17/10/2017 - 14:47

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Abuso sexual no ônibus é estupro?

17/10/2017 - 14:47

Abuso sexual no ônibus é estupro?

Relatos de molestamento contra mulheres em transportes públicos, incluindo os casos dos “ejaculadores”, levanta discussão sobre a necessidade de criação de um tipo penal específico para essas ocorrências
 
NÁDIA MENDES
 
O debate sobre a tipificação do crime de estupro vem dominando a pauta nacional nos últimos meses em razão, principalmente, dos casos de homens se masturbando e ejaculando sobre mulheres em transportes públicos. O primeiro caso de um “ejaculador” que teve grande repercussão aconteceu em São Paulo, no final de agosto, e causou comoção popular quando o acusado foi solto na audiência de custódia. Segundo o juiz, ele não havia causado constrangimento, tampouco violência ou grave ameaça à vítima, portanto não poderia ser indiciado por estupro.

Como resposta a este e a muitos episódios que foram amplamente debatidos no último mês, a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) do Senado aprovou, em 27 de setembro, dois projetos de lei tratando do tema. O PLS 740/2015, de autoria do senador Humberto Costa (PT/PE), cria a figura do crime de constrangimento ofensivo ao pudor em transporte público; já o PLS 312/2017, da senadora Marta Suplicy (PMDB/SP), institui o crime de molestamento sexual. Se não houver recursos para análise do plenário, os projetos serão encaminhados para a apreciação da Câmara dos Deputados.

Há menos de dez anos, os casos de estupro eram vistos pelo Direito Penal como um crime contra os costumes, e não contra a dignidade sexual ou como uma violação da liberdade sexual. A mudança recente, que só ocorreu graças à Lei 12.015/2009, mostra o quanto o machismo ainda está entranhado na legislação brasileira.

Por isso, a procuradora de Justiça aposentada e advogada criminal Luiza Nagib Eluf acredita que tratar esses casos como constrangimento ofensivo ao pudor seria um retrocesso. “Esta expressão nos remete ao século passado. Não podemos falar de crimes sexuais em 2017 usando a mesma terminologia que era usada em 1940. O que é o pudor? É deixar com vergonha? Esses crimes são cometidos contra pessoas e usar a palavra pudor é reduzir a mulher a algo que não está na categoria humana”, pontua.

Segundo Eluf, não há vácuo legal, mas uma inadequação na aplicação da lei já existente. “O artigo 213 do Código Penal, que trata do estupro, prevê que outros atos libidinosos estão sujeitos à mesma pena, que é de seis a dez anos de prisão. O artigo é muito amplo e abrange tanto a relação vaginal, quanto a anal e a oral. Um ato libidinoso com certeza não será tão grave quanto uma relação completa. A legislação está inadequada, mas não é inexistente. O ideal seria criar outro tipo penal”.

Ao contrário do projeto de lei que pretende definir o constrangimento ofensivo ao pudor, que a advogada acredita que não deveria ser aprovado, o projeto criando o crime de molestamento sexual é bem aceito por ela. “Parece-me bem mais razoável que, quando houver agressão sexual, isto passe a ser tipificado como molestamento”, diz. “Espero que a redação final seja aplicável e acessível ao entendimento da pessoa comum. Não podemos falar em um idioma que a população brasileira não vai entender”. Eluf defende a necessidade de alterar mais amplamente as leis sobre crimes contra a dignidade sexual. “Essa mudança traria um reflexo muito grande no cotidiano das mulheres”.

Sobre os “ejaculadores” do transporte público, ela acredita que os casos, a rigor, devem ser tratados como estupro. “O certo é aplicar a lei do estupro. O problema é que virou uma loteria, depende muito do entendimento do juiz. Por isso precisamos de leis mais claras. A Justiça não pode ser uma roleta”, critica.
Embora compreenda outras leituras, principalmente por parte de grupos feministas, na avaliação da professora de Direito Penal da Universidade Federal do Rio de Janeiro Luciana Boiteux, essa situação específica de homens ejaculando em mulheres nos transportes públicos não poderia ser tipificada como estupro. “No Direito Penal existe o princípio da legalidade e da interpretação restrita. Na minha avaliação técnica, o que está se propondo com a tipificação como estupro seria uma ampliação do sentido do tipo penal”, explica.

Ela lembra que alguns grupos levantaram a questão de que contravenção penal, importunação ofensiva ou até ato obsceno teriam uma pena bastante baixa para a gravidade da situação. O melhor, para Boiteux, seria criar um tipo mais grave do que essas possibilidades que o Direito Penal apresenta hoje. “Nesse quadro, tecnicamente, o que deve ser feito é uma tipificação proporcional e que efetivamente responda com um molde legal adequado a essa situação de constrangimento a que são submetidas as mulheres nos transportes públicos”. A professora observa a importância de criar um tipo que abarque todo tipo de constrangimento imposto às mulheres em locais públicos, não só na forma de ejaculação, ainda que não haja violência física concreta. 

De acordo com Boiteux, é fundamental que o Congresso Nacional debata sobre uma tipificação adequada, capaz de dar resposta às preocupações mais técnicas e também a essa demanda legítima das mulheres, que não querem deixar que esses atos sejam praticados impunemente. Mas, pondera ela, essa não pode ser uma discussão só de Direito Penal. “É preciso que o debate seja aprofundado, principalmente com políticas públicas que possam garantir a efetiva proteção para as mulheres, já que o Direito Penal só age depois da violência já praticada”.
 
Seccional chama ao debate
“A OAB não poderia furtar-se a trazer um tema dessa relevância para a nossa casa”, afirmou a presidente da OAB Mulher, Marisa Gaudio, no evento promovido em conjunto com a Comissão de Segurança Pública (CSP) da OAB/RJ, em 19 de setembro. As duas comissões pretendem, como ressaltou o presidente da CSP, Breno Melaragno, garantir uma atuação prática da Ordem sobre a questão da segurança da mulher nos transportes públicos.

No encontro, a possibilidade de tipificação do caso dos “ejaculadores” como estupro também não foi unânime. Para a delegada titular da Delegacia de Atendimento a Mulher do Centro, Gabriela Von Beauvais, reformar as leis penais é necessário. “Quando temos uma legislação machista, temos interpretações machistas. Enquanto não a mudarmos, porque as leis refletem a sociedade, e não modificarmos nosso pensamento, a mulher vai continuar sendo um objeto de poder dos homens, que pensam que podem fazer o que querem”, defendeu.

Para exemplificar, a delegada comparou o crime de estupro ao de violação de domicílio. “No segundo caso, não é preciso ter violência ou grave ameaça para ser considerado um crime. Se alguém entra no seu domicilio sem sua autorização já é considerado um crime. Quando se trata da mulher é preciso ter a violência e a grave ameaça?”, questionou. “Ou seja, a mulher precisa dizer que ela não quer para que ela não seja agredida sexualmente. Aí nós já podemos verificar o quanto a nossa sociedade é machista e como as nossas leis são machistas”.

Segundo Beauvais, a necessidade do Direito Penal para solucionar conflitos mostra que a sociedade brasileira está desestruturada. “Quando a toda hora é preciso intervir com o Direito Penal é porque as pessoas não estão sabendo dialogar e não estão sabendo se respeitar”, destacou. Para ela, é necessário mudar a legislação. “Acredito que deve haver, de forma mais abrangente. Devemos criminalizar essas condutas, e isso não pode ficar restrito aos transportes públicos, porque comportamentos semelhantes podem ocorrer também em ambiente doméstico”.

Já a delegada Cristiana Bento não vê necessidade de nova lei. Ela estava à frente da Delegacia da Criança e do Adolescente Vítima em 2016, quando veio à tona o caso da adolescente alvo de estupro coletivo em Jacarepaguá. A experiência de então fez a delegada argumentar contrariamente à criação de outro tipo penal.

“Quando houve o estupro coletivo fui procurada por vários deputados federais para tratar de uma lei que tipificasse o crime de estupro coletivo. O que eu disse naquela época, e volto a dizer hoje, é que não há necessidade de lei específica, porque se criaria uma pena de 15 a 20 anos de prisão, por exemplo. Mas, se há três ou quatro pessoas reunidas para praticar um crime, cada um vai ser autor e partícipe do crime do outro, tornando a pena muito mais severa do que tipificar um único delito”, observou. 

Na opinião dela, a situação dos “ejaculadores” nos ônibus poderia ser classificada como crime de estupro de vulnerável. “O artigo 217-A do Código Penal é claro. Quando a pessoa não pode oferecer resistência à agressão sexual, isso é tipificado como estupro de vulnerável. Não existe vácuo legislativo porque a Lei 12.015 já trouxe essa mudança”.

Bento reiterou que não faltam leis, e sim debate sobre a cultura do estupro, que está ligada ao grande número de casos de violência sexual noticiados diariamente. “Não há como deixar de lado, também, o machismo que está enraizado na nossa sociedade. A cultura do estupro minimiza a violência sofrida pela mulher, ainda na delegacia, quando o policial olha para a roupa da vítima e questiona por que está vestida daquele jeito ou por que estava naquele local e naquela hora. Tudo isso para absolver o agressor”.

No ponto de vista do delegado Marcelo Carregosa, um fato, para ser criminoso, não precisa estar previsto no Código Penal. Ele sugeriu que o ideal seria uma gradação da conduta criminosa, semelhante ao que ocorre no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). “Não temos meio termo no nosso conceito de estupro, acredito que o ideal seria que o código contemplasse várias condutas com violências diferentes e aplicasse penas diferentes”.

Para Carregosa, é fundamental começar a trabalhar o conceito de cultura do estupro na sociedade, principalmente nas comunidades carentes. “Países onde a população é mais esclarecida, como os escandinavos, têm alto índice de estupros porque várias condutas são classificadas como tal. É preciso deixar claro que qualquer episódio de negação do ato sexual pode ser classificado como estupro”, reforçou.

A juíza Katerine Jatahy também destacou a importância da educação de gênero, não só nas escolas, mas em todas as instituições. “As leis são machistas, não são atuais e refletem a sociedade patriarcal. As mulheres precisam ter consciência de que estupro é crime, entender o que é um estupro e que precisam denunciar”.

“A gente sabe que esse é um problema institucionalizado e que precisamos de políticas públicas para combatê-lo. Mulheres deixam de trabalhar em lugares distantes de suas casas ou até de estudar porque têm medo de usar o transporte público. Somos limitadas na nossa liberdade”, acrescentou a defensora pública Letícia Furtado, que trabalha com mulheres vítimas de violência doméstica na capital.

Coube ao advogado João Pedro Pádua encerrar o debate. “Ao falar da mulher em situação de violência, é muito natural que a gente puxe o debate para o Direito Penal e tente exigir dele uma coisa que ele não pode entregar. A lógica do Direito Penal é baseada em episódios, mas a mulher em situação de violência não é episódica, esta é uma situação cotidiana”.

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