29/07/2016 - 17:03

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Escola sem partido ou escola partida?

29/07/2016 - 17:03

Escola sem partido ou escola partida?

Projetos de lei que alteram planos de educação geram críticas entre advogados, educadores e estudantes
 
VITOR FRAGA

Afinal, a escola serve para quê? Recentemente, a pauta do debate sobre educação tem girado em torno da proposta Escola Sem Partido (ESP), criada em 2004 pelo advogado e procurador do Estado de São Paulo Miguel Nagib e que tem sido objeto de projetos de lei apresentados na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, em assembleias legislativas e câmaras municipais de vários estados do país. A iniciativa mobilizou também professores, universidades e entidades de pesquisa e ensino, além de constitucionalistas e outros envolvidos no tema. Em sua maioria, eles criticam o que consideram uma tentativa de amordaçar e censurar o trabalho docente.

A polarização é tão intensa que o ministro da Educação, José Mendonça Filho, nomeou no início de julho o pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) Adolfo Sachsida, defensor das ideias do ESP, como seu assessor especial. A nomeação, publicada no Diário Oficial da União do dia 11, foi cancelada menos de 24 horas depois. Segundo nota da pasta, “O MEC e o economista concluíram não ser necessária tal colaboração”, mas a desistência não teria a ver com a repercussão negativa da escolha. O ministro já havia recebido em seu gabinete outros apoiadores da proposta, como o líder do grupo Revoltados online, Marcelo Reis, e o ator Alexandre Frota.

A TRIBUNA procurou apoiadores do projeto, que afirmam defender as crianças e adolescentes da “doutrinação ideológica” que acreditam existir nas escolas, e também constitucionalistas, especialistas em educação e alunos, que consideram a proposta, de modo geral, uma tentativa de censura, que criaria uma escola “partida”, voltada para apenas uma parte da sociedade.

Liberdade x cerceamento

A reportagem procurou o criador do Escola Sem Partido, Miguel Nagib, mas ele informou que não conseguiria responder às perguntas em tempo hábil para o fechamento desta edição.

Informações divulgadas no site da proposta (www.escolasempartido.org) defendem que ela não se configuraria como censura, pois o professor “não desfrutaria de liberdade de expressão em sala de aula”. Segundo nota disponível na página, a Constituição Federal “não garante aos professores a liberdade de expressão, mas, sim, a liberdade de ensinar, também conhecida como liberdade de cátedra”. O argumento se baseia também no artigo 12, item 4, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, segundo o qual “os pais têm direito a que seus filhos recebam a educação religiosa e moral que esteja de acordo com suas próprias convicções”. Além de disponibilizar minutas de projetos de lei em níveis federal, estadual e municipal, a página oferece aos pais um modelo de notificação extrajudicial, que menciona até a possibilidade de detenção caso o professor cometa “qualquer atentado à liberdade de consciência e de crença” dos alunos.

A presidente da Comissão de Direito Constitucional (CDCon) da OAB/RJ, Vânia Aieta, argumenta que é premissa comum a todos a não partidarização da escola, o que reduziria a suposta polêmica. “Mas há uma diferença entre partidarismo e ideologia. Toda leitura do conhecimento é interpretativa. Ser vegano ou comer carne é uma posição ideológica, embora não estejamos falando de partidos. Tomar ou não tomar um anticoncepcional é um posicionamento político, assim como dar ou não uma palmada em um filho”, exemplificou. A advogada considera a notificação extrajudicial “atentatória à Constituição e ao direito à educação”, e contesta a argumentação do ESP sobre expressão de opinião. “A liberdade de expressão pode ser exercida em qualquer lugar do território nacional. Inconstitucional é propor que ela não exista para o professor porque ele está dentro de sala de aula. É uma aberração. Cada um tem a sua pauta moral, algumas decisões são individuais, mas a sociedade tem que primar pela coletividade”, defende Aieta, acrescentando que as questões serão levadas à Justiça. “São situações atentatórias a direitos fundamentais assegurados pela Constituição, cláusulas pétreas. Todo esse debate ilude as pessoas, mas, diante do Judiciário, isso cairá como um castelo de cartas. É afronta em excesso ao Estado de Direito, é flagrante demais”. 

Membro da CDCon e especialista em matéria penal, Thiago Jordace afirma que a notificação pode ser considerada um crime de constrangimento ilegal. “Se um professor da rede pública for afastado, por exemplo, a administração pública não estará agindo com impessoalidade. O Estado é laico, não pode estar atrelado a uma ideologia religiosa ou outra. Tentar cercear o professor dessa forma é, sim, um crime”, diz.

O problema seria a noção equivocada do ESP sobre o ato de ensinar, na opinião do ex-ministro da Educação e professor titular de Ética e Filosofia Política da USP, Renato Janine Ribeiro. “Com uma justificativa que não é errada, quer dizer, é claro que uma escola não pode ser espaço de doutrinação, parecem querer reduzir a educação a uma doutrinação. Há no projeto um artigo que diz que o professor não pode ensinar coisas que enfrentam as convicções religiosas da família do aluno. Quando se cria uma limitação dessas, se acaba com a educação. Isso obviamente vai pôr em xeque o que a pessoa aprendeu na sua família, na sua comunidade. Essas pessoas, talvez até de boa fé, acreditam que seus filhos estão sendo doutrinados”, argumenta Janine, que considera importante a difusão de valores. “Homens e mulheres, heterossexuais e homossexuais, todos são diferentes e devem ser respeitados em seus direitos. O assédio sexual já foi muito mais tolerado há algumas décadas, hoje é considerado crime. O professor tem que ensinar isso, é parte do ato de educar”.

Professora de teoria e ensino de História da Uerj, Carina Martins faz parte do grupo Professores contra o Escola Sem Partido (www.contraoescolasempartidoblog.wordpress.com) – criado por Fernando Penna na Faculdade de Educação da UFF (Feuff) e que reúne historiadores contrários à proposta – e também integra um coletivo interdisciplinar na universidade fluminense, que engloba as áreas de Educação, Psicologia e História, e tem se organizado contra o projeto. “O saber científico, que é a episteme da escola pública, mobiliza desconstruções dos saberes e das convicções morais da família. Aliás, a ideia de família desse projeto contempla apenas a família tradicional”, aponta a professora, que realiza pesquisas sobre modelos pedagógicos em diversos países. “Não existe nenhum projeto similar, em outra nação, na regulação da atividade docente. Na Argentina, desde 2006 há uma lei que obriga os professores a trabalhar com o dever da memória, da ditadura, da tortura, reconhecer que o Estado perpetrou crimes contra a humanidade”, ressalta. Outro exemplo citado por ela é a França, onde “desde os anos 1990 é proibido negar o holocausto, o que afeta a sala de aula”.

Também integrante do grupo de professores da Feuff, a graduanda em História Renata Aquino pondera que todo espaço social, inclusive a escola, é marcado pela ideologia. “A escolha do horário é ideológica, o currículo também. Em colégios de periferia, por exemplo, existem outras urgências. Às vezes o professor se sente até mal de falar mesmo de temas importantes como a Revolução Francesa, quando alunos vivem realidades como mães que apanham, familiares no tráfico ou mortos pela polícia. O ESP quer algo impossível, a neutralidade ideológica”, resume. Ela lembra ainda que, entre diversas visões de mundo, algumas são amparadas por estudos teóricos, e outras nem tanto. “Autores de diferentes vertentes, muitas vezes, concordam em alguns pontos e discordam em outros, mas geralmente há diversas fontes teóricas que comprovam suas versões. Quando se trata de poucas pessoas defendendo ideias totalmente diferentes, é complicado”, declara. Renata condena também a crítica à discussão de gênero. “Mostra ignorância sobre o tema. É desonesto dizer que o feminismo reforça a sexualidade precoce das crianças, por exemplo. O que vemos é uma reedição sem-vergonha do macarthismo que fez sucesso durante a guerra fria”, dispara.

Já a estudante de Administração da Fundação de Apoio à Escola Técnica (Faetec) e tesoureira da Associação dos Estudantes Secundaristas do Estado do Rio de Janeiro (Aerj), Juliana Alves, contesta o projeto de forma irônica. “A escola já tem partido. No Rio de Janeiro, quem traça a ideologia da escola é o governo. Quem indica o secretário de educação, os diretores? O projeto político-pedagógico segue a lógica da gestão, baseado em metas e meritocracia, que tem mais a ver com empresas do que com educação. O modelo já limita o professor, que está preso ao conteúdo, não consegue levar os alunos a um quilombo para falar da nossa história”, exemplifica.
 
Para Juliana, a escola já remete a uma lógica de doutrinação. “A escola atual é um quadrado. Os estudantes ficam enfileirados, escutando uma pessoa só, não podem sair de sala, têm um tempo de sol, como uma prisão. Isso é um processo ideológico, a escola já é doutrinária. Falam como se os estudantes não tivessem consciência crítica, se têm uma opinião alguém os levou a ela. Se fosse assim, seríamos todos individualistas, porque essa é a ideologia dominante na escola, e mesmo assim há quem pense diferente”, reflete a estudante, que também enxerga influência do machismo na proposta, ao classificar o debate de gênero como questão ideológica. “Isso vai contra tudo o que nós mulheres conquistamos, para essas pessoas a mulher não tem que ter direitos. Daqui a pouco, vão querer voltar ao tempo das cavernas”.
 
Projetos de lei
 

Em maio de 2014, o deputado estadual Flávio Bolsonaro (PSC/RJ) apresentou projeto na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj), o primeiro no país, e abriu caminho para outras proposições, em níveis municipal, estadual e também na Câmara dos Deputados e no Senado Federal. “Buscamos a neutralidade político-partidária, o pluralismo de ideias, a liberdade de consciência, e também o direito dos pais de que os filhos menores não recebam educação moral que venha a conflitar com suas convicções”, defende o deputado, que acredita que não se deve falar sobre sexo na escola. “A questão sexual fica dentro de casa. Enquanto a criança for menor de idade, cabe aos pais orientar. Falar sobre doenças é uma coisa, outra é falar sobre sexo, estimular a antecipação da sexualidade das crianças nas escolas. Pode se falar de prevenção, saúde, uso de preservativos, mas não de sexo. Temos que preservar a inocência das crianças”, argumenta.

Em âmbito federal, na Câmara dos Deputados, o PL 7.180/2014, de Erivelton Santana (PSC/BA), pretende incluir “entre os princípios do ensino o respeito às convicções do aluno, de seus pais ou responsáveis, dando precedência aos valores de ordem familiar sobre a educação escolar nos aspectos relacionados à educação moral, sexual e religiosa”. Estão apensados a ele outros quatro projetos, como o PL 867/2015, de Izalci Lucas (PSDB/DF), que pretende incluir o ESP entre as diretrizes e bases da educação nacional. Em paralelo, há o PL 1.411/2015, do deputado Rogério Marinho (PSDB/RN), que tipifica o crime de “assédio ideológico”, prevendo detenção de três meses a um ano para quem expuser estudantes a esse tipo de conduta, “condicionando o aluno a adotar determinado posicionamento político, partidário, ideológico ou constranger o aluno por adotar posicionamento diverso do seu, independente de quem seja o agente”. Se o agente for “professor, coordenador, educador, orientador educacional, psicólogo escolar, ou praticar o crime no âmbito de estabelecimento de ensino, público ou privado”, a pena será aumentada em 1/3. O relator designado para a matéria é Izalci Lucas.
No Senado, tramita o PLS 193/2016, apresentado por Magno Malta (PR/ES), que integra “entre as diretrizes e bases da educação nacional, de que trata a Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996, o Programa Escola sem Partido”. A matéria está na Comissão de Educação, Cultura e Esporte (CE), sob a relatoria do senador Cristovam Buarque (PPS/DF).

A maioria dos projetos segue a minuta sugerida pela ESP, disponível no site (www.programaescolasempartido.org). Entre os principais artigos, determina-se que o poder público “não se imiscuirá na orientação sexual dos alunos nem permitirá qualquer prática capaz de comprometer, precipitar ou direcionar o natural amadurecimento e desenvolvimento de sua personalidade, em harmonia com a respectiva identidade biológica de sexo, sendo vedada, especialmente, a aplicação dos postulados da teoria ou ideologia de gênero”; e estabelece-se que o professor em sala de aula, “ao tratar de questões políticas, socioculturais e econômicas”, deve apresentar, “de forma justa, as principais versões, teorias, opiniões e perspectivas concorrentes a respeito”, bem como “respeitará o direito dos pais dos alunos a que seus filhos recebam a educação religiosa e moral que esteja de acordo com as suas próprias convicções”.

Nas casas legislativas de pelo menos seis estados (Rio de Janeiro, Goiás, São Paulo, Espírito Santo, Ceará e Rio Grande do Sul) e do Distrito Federal há projetos sobre o assunto. Desde maio deste ano, em Alagoas, vigora o Programa Escola Livre, que obriga os professores da rede estadual a manterem a “neutralidade” em questões políticas, ideológicas e religiosas na sala de aula. Propostas semelhantes foram aprovadas em duas câmaras municipais: Santa Cruz do Monte Castelo (PR) e Picuí (PB) – na cidade paraibana, porém, o prefeito Acácio Araújo (DEM) vetou o projeto do vereador Joaquim Vidal (PTB). Tramitam matérias com a mesma intenção em dez outras câmaras municipais, incluindo a do Rio de Janeiro, onde o PL 867/2014, apresentado pelo vereador Carlos Bolsonaro (PSC) já foi objeto de audiência pública. A TRIBUNA procurou o vereador, mas um funcionário do gabinete informou que a casa estava em recesso. Declaradamente inspirado no ESP, o PL 1.818/2016, de autoria do vereador Jorge Manaia (SD), “institui o programa liberdade de consciência” no município – e foi apensado ao de Carlos Bolsonaro. O texto prevê que o servidor que fizer “atividades de cunho político-partidário”, veicular “conteúdos dissociados” estabelecido pela Secretaria Municipal de Educação ou realizar “ações capazes de comprometer ou direcionar o natural desenvolvimento da personalidade dos alunos, incluindo a orientação sexual e a ideologia de gênero” poderá receber advertência, “suspensão sem vencimentos por trinta dias, se reincidente” ou “exoneração se reincidente pela terceira ou mais vezes”.

O deputado Flávio Bolsonaro garante que sua ação é contra a imposição ideológica “seja de esquerda ou de direita”, mas considera que há predominância da primeira. “Hoje, o MEC e os parâmetros curriculares nacionais dão uma falsa liberdade ao professor, que em tese pode escolher o material didático. Mas em todos há apenas a temática político-partidária de esquerda”, acusa. Segundo ele, os fatos históricos precisam ser mostrados aos alunos, mas alguns professores deturpariam os acontecimentos para impor suas visões. “É preciso falar sobre o que houve na Alemanha nazista, com o Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores. Alguns professores deturpam essa informação dizendo que foi um regime de direita. Isso é uma piada. Todos deveriam passar pelo Museu do Holocausto, para aprender o que foi o socialismo. Fazem confusão na cabeça das crianças, querendo formar muito mais militantes do que estudantes”, diz o parlamentar, reforçando que há uma “imposição da visão” de esquerda. “É uma lavagem cerebral, a continuidade da revolução cultural. Não há liberdade de manobra para os professores, exceto os que são militantes. Acho que isso se deve mais ao plano nacional de educação, uma tentativa do governo do PT de fazer essa mudança na cabeça das crianças”.

Para a professora Carina Martins, o ESP ataca a própria noção de democracia. “Na justificativa dos projetos, consideram que há 20 ou 30 anos a educação pública foi ideologizada. Isso coincide com o marco da Constituição de 1988. Não é um ataque apenas a quem eles chamam de ‘petralhas’, mas também às conquistas democráticas da nossa Constituição Cidadã. Se no artigo 1º o projeto defende a pluralidade e a neutralidade do Estado, nos seguintes pretende estipular uma convicção moral que irá nortear o trabalho docente. Isso é muito excludente diante da diversidade que temos em sala de aula. Pensa-se a escola como lugar de instrução, em que o professor deve priorizar conteúdos de forma técnica, transmissiva e desvinculada das questões sociais”, conclui.

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