29/07/2016 - 17:15

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Processo eletrônico excludente

29/07/2016 - 17:15

Processo eletrônico excludente

ALEXANDRE WIGNER*

Direito é técnica. O conceito grego da ambivalência nos ensinou que a técnica que resolve o problema é a mesma que cria novos problemas. A técnica aumenta as possibilidades e, por consequência, a complexidade. Acerca disso, o Direito fraterno propõe, no seu projeto, uma inclusão, sem confins, em todos os direitos fundamentais e em todos os bens comuns da humanidade. A tecnologia pode formar uma emancipação social, pela velocidade na divulgação de novos modelos transdisciplinares. 

Das lições de Albano Marcos Bastos Pepe, colhemos o substrato: “Hobbes sustenta que a sociabilidade só ocorre a partir da  vontade racional do homem, ela não está nele, mas é construída, sendo uma convenção. Assim, todos podem tudo contra todos, até que surja o Estado cooptando e coagindo ao cumprimento das normas impostas. Nesta dimensão deixa de existir uma ordem cósmica natural e passa a existir uma racionalidade de uma ordem positivada”. 

Mas o que acontece quando uma nação soberana, com território e cerca de 200 milhões de pessoas, fica sujeita à arbitrariedade da ineficiência do próprio governo que institui obstáculo ao exercício de demandas contra ele próprio? Nesse caso, a ordem hobbesiana da nova filosofia social, supracitada, não ficará invertida? Poucos agentes políticos cooptaram o Estado prejudicando o exercício da cidadania. Numa marcha lenta e gradual, de avanços e retrocessos, a falácia, a mentira, o ardil são levados ao extremo sob o falso manto da modernidade, quando na verdade obstruem as conquistas alcançadas. Onde se assenta o direito do cidadão comum contra o Estado para conhecer suas demandas? Por que o foro e a competência foram trasladadas para o mundo virtual se o Estado não concede plataforma eficaz para isso? É óbvio que o processo eletrônico será implantado, mas para isso as bases tecnológicas e de acesso devem estar firmes, ao reverso do que ocorre hoje.

É de relevância a forma como preparamos os operadores do Direito, bem como impressiona a dinâmica formalista do devido processo litigioso, ora empurrado para a nuvem virtual. Nem ao menos encontramos consenso sobre o processo formal e o Judiciário impõe para a sociedade despreparada, sem acesso a máquinas e programas comuns, plataformas que  não combinam entre si? 

O processo eletrônico não apresenta forma e conteúdo únicos entre as várias esferas da Justiça Federal e ou Estadual e suas instâncias.

Façamos uma análise quanto à divisão dos direitos fundamentais. Os de primeira geração são aqueles direitos de defesa do cidadão contra o Estado, em que este deveria salvaguardar a liberdade,  o direito à vida, à intimidade, à inviolabilidade etc. Quando livre do jugo do poder estatal, surge uma nova escala de direito fundamental – os de segunda geração, responsáveis pela proteção da dignidade, pela satisfação das necessidades mínimas de viver, com organização de uma estrutura social de alcance a todos. Por fim, após satisfeitas a liberdade e as necessidades, reclama a cidadania uma nova satisfação fundamental direcionada à essencialidade do destino da humanidade, agora em referência a uma coletividade, e não a um indivíduo abstratamente considerado. Tais direitos de terceira geração reclamam paz, desenvolvimento econômico, comunicação etc. Percebe-se que os direitos fundamentais de primeira geração são negativos por essência, pois determinam uma abstenção por parte do Estado contra o cidadão. Então, quando o Estado obriga o uso de um processo eletrônico que decididamente exclui, em vez de incluir, percebemos que tais direitos são violados e, por consequência, os demais também.

O que importa é o conjunto normativo, destinado a todos, como forma abstrata a regular a vida social. Uma decisão ou execução administrativa pode ser inconstitucional porque deixou de observar princípio maior. E, nesse caso, não há inconstitucionalidade secundária. Por sinal, nunca é secundária qualquer violação à Constituição. Ao reverso, mesmo que reflexa, deve ser considerada direta e frontal, pois não se pode admitir nenhuma, por menor que seja, violação à ordem democrática maior. Porém, não estamos frente a uma questão constitucional pura e simples, mas a uma ordem: o acesso à Justiça será eletrônico. 

O Judiciário considerou que todos estão aptos a essa nova forma instrumental de processo. Todavia, isso não corresponde à realidade. Tal evento, hoje, faz a comunidade jurídica se curvar frente ao domínio econômico dos grandes escritórios e de estruturas de informática caras e pouco acessíveis. O acesso ao Judiciário se elitiza com o processo eletrônico. Esse é o cenário criado pelo próprio governo.

Porém, existem princípios inerentes a uma democracia que independem de ser previamente criados, são intensos e presentes. Chamaremos-os de ”superordem mundial”. É uma disposição estruturada e originária da própria humanidade que não permite opressão, ora revestida de modernização eletrônica, sob pena de haver ou ser produzido um atentado contra a República e a democracia constituída, de acesso a todos que se sentirem ofendidos.

Em essência, essas cláusulas não somente serão endereçadas às gerações futuras, como de certo modo refletem exatamente um compromisso positivo com a garantia e a igualdade de armas dentro do devido processo legal.

Por mais esdrúxulo que seja, cremos num Estado falho para resolver um conflito, mas muitas vezes o mesmo Estado é responsável pelo problema. E agora esse Estado falho cria uma ferramenta que não inclui, mas exclui. Nenhuma corte no mundo poderia obstruir ou suspender a forma tradicional de requerer sem antes ter certeza de que a comunidade está apta para entender e praticar essa nova ferramenta.
Parece  nítido o interesse do Estado em criar dificuldade restringindo o acesso simples e oportuno a qualquer cidadão ou membro da comunidade jurídica nacional. 

Precisamos encontrar outras formas de atuação do Judiciário, mesmo como impressão digital de modernidade. O processo extremo deve ser precedido de uma tentativa de acordo, porém impor mudança abrupta restringe e promove retrocesso, interessante somente aos dominantes da tecnologia. Necessitamos, então, estruturar o direito ao acesso como garantia fundamental e superior ao litigioso, aceitando a existência de uma ”superordem mundial” para perpetuar o equilíbrio entre a tecnologia, o capital e a humanidade. 

Entender a situação proposta significa estudar novas formas de ministrar o Direito. Toda teoria e prática docente se dá no sentindo de administrar o contencioso, mas não aprofundamos o estudo da promoção das novas formas tecnológicas de processos. Com o advento da rede de computadores o mundo se tornou plano, como um mapa aberto sobre a mesa. As informações são automaticamente publicadas. 

Mas nem todos os cidadãos e juristas têm domínio da nova ordem tecnológica. Demorará décadas até as novas gerações gerenciarem com segurança a nova forma processual.

Claramente, surge na premissa anterior a justificação do presente artigo: o processo eletrônico é excludente.
 
* Advogado e consultor de empresas

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