03/08/2018 - 21:01

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O processo que fez nascer um mártir

03/08/2018 - 21:01

O processo que fez nascer um mártir

O processo que fez nascer um mártir


Advogados revelam, em livro, petições, interrogatórios e acareações do julgamento que culminou na condenação de Tiradentes à forca

Na manhã do dia 21 de abril de 1799, um sábado, o dentista Joaquim José da Silva Xavier cruzou em procissão as ruas do Centro do Rio até o patíbulo montado para sua execução. "Soavam clarins, clangoravam filarmônicas. Havia povo, movimento, inquietação, curiosidade, interesse, bulha", como descreve o cronista Luiz Edmundo, em O Rio de Janeiro no tempo dos vice-reis.

Essa pompa digna de grande espetáculo fora montada pelo governo geral para transformar o enforcamento daquele que, por seu ofício, tinha a alcunha de Tiradentes, em uma cabal demonstração de força da Coroa portuguesa. Afinal, o réu havia sido condenado pelo grave crime de lesa majestade.

A morte de Tiradentes, assim como sua motivação – o movimento de afronta à corte que veio a ser conhecido como Inconfidência Mineira, são, hoje, assunto de domínio público. No entanto, pouca gente conhece os meandros do julgamento que resultou na condenação máxima. E foi justamente para resgatar a perspectiva jurídica dessa história que os advogados Ricardo Tosto e Paulo Guilherme M. Lopes escreveram o livro O processo de Tiradentes, recém-lançado pela Conjur Editorial.

Em edição luxuosa de capa dura e fartamente ilustrada, a obra reproduz as cartas régias da rainha de Portugal, Dona Maria I, as inquirições, as acareações e os argumentos da defesa. O objetivo, alertam os autores, não é revisar o julgamento, mas levantar aspectos interessantes, sem deixar de lançar luz na conjuntura da época. Um momento histórico em que ao mesmo tempo em que a cultura vicejava, financiada pelo ouro de Minas Gerais, as cidades brasileiras ainda sofriam com a escassez de mínimas condições sanitárias.

Ricardo Tosto e Paulo Guilherme M. Lopes mostram como a Inconfidência foi um confronto de elites. A local — formada entre outros por bacharéis, militares e comerciantes, e influenciada por ideias libertárias vinda do exterior — questionava os desmandos da Coroa, que avançava, faminta, sobre os seus ganhos. Comentam, também, a disputa política entre o Visconde de Barbacena e o vice-rei Luís de Vasconcelos e Sousa, que instauraram devassas paralelas em Minas e no Rio.

Além disso, os autores expõem e analisam trechos das Ordenações Filipinas, legislação que serviu de base à condenação. Repletas de adjetivos e alegorias, as Ordenações eram mais uma compilação do Direito então vigente do que um código na acepção moderna. No disposto sobre o crime de lesa-majestade, por exemplo, equiparavam o delito à hanseníase: "Lesamajestade quer dizer traição cometida contra a pessoa do rei, ou seu real Estado, que é tão grave e abominável crime, e que os antigos sabedores tanto estranharam, que o comparavam à lepra; porque assim como esta enfermidade enche todo o corpo, sem nunca mais se poder curar, e empece ainda aos descendentes de quem a tem, e aos que ele conversam, pelo que é apartado da comunicação da gente: assim o erro de traição condena o que a comete, e empece e infama os que de sua linha descendem, posto que não tenham culpa".

Foram as Ordenações Filipinas, aliás, que deram subsídio para que Silvério dos Reis delatasse os participantes da Inconfidência Mineira, em troca do perdão de suas dívidas perante a Coroa. O livro conta como ele foi acolhido em Lisboa, recebendo o foro de Fidalgo da Casa Real e o Hábito de Cristo.


Trabalho de José de Oliveira Fagundes é destacado

Os autores destacam, ainda, o trabalho de José de Oliveira Fagundes, o advogado de Tiradentes e de outros 28 envolvidos na Inconfidência. Carioca, educado em Coimbra, Fagundes foi indicado pela Santa Casa de Misericórdia para a árdua missão de atuar contra um regime monárquico absolutista. E se empenhou ao máximo.

Como salientam os autores, não tendo como negar a conspiração, o advogado "alegou que se tratara de mera intenção, sem que quaisquer atos efetivos se tivessem realizado" pelos réus. Sempre que foi possível, e mesmo diante das dificuldades criadas, Fagundes tentou recursos em benefícios de seus clientes. Certa vez a vista dos autos lhe foi limitada em meia hora.

A defesa se tornou ainda mais complicada quando, na quarta inquirição, Tiradentes confessou, assumindo toda a culpa pela Inconfidência. As peças incluídas no livro evidenciam como Fagundes tentou livrálo da morte apontando a impossibilidade de um indivíduo "sem bens, sem reputação e sem crédito" sublevar-se contra o Estado. O advogado chega a atrelar o ensaio do levante ao "pouco siso" de Tiradentes. E, em uma última tentativa de evitar a pena fatal, argumenta que "a conservação da vida, quando se escapa da morte por semelhantes crimes, serve de maior castigo aos delinquentes", lembrando o episódio bíblico de Caim e Abel: "Que a prova dessa verdade nos subministram as Sagradas Letras, porque Deus cruelmente castigar a Caim não lhe quis tirar a vida pela fatricídio, mas impôs-lhe a pena de o seguir para sempre seu delito, (...) uma sentença mais dura que a própria morte".

Como a história revela, o esforço de Fagundes em prol de Tiradentes não mobilizou os magistrados, nem a rainha. Ao contrário dos demais inconfidentes, condenados a degredo perpétuo, Joaquim José da Silva Xavier teve mantida a pena capital. Saiu da vida para virar mártir de um país que, sob o eco de sua luta, viria a nascer.


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