16/12/2016 - 14:05

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Advocacia artificial

16/12/2016 - 14:05

Advocacia artificial

Uso crescente de robôs na área jurídica abre um novo debate. Seriam eles um avanço para a prática advocatícia ou uma ameaça ao mercado?
 
CÁSSIA BITTAR
A apreensão do homem em relação ao poder das máquinas é antiga – podemos dizer que ela acompanha o avanço da tecnologia ao longo de muitos anos. Em 1927, o cinema já expunha isso com o clássico Metrópolis, de Fritz Lang. Em 1968, Stanley Kubrick deixa ainda mais patente essa sensação com 2001 – Uma odisseia no espaço, em uma projeção do então ainda distante  Século 21. As referências e a presença de robôs em obras audiovisuais e literárias são muitas, o que demonstra que, apesar do medo do desconhecido, as possibilidades infinitas da tecnologia fazem do desenvolvimento da robótica um assunto de interesse da sociedade.

Agora, imagine um robô como seu colega de escritório. Não se trata de ficção científica: em maio, foi divulgada a notícia de que o primeiro “robô-advogado” do mundo acabara de ser “contratado” por uma grande banca de advocacia americana. Trata-se da inteligência artificial Ross, que usa o supercomputador Watson, da IBM, para operar como fonte inesgotável de informações para os 50 advogados da divisão de falências da banca.

O Ross tem a mesma capacidade do Watson, que pode processar, em apenas um segundo, 500 gigabytes, o equivalente a um milhão de livros, de acordo com a Wikipédia. No escritório, ele trabalhará, basicamente, como um colega ao qual os advogados podem fazer perguntas como fariam a outros companheiros de ofício. A vantagem é que Ross pode arquivar toda a legislação do país, jurisprudências, precedentes, citações e qualquer outra fonte de informação jurídica. Além disso, pode atualizar seu conteúdo 24 horas por dia, todos os dias, e alertar os advogados sobre qualquer informação nova que afete um caso em que estão trabalhando.

“Como um ser humano, o Ross está passando por um período de experiência em um escritório de advocacia, está aprendendo e ficando melhor a cada dia”, disse ao jornal The Globe and Mail o cofundador do robô, Andrew Arruda.

Além do Ross, outro tipo de tecnologia utilizada para fins jurídicos e popularizada como “advogado virtual” pela imprensa deu o que falar na internet nos últimos tempos: o site DoNotPay, um chatbot (robô em forma de aplicativo de chat que usa inteligência artificial para interagir com humanos) criado pelo jovem programador Joshua Browder  e que, nas duas áreas em que está ativo, Reino Unido e Nova York, já conseguiu reverter mais de 160 mil multas de trânsito desde 2015, segundo informações do site Venture Beat divulgadas em maio.

Segundo Browder, a ideia é auxiliar pessoas para que não sejam exploradas como “fonte de receita” para o governo local. Ele explicou que o sistema funciona a partir de uma conversa com os motoristas a respeito dos tíquetes de infrações de trânsito. Com as informações dadas pelas pessoas, o site orienta sobre se a sinalização procede ou não e o que se deve fazer.

“Sinto como se houvesse uma mina de ouro de oportunidades porque muitos serviços e informações podem ser automatizados usando inteligência artificial, e bots são um jeito perfeito de fazer isso. É desapontador que, no momento, ele seja usado principalmente em transações comerciais para pedir flores e pizza”, afirmou Browder.

A avalanche de novidades na área não é de todo bem vista pelos advogados estrangeiros, que ainda se mostram resistentes à computação e à adoção de novas tecnologias. Assim como na Revolução Industrial, na qual os trabalhadores se voltaram contra as máquinas, a inteligência artificial usada efetivamente nos escritórios se mostra uma ameaça para o mercado na visão de alguns profissionais. A constatação é de pesquisa realizada este ano pela firma Altman Weil com os “líderes” de bancas americanas, na qual 35% dos entrevistados disseram acreditar que o trabalho dos advogados em início de carreira será feito por robôs no futuro.

E o debate não está tão distante quanto pode parecer: a robótica na advocacia é uma realidade também no Brasil, onde vem sendo cada vez mais debatida em congressos e eventos acadêmicos. Paralelamente ao processo de adaptação de muitos ao processo eletrônico, escritórios maiores já estão investindo pesado na automação.

Um dos exemplos é um escritório paulista, que, como mostrou reportagem da ConJur, em um ano cortou pela metade o número de profissionais da banca e, ainda assim, aumentou a quantidade de processos. Com linhas de produção e inteligência artificial, 420 advogados dão conta atualmente de 360 mil processos.

A banca tem softwares, ou seja, robôs tocando partes dos processos no lugar de humanos. O advogado só entra para tomar decisões estritamente jurídicas, não mais para atuar na rotina burocrática. Cabe aos softwares – hoje funcionam 35 procedimentos automatizados no escritório – fazer o recebimento e o cadastro de novas ações, juntar petições aos processos, elaborar as guias para pagamento de custas e enviá-las aos clientes, além de conferir se o pagamento foi feito.

Segundo declaração de um dos sócios, Renato Mandalitti, à revista eletrônica, essas tarefas não têm nada de jurídicas: “Hoje em dia, 70% do trabalho que um advogado faz não é privativo da advocacia”.

O especialista em Direito Digital Gustavo D´Andrea reforça a constatação de Mandalitti: “Há tempos se consolidou a tradição de que o estagiário e o advogado iniciante são, na maioria das vezes, pequenas peças na grande engrenagem da advocacia de massa, seja ela particular ou desempenhada por procuradorias e defensorias públicas. As novas criações de automação de atividades de escritórios jurídicos vêm apenas trazer à tona a triste realidade dos jovens juristas, que ingressam numa estrutura burocrática e passam a trilhar um árduo caminho até que, talvez, um dia possam se tornar advogados na acepção plena da palavra”.

Segundo D’Andrea, o cenário é uma oportunidade para se pensar na utilidade dessa tecnologia. “Os escritórios particulares e instituições públicas podem e devem usar os instrumentos que estiverem ao seu alcance para automatizar tudo aquilo que não seja propriamente a atividade intelectual essencial da advocacia. Não podemos fazer de conta que a advocacia pode continuar sendo uma atividade artesanal, sem cunho mercadológico”.

Diretora de Inclusão Digital da OAB/RJ e presidente da Comissão de Direito e Tecnologia da Informação da
entidade, Ana Amelia Menna Barreto afirma que o uso cada vez maior da tecnologia é uma realidade e concorda que há, hoje, o que chama de uma “mão de obra escrava” na advocacia. “Isso vai ter que terminar. Essas pessoas se formam hoje para quê? Para serem operadores de sistema de processo eletrônico. Este é um momento de quebra de paradigma”.

O esvaziamento da função do paralegal, bacharel em Direito sem aprovação no Exame de Ordem, seria mais um benefício da automatização para Ana Amelia, que também é secretária-adjunta da Ordem. A profissão depende da aprovação do Projeto de Lei 5.7492/13, parado há cerca de dois anos na Câmara dos Deputados, para ser regulamentada no país. Mas já é exercida informalmente, apesar do posicionamento contrário da Ordem.

Membro da Comissão Especial de Direito da Tecnologia do Conselho Federal e pesquisador do tema, Márcio Dumas explica que a experiência brasileira com a robótica na advocacia ainda é incipiente, mas vê um cenário aberto a seu desenvolvimento. “Atualmente surgiram as primeiras experiências nacionais para utilização de robôs em tarefas repetitivas, substituindo a atuação humana, enquanto nos Estados Unidos e na Europa começam a aparecer as primeiras experiências de inteligência artificial aplicadas à advocacia no aspecto qualitativo de tratamento da informação, como o caso do Ross. A complexidade do sistema judiciário brasileiro complica um pouco sua utilização, porém, muitos estudos estão sendo feitos e em pouco tempo teremos aplicações nos moldes do robô Ross adaptadas à legislação brasileira”.

Diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS) e membro da Comissão de Direito Autoral, Direitos Imateriais e Entretenimento da Seccional, Carlos Affonso Pereira de Souza considera-se otimista quanto ao cenário futuro. “Acredito que todos concordam que a evolução da inteligência artificial vai afetar de forma inequívoca o Direito. As pessoas podem discordar apenas sobre a velocidade desse impacto e sobre se os resultados serão mais positivos ou mais negativos”, avalia. Segundo ele, a velocidade da transformação deverá, entretanto, ser mais rápida do que grande parte das pessoas imagina: “A questão não afetará só a próxima geração. O uso intensivo de inteligência artificial para transformar a prática da advocacia e de atividades jurídicas como um todo será uma revolução presenciada na atual geração”.

Carlos Affonso afirma que, para além de atividades de controle e gestão da informação, há um campo vasto para avanço da inteligência artificial na compreensão da forma pela qual juízes decidem sobre os mais variados temas. “Estamos chegando cada vez mais próximos de um passo adicional na evolução da pesquisa jurisprudencial. Da simples busca por palavras-chave, por exemplo, robôs já conseguem fazer a pesquisa e buscar dentro da linguagem da decisão um entendimento sobre quem venceu a ação, quais argumentos foram utilizados, e dessa forma a inteligência artificial passa a entregar para o seu usuário um conhecimento muito mais aprofundado do que simplesmente a informação buscada por uma palavra-chave qualquer. Transformar informação em conhecimento é algo que as máquinas começam a desempenhar com maior habilidade”, explica, resumindo: “O mais curioso disso tudo é que a ascensão dos robôs na prática jurídica terá como efeito justamente tornar as atividades advocatícias menos mecânicas”.

Porém, Márcio Dumas pondera que, apesar dos benefícios, o momento deve ser de profunda reflexão: “Percebe-se que, ao mesmo tempo em que essas ferramentas tecnológicas vêm para auxiliar o advogado, também devem ser objeto de muita análise, levando em consideração o impacto causado pelas mesmas junto ao mercado jurídico e ao próprio Judiciário”.

Conselheiro e ouvidor do Conselho Nacional de Justiça, Luiz Cláudio Allemand concorda que a robotização é um processo irreversível, parte da evolução da tecnologia aplicada à advocacia que vem sendo acompanhada por ele nos últimos anos. “Os robôs são só uma parte. Temos aí vários outros elementos, tecnologias, que trarão um pouco de dor de cabeça para aqueles que tentarem enfrentá-la. Ou os profissionais aderem à tecnologia ou ficarão para trás no mercado”, afirma.

Como toda novidade, os robôs ainda são privilégio de grandes bancas pelo alto custo, mas, na opinião de Allemand, o barateamento com o passar dos anos será natural. “O que precisamos é discutir, como classe, a aplicabilidade. Deve-se considerar as consequências da tecnologia para idosos, deficientes visuais e até mesmo para jovens advogados, cujas dificuldades acompanhamos no processo eletrônico”, salienta.

Atualmente, apesar de não tratado diretamente pela legislação brasileira, o uso de robôs e inteligência artificial é aplicável a previsões existentes, explica Dumas. Ele cita o artigo 266 do Código Penal, que prevê a perturbação e/ou interrupção de serviço público de informática. “A incidência de crime costuma ocorrer na prática quando empresas e escritórios fazem uso de robôs para buscar informações processuais em grande quantidade e acabam por tornar sistemas de processo eletrônico lentos ou até mesmo indisponíveis”, explica.

D´Andrea concorda que há regulamentação suficiente: “O que falta é vontade de fiscalizar”, frisa. Para ele, quando softwares são usados dentro dos escritórios com a finalidade de otimizar o trabalho interno, o assunto deve ser considerado como privado e livre. “O problema aparece quando são usados como forma de captar clientes, oferecendo uma espécie de advocacia automatizada na forma de serviço. É o que acontece, por exemplo, com websites que intermedeiam serviços de advogados previamente cadastrados, canalizando consultas jurídicas solicitadas por visitantes e distribuindo os casos entre os membros. Muitas vezes, esses sites são de propriedade de empreendedores que nem formação jurídica têm. Nesse caso, a tecnologia está sendo usada criativamente, mas de forma contrária à ética”.

Em campo, o que não faltam são dúvidas e discussões. Por enquanto, vale se acostumar com o fato de que os robôs das projeções futurísticas chegaram para ficar. E eles podem ser menos assustadores do que o cinema fazia crer. 

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