29/07/2016 - 17:02

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O parlamentarismo e a Constituição

29/07/2016 - 17:02

O parlamentarismo e a Constituição

CARLOS ROBERTO SIQUEIRA CASTRO*

A crise política faz aflorar propostas de mudanças institucionais, não raro sem a devida atenção aos cânones constitucionais. Assim é com relação à implantação de um “semipresidencialismo” no Brasil, sugerida pelo presidente do Senado, Renan Calheiros. Não se cuida, aqui, de idolatrar ou de satanizar os dois protótipos de sistema de governo, seja o parlamentarista, seja o presidencialista. Tanto um quanto o outro já provaram, ora bem e ora mal, a depender da sedimentação histórica e da cultura política das nações em que operam, eis que inexiste universalismo axiológico nessa matéria. O parlamentarismo na África do Sul pré-Nelson Mandela, até 1996, forjou o monstruoso apartheid racial.  Já nas monarquias constitucionais, como na Inglaterra, Suécia e Dinamarca, provou bem. A sua vez, no período das ditaduras militares do Cone Sul, o presidencialismo encampou o regime do arbítrio e de violação dos direitos humanos. Já nos Estados Unidos e em outras repúblicas democráticas, teve êxito. 

No Brasil vige forte tradição presidencialista desde o início da era republicana, com a Constituição de 1891. As tentativas de adoção do parlamentarismo foram inclusive rechaçadas por consultas plebiscitárias e até mesmo consideradas golpistas, como bem pontuado por Elio Gaspari em artigo recente.  Assim foi com a emenda nº 4, em 1961, após a renúncia de Jânio Quadros, imposta por forças reacionárias para coarctar a investidura do vice-presidente eleito diretamente, João Goulart, o que já era um prenúncio do golpe de 1964. Mas, no plebiscito de 1962, o povo brasileiro optou amplamente pelo presidencialismo, restaurando as competências plenas do presidente da República mediante a Emenda nº 6, de 1963. Trinta anos após, em 1993, por força do art. 2º do ADCT à Constituição democrática de 1988, novamente a cidadania descartou o parlamentarismo, optando, por larga maioria do eleitorado, pela preservação da República e do sistema presidencial.

Agora, diante da aguda crise moral e política, cogita-se da adoção de um “semipresidencialismo” à feição francesa. Segundo esse modelo da 5ª República concebido em 1958 pelo general De Gaulle e por Michel Debré,  buscava-se pôr fim à hegemonia das assembleias e corrigir as deformações da 4ª República, de 1946, em que o abuso parlamentar inviabilizava as ações do Executivo. Assim, a Constituição da França proclama que o presidente da República é eleito pelo povo e indica o primeiro-ministro (arts. 7º e 8º), que a sua vez dirige as ações de governo e conduz a política da nação (arts. 20 e 21).  Notadamente, delineou-se a separação entre o domínio das leis e o domínio do regulamento executivo, ampliando-se a esfera do poder regulamentar para viabilizar a atuação das instituições governativas (art. 37). Já a Assembleia Nacional pode aprovar moção de censura ou desaprovar o programa de governo (art. 50), caso em que o presidente da República deve decretar a demissão do gabinete, o que traduz a dependência política do governo perante o parlamento. A sua vez, o presidente da República pode decretar a dissolução da Assembleia Nacional (art. 12), como é próprio do sistema parlamentar.

Esse modelo não pode ser transportado ao Brasil, uma vez que a separação de poderes constitui entre nós limitação material explícita à edição de emenda constitucional (CF - art. 60, § 4º, iii). O art. 2º da Carta dispõe que são poderes independentes e harmônicos entre si o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. Enquanto cláusula pétrea, a separação de poderes é da essência do sistema presidencialista, diferentemente do que ocorre com o modelo parlamentar, caracterizado pela estreita conjunção dos poderes Legislativo e Executivo. Qualquer projeto de emenda constitucional que desfigure a unicidade orgânica no exercício das funções de chefe de Estado e de chefe de Governo, enfeixadas pelo presidente da República, contraria a Constituição. Não cabe ao poder constituinte derivado alterar, por via de emenda, a estrutura de República presidencialista moldada pelo constituinte originário. Tanto mais que o resultado do plebiscito de 1993 tornou perene essa arquitetura de governo. Bem por isso, quando da promulgação da Emenda Parlamentarista nº 4, em 1961, para viabilizar a posse do presidente João Goulart, o art. 217, § 6º, da Constituição de 1946, obstava apenas projetos de emenda tendentes a abolir a Federação e a República, nada aduzindo quanto à separação de poderes, o que só viria a se implementar na carta política de 1988.

A bem dizer, a opção constituinte por um dos sistemas de governo não deve ser fruto de pretextos ou ambições conjunturais. Deve resultar de um projeto consequente e amadurecido da nação sobre como engendrar a governabilidade e seus destinos de grandeza. Em qualquer caso, porém, urge, antes, empreender a reforma partidária que permita a organização de autênticos partidos políticos, com definições programáticas e solenes compromissos institucionais. Sem isso, o atual e promíscuo quadro partidário, poluído por 35 legendas com precária ou nenhuma representatividade, contaminará qualquer sistema de governo e os poderes da República.  
*Conselheiro federal da OAB pelo Rio de Janeiro, professor titular de Direito Constitucional da Uerj e professor visitante na Université Panthéon Assas – Paris

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