16/12/2016 - 13:23

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Gilson Dipp - advogado: ‘Combate à corrupção nem precisaria de lei especial’

16/12/2016 - 13:23

Gilson Dipp - advogado: ‘Combate à corrupção nem precisaria de lei especial’

Curiosamente, a Lei Anticorrupção não menciona a corrupção como objeto e não contém nenhum dispositivo penal em seus 31 artigos. A constatação vem da análise de Gilson Dipp, ministro aposentado do Superior Tribunal de Justiça, no livro Comentários sobre a Lei Anticorrupção, que escreveu com Manoel L. Volkmer de Castilho. Dipp afirma que nem haveria necessidade de uma norma especial, “pois como conduta ilícita de particulares ou servidores os atos de corrupção já são reprimidos por legislação disciplinar ou pela lei penal, e, assim, a novidade está só na instituição de mecanismos de natureza administrativa para reprimir as atitudes de corrupção no campo extrapenal e na definição dos órgãos indicados para essa atividade”. O ex-ministro, que presidiu a Comissão de Reforma do Código Penal do Senado Federal e hoje se dedica à advocacia, concedeu a seguinte entrevista à TRIBUNA.
 
PATRÍCIA NOLASCO

Após analisar a Lei Anticorrupção no livro que lançou recentemente, o senhor disse, em entrevista, que a lei “veio furada”.  Por que chegou a esta conclusão?

Gilson Dipp – A expressão talvez tenha sido exagerada. A Lei Anticorrupção não tem nenhum dispositivo que mencione a corrupção como objeto, limitando-se a descrever ou indicar atos ilícitos praticados contra a administração pública.

O Brasil, para cumprir compromissos internacionais, deverá prever a responsabilidade objetiva. No entanto, recuou ante a responsabilização penal da pessoa jurídica, preferindo a responsabilidade civil e administrativa.

O projeto, e depois a lei, não contém nenhum dispositivo penal, embora o discurso legislativo viesse carregado de intenções punitivas próprias da lei penal. E assim foi feito porque a disciplina penal e processual penal se baseia no princípio da culpabilidade. Quer dizer, sem culpa ou dolo não há conduta penal típica. A vocação da lei era penal, mas, em observância à responsabilidade objetiva, tornou-se administrativa, deixando perceptível a sua origem penaliforme. 

Na sua opinião, a lei funciona como instrumento efetivo de combate à corrupção?

Dipp – Na verdade, a lei tem endereço especial para o chamado combate à corrupção no âmbito administrativo das relações de particulares, sobretudo empresas privadas, com a administração pública. Por essa razão, o chamado combate à corrupção por meio desta lei limita-se ao fenômeno verificado nesse campo, sem menção às corrupções entre particulares, também muito comuns, mas desprezadas pela legislação.

O foco principal da lei por isso é a corrupção no serviço público, e as medidas nela previstas têm esse propósito de prevenir, apurar e sancionar as infrações assim caracterizadas. Contudo, saber se essa ferramenta é efetiva no dito combate depende muito da aplicação de seus preceitos e dos agentes encarregados dela.

Como se sabe, qualquer texto legal sempre comporta interpretações e variáveis porque, sendo preceitos, em tese pode a realidade oferecer hipóteses não previstas e assim exigir inteligência e sensatez na ação dos agentes públicos com a tarefa de aplicar as regras referidas. 

De resto, a efetividade no tal combate pressupõe clareza dos agentes públicos encarregados da aplicação da lei quanto às praxes administrativas e aos costumes comerciais, muitos deles imemoriais e que demandam sensibilidade correspondente. De qualquer sorte, o citado combate à corrupção nem precisaria de lei especial, pois como conduta ilícita de particulares ou servidores os atos de corrupção já são reprimidos por legislação disciplinar ou pela lei penal, e, assim, a novidade está só na instituição de mecanismos de natureza administrativa para reprimir as atitudes de corrupção no campo extrapenal e na definição dos órgãos indicados para essa atividade. 

Cabe, contudo, referir que, a despeito das indicações da lei quanto a essa competência administrativa, têm surgido conflitos de interesses entre os demais órgãos encarregados de repressão à corrupção; nomeadamente o TCU, a CGU o próprio MPF – cuja legitimação correspondente tem sido extraída de suas respectivas leis de regência – reivindicam participação e até direção dos trabalhos de investigação e instrução da luta contra a corrupção.

Como o senhor avalia o pacote de medidas apresentadas pelo Ministério Público Federal e alterado pela Câmara dos Deputados para coibir práticas de corrupção?

Dipp – As chamadas dez medidas anticorrupção constituem reflexo óbvio dessa disputa de iniciativa no dito combate à corrupção, sendo o MPF o primeiro a invocar sua independência absoluta e autonomia para a tarefa, ainda que no âmbito administrativo, ao afirmar que os eventuais acordos entre a administração e as pessoas jurídicas infratoras só valerão após a chancela ou controle do Ministério Público, o que também insinua o TCU deixando a CGU, nominalmente encarregada dessa atividade pela lei, em situação embaraçosa e fragilizada. 
No livro, estudamos essa situação (à época ainda não suscitada) e concluímos que a competência é da CGU, embora as demais entidades tenham condição de atuar no âmbito de suas respectivas competências, sem interferência no trabalho da CGU. Mas isso não tem sido considerado de modo absoluto até pela própria CGU.

Como visto recentemente, a votação em plenário na Câmara já alterou esse quadro e em parte o projeto voltou ao modelo original da lei anticorrupção, pois retirou expressamente a iniciativa do MP para acordos de leniência. Da mesma forma, o projeto na redação final da Câmara também recusou boa parte das dez medidas diretamente relacionadas com o “combate” à corrupção e ainda abriu espaço para a responsabilidade de magistrados e membros do MP em casos de abuso de autoridade que definiu.

Parece-nos, assim, que o projeto deu uma meia volta importante, mas em tese essas alterações limitativas não impedem por si só tanto as medidas de controle das empresas – como analisamos no livro – quanto as das autoridades que as realizam.

O Conselho Nacional de Justiça divulgou recentemente o relatório Justiça em números, segundo o qual a cada cem processos aguardando julgamento, pouco mais de 28,6 são julgados. De volta à advocacia, depois de atuar como ministro do STJ, o senhor crê que é possível reduzir o estoque, que continua a crescer?

Dipp – As noções de processo e julgamento são de regra mal compreendidas ou, no limite, manipuladas com interesses secundários ou corporativos. A experiência mostra que as questões em juízo não são tão variadas como se propala, e é comum haver repetições que produzem grande acervo de casos ou processos, mas que, na verdade, não constituem volume de trabalho em si. Desse modo, convém ter presente essa realidade antes de afirmar a existência de grande número de processos. De outra parte, e isso ocorre em todos os tribunais colegiados, há uma certa indisciplina com relação aos seus próprios precedentes, muitas vezes simplesmente desatendidos, quando se sabe que há mecanismos legais e regimentais para a solução de divergências no tribunal e entre tribunais.

Dito de outro modo, seria notavelmente útil que os tribunais seguissem seus próprios julgados em casos já resolvidos aplicando-os em casos futuros, assim como o STF e em certa medida o STJ procedem nos incidentes de repercussão geral e repetitivos, hipóteses em que deliberam por editar uma regra ou preceito judicial definindo a jurisprudência para os casos análogos. 

Finalmente, eventuais acúmulos são sempre resultantes de deficiência nos serviços de apoio por falta de recursos humanos ou materiais de secretaria, ou nos recursos humanos do capital julgador, de juízes e magistrados de segundo grau com maior ou menor capacidade de trabalho ou característica de desempenho colegiado. 

Resumindo, a previsão administrativa dos recursos alocados ao Poder Judiciário com certeza não pode ser atribuída como causa única do atraso no serviço forense. Pelo contrário.

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