16/12/2016 - 13:58

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Parcerias de família

16/12/2016 - 13:58

Parcerias de família

Atualização das leis não acompanha a velocidade nas mudanças das estruturas sociais, e uma das novas configurações que surgem é a coparentalidade, parceria para gerar e criar um filho
 
EDUARDO SARMENTO
A evolução das relações humanas e as consequentes mudanças nas estruturas familiares são uma realidade incontestável. Há tempos a família patriarcal, tida por séculos como espinha dorsal da sociedade, vive apenas na memória de pessoas com mais idade, ao menos nos grandes centros. O formato com um pai, uma mãe e os filhos frutos desta união não é mais único. Em vez disso, novas configurações desafiam os padrões e criam novos cenários para o Direito de Família.

“Atualmente, a parentalidade está cada vez menos atrelada à conjugalidade, e existe, ainda, uma clara dissociação de sexo e reprodução. Exatamente por isso surgem novos modelos, como a coparentalidade”, explica o presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família (Ibdfam), Rodrigo da Cunha. Também conhecida como parceria de paternidade, a coparentalidade consiste, de forma básica, em dois adultos que, sem possuir vínculo romântico, decidem gerar e criar um filho juntos, tendo coparticipação na parentalidade sem necessariamente estabelecer laços amorosos.

No Brasil, a principal iniciativa neste sentido vem de uma comunidade existente no Facebook intitulada ‘Coparentalidade responsável e planejada’, que conta com mais de 1.300 participantes. Como em outros grupos virtuais, os integrantes se apresentam e interagem buscando afinidades, mas, em vez de laços afetivos, a procura é pelo pai ou pela mãe ideal.  

Criadora da comunidade, a jornalista gaúcha Taline Schneider, de 33 anos, conta que a ideia surgiu ao unir convicções pessoais com a leitura de artigos e sites estrangeiros. “Desde criança quis ter um filho sem casar, mas nunca pensei em produção independente, já que acho injusto com a criança. Sempre achei atraente a ideia de ter um filho sem marido, mas nunca quis ter um filho sem pai”, explica.

Algumas das pessoas que optam por este tipo de família decidem assinar um contrato de parceria de paternidade a fim de determinar de forma detalhada como será a criação do futuro filho. Para o presidente da Comissão de Direito de Família da OAB/RJ, Bernardo Garcia, a elaboração do documento pode ser útil, mesmo não tendo validade total no caso de judicialização. “Seria interessante para mostrar ao juiz a linha seguida no momento do acordo, mas vale frisar que as decisões no tribunal deverão ser tomadas sempre no sentido de defender os interesses da criança, como já acontece normalmente”, afirma.

Ao ser indagada sobre qual é a principal dúvida dos interessados na coparentalidade, Taline não titubeia: questões sobre a guarda dos filhos. Apesar disso, ela acredita que o fato de se tratar de pessoas que buscam formar uma família fora dos padrões estabelecidos pela sociedade por si só vá gerar poucos problemas.
 
“Recomendo sempre que exista um contrato, mas como são decisões baseadas no afeto e no amor fraternal, ou seja, na amizade, a tendência é que as coisas corram de forma mais suave, ao menos inicialmente”, diz.

A opinião vai ao encontro do que pensa a servidora pública Roberta. Enquanto Taline ainda busca o parceiro ideal, ela não demorou para achar um pai para seu filho. Moradora do Rio de Janeiro, aos 37 anos, e mãe de um menino de dez, ela conheceu o também funcionário público João logo que entrou no grupo do Facebook. Após alguns encontros e muita conversa, decidiram gerar uma criança. Roberta explica que conheceu o conceito de coparentalidade pela televisão e que as coisas aconteceram de forma rápida. “Sempre quis ter outro filho, mas me separei quando o meu primeiro tinha cinco meses. Tive alguns namorados, porém nada muito sério. Quando fiz 36 anos, achei que estava tarde e parei de sonhar. Um dia, assistindo a uma novela, vi uma personagem que não acreditava em relacionamentos e optou pela coparentalidade”, conta.

Roberta e João, que esperam um filho para janeiro, optaram por não assinar um contrato e resolver as coisas à medida em que os fatos fossem acontecendo. Segundo ela, a afinidade necessária para que uma decisão como essa seja tomada facilita as coisas. “Temos visões de mundo e opiniões muito parecidas, nada teve que ser muito negociado. Combinamos guarda e valores financeiros para colaborar com a criação, mas tudo de boca”, revela, acrescentando um detalhe que, segundo ela, colaborou para que o projeto desse certo. “João é homossexual, acho que isso pode ter facilitado nossa aproximação, pois eu sabia que teríamos uma amizade real, sem interesses ocultos”.

Segundo Taline, a relação de Roberta e João resume bem o perfil de grande parte dos participantes do grupo. “Muitos dos homens da comunidade são homossexuais ou assexuais, enquanto temos uma boa quantidade de mulheres preocupadas com a idade limite para ter filhos de uma forma segura”, explica.

O presidente do Ibdfam confirma que a participação de homossexuais em novos arranjos familiares é significativa, inclusive na busca por parcerias de parentalidade, e ressalta o caráter inovador de algumas medidas. “Fiz um acordo de duas mulheres que tiveram filho com dois homens. Esta criança tem, portanto, duas mães e dois pais. Elaboramos um contrato de guarda compartilhada entre as quatro pessoas” descreve Cunha.

Para Bernardo Garcia, é fundamental a capacidade de adaptação do Direito de Família a esses novos formatos. “É uma das áreas que sofre mais modificações por influência da sociedade, o que é muito importante. É preciso ter a noção de que, se é uma família, merece a proteção do Estado. Os tribunais estão começando a reconhecer vários tipos de relação familiar. Uma criança filha de duas mães não pode ter menos direitos do que uma filha de um casal heterossexual”, afirma.

Também homossexual, William foi pai há três meses. Ele e Paula, sua amiga de infância, fecharam uma parceria e, por meio de inseminação em laboratório, geraram Maria. Apesar de também fazer parte do grupo criado por Taline, William encontrou a mãe de sua filha em um círculo mais próximo, em sua própria cidade. “Encontrei uma pessoa já conhecida e decidimos ter esta criança. Ela já tem um filho e desejava outro, e eu sou gay e sempre quis um filho biológico. Hoje, além das afinidades que já existiam, estamos unidos pela Maria”, conta.

Eles também optaram por não fazer nenhuma espécie de contrato. “Não tive interesse em formalizar intenções, já que as coisas sempre podem mudar e imaginei que nada que tivesse sido acordado teria validade jurídica. As escolhas se consolidam no curso da vida”, considera William.

Por ser um tema novo, ainda não há registros de casos que tenham desaguado na Justiça. Para Cunha, no entanto, as divergências que vierem a ocorrer não devem ser, na prática, tão diferentes das atuais. “Creio que serão questões similares às levadas por casais divorciados, já que a base é a mesma. É diferente do padrão patriarcal a que estávamos habituados, mas a vida mudou, a sociedade mudou”, constata. Ele pondera, também, que a velocidade de atualização da legislação não é a mesma das modificações nas estruturas sociais, mas que isso não resulta necessariamente em problemas. “A principal fonte do Direito não é apenas a lei, mas os costumes. Assim, acompanhamos a vida como ela é na realidade, contando com as decisões dos tribunais e as jurisprudências”, salienta.

No mesmo sentido, Garcia critica o conservadorismo de determinados setores e reafirma a necessidade de adaptação da matéria. “Nada disso foi para os tribunais ainda, então tudo é hipotético. O certo é que vai ser sempre analisada a questão do momento em busca de uma razoabilidade que defenda os interesses da criança. A sociedade não foi feita para cumprir o Direito, e sim o Direito foi feito para regulamentar a sociedade. De nada adianta um Direito que não protege seus cidadãos”, conclui.

Roberta, João, William, Paula e Maria são nomes fictícios. A pedido dos entrevistados, suas identidades foram preservadas.

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