nº 89/1999, que criminaliza ações como a destruição de dados eletrônicos de terceiros, o acesso e a obtenção de informações em sistemas restritos sem autorização e a transferência não autorizada de dados particulares, voltaram à pauta.
Conhecido como Lei Azeredo, graças às mudanças no texto original propostas pelo deputado federal Eduardo Azeredo (PSDB/MG), o texto está na Câmara dos Deputados há pelo menos três anos. Sua aprovação seria, para o advogado membro da Comissão de Direito e Tecnologia da Informação da OAB/RJ Alexandre Mattos, a melhor solução para preencher as lacunas deixadas pelo Código Penal: “O Brasil é vulnerável a ataques virtuais porque não temos leis específicas para proteger o cidadão. A punição para o estelionato e os crimes de dano realizados pela internet ainda são muito brandas”, explica ele.
Alexandre acredita, porém, que o jogo político que adia a aprovação do projeto torna-o cada vez mais obsoleto. Já Patrícia ressalta que o texto foi mal compreendido: “O projeto sofreu muitas mudanças, demorou muito e virou um Frankestein. É uma pena. Havia ali ganhos valiosos para toda a sociedade, e voltamos à estaca zero”, lamenta ela.
Na visão dos dois advogados, a crítica dos que apelidaram o projeto de AI-5 digital é incabível. “O PL 89/1999 não gera censura. Pelo contrário, gera segurança jurídica, o que é essencial para o pleno exercício das liberdades em um Estado democrático. Se eu não sei quem está do outro lado da tela, se o Estado não tem como descobrir a identidade de uma pessoa que me causa um dano, voltamos ao Estado de natureza”, ressalta Patrícia, alertando: “Temos que ter cuidado para não confundir proteção da privacidade do indivíduo com anarquismo digital”.
Alexandre reforça: “O ponto mais urgente a ser inserido na legislação brasileira é a obrigatoriedade de identificação de todos os usuários. Quando acessar uma lan house, por exemplo, o indivíduo deveria digitar seu CPF ou qualquer número de documento de identificação. O interesse de manter esse sigilo é um interesse criminoso, pois o cidadão de bem está desprotegido”.
Já o projeto do Marco Civil da Internet, que pode ser votado antes mesmo do PL 89/1999, tem como objetivo estabelecer direitos e deveres na utilização da rede no Brasil, tanto de seus usuários e dos provedores de conexão quanto do Poder Público, e tramita na Câmara dos Deputados sob o número 2126/11.
“Seu objetivo inicial era tratar da proteção de dados de usuários, o que é até uma exigência da Comunidade Europeia a países com quem mantém relações comerciais”, conta Patrícia. A advogada pondera, no entanto, que a redação atual deixa brechas: “O Marco Regulatório é mais amplo que a Lei Azeredo, mas trata de questões civis, de consumidor, enquanto o outro é específico para a parte criminal. O marco, porém, favorece o anonimato, o que é vedado pela Constituição, e vai em direção contrária ao atual entendimento do Superior Tribunal de Justiça e da comunidade internacional, garantindo que os provedores somente serão responsáveis por atos dos usuários nos casos em que houver ordem judicial e os provedores se recusarem a cumprir. Atualmente, entende-se que a notificação extrajudicial já é o bastante para uma tomada prévia de providências”. Para ela, isso consistiria retrocesso: “Pode causar não somente o entupimento do Poder Judiciário, como também a demora nas medidas a serem executadas”.
No entender da professora Adriana Braga, as invasões sinalizam que a hora é propícia para uma ampla discussão sobre o tema. Já Patrícia vê a atual fase como um estágio de amadurecimento do Direito Digital: “Primeiro vêm os fatos, depois os valores, por último as normas. É natural. Acredito que vamos conseguir melhorar este cenário nos próximos cinco anos, até porque podemos escolher candidatos mais preparados para essa nova etapa”.
 
Quem são os Anonymous?
 
O movimento Anonymous surgiu internacionalmente em 2003, no fórum de discussão e compartilhamento de arquivos 4chan, que permitia a postagem sem identificação. Inicialmente, a ideia era formar uma comunidade online descentralizada de entretenimento. A partir de 2008, porém, o coletivo se voltou a protestos pela liberdade na internet por meio, principalmente, do hacktivismo colaborativo, unindo grupos em todo o mundo. Em protestos nas ruas, os integrantes adotaram as máscaras com o rosto estilizado do inglês Guy Fawkes, popularizado pela HQ (revista em quadrinhos) e pelo filme V de Vingança.
As controversas manifestações com ataques de negação de serviço a sites empresariais e governamentais passaram a ser o forte do grupo, que se destacou em 2010 com a operação Payback, contra empresas que se uniram ao governo americano no boicote ao site Wikileaks. Nessa época, as primeiras ações no Brasil foram detectadas.
Em fevereiro de 2011, os cyberativistas tiraram do ar o site do Senado, em protesto contra o aumento de salário dos deputados. Após isso, ganharam mais força no país com a dissolução do grupo hacker LulzSecBrazil, em junho do mesmo ano. Seus membros criaram dois novos grupos — iPiratesGroup e AntiSecBrTeam — e atacaram sites governamentais já como parte do coletivo. Hoje, são eles que gerenciam a conta @AnonBRNews no Twitter.
“Esses grupos que fazem parte do movimento não trabalham necessariamente em conjunto”, explica um membro do anonbrasil.org. “O nome Anonymous é de natureza anárquica. Diante disso, as mais diversas pessoas, com variadas ideologias e concepções de mundo, fazem uso dele. Não é viável, nem mesmo possível, definir quem é ou quem não é”.
Os membros têm controle sobre vários botnets (rede de robôs), uma espécie de vírus que pode infectar PCs com Windows, permitindo que sejam estes controlados sem o conhecimento dos seus usuários e fazendo com que vários pedidos de acesso ao site-alvo sejam disparados, o que provoca a negação de serviço distribuída (DDoS).
 
“Nosso objetivo é chamar a atenção da população para os problemas que acontecem no país, para os quais todos fecham os olhos. Queremos fazer crescer a revolta dentro de todos, para que saiam as ruas e lutem pelos seus direitos”, ressalta um membro do iPiratesGroup.


 

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