17/10/2017 - 13:21

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Inadmissibilidade da gravação ambiental clandestina

17/10/2017 - 13:21

Inadmissibilidade da gravação ambiental clandestina

Diogo Tebet*
 
O arcabouço processual penal brasileiro tem sofrido nos últimos anos verdadeira mutação, especialmente no que concerne aos contornos da fase pré-processual. Medidas cautelares vêm sistematicamente sendo aplicadas com visível descolamento de suas bases conceituais e constitucionais. Pode-se identificar como a mola propulsora de tal distanciamento o denominado combate à corrupção e às organizações criminosas realizado nas megaoperações policiais. Nesse contexto, a Lei 12.850/2013 – que define organização criminosa e dispõe sobre a investigação criminal –,  contemplou um arsenal de meios de obtenção de prova que impulsionam essa novel utilização dos institutos processuais penais, sendo o mais destacado a notoriamente conhecida delação premiada.
 
O protagonismo na utilização desse instituto pelos entes da persecução penal, e sua procura por diversos investigados (ou candidatos a), é tido pela opinião pública (ou publicada), e até por diversos operadores do Direito, como “a única saída” para determinados sujeitos passivos da persecução penal, seja por uma pretensa robustez probatória produzida, seja por se estar diante, conforme célebre expressão do ministro Marco Aurélio Melo, de “tempos estranhos os vivenciados nesta sofrida República”. O fato é que, de uma forma ou de outra, a delação premiada foi alçada a eixo referencial do sistema punitivo brasileiro contra a chamada criminalidade de colarinho branco. Esse meio de obtenção de prova extremamente polêmico, de natureza ética duvidosa, tida como produto de um eficientismo penal, vem adquirindo maior atenção a cada dia, tornando-se, inclusive, o epicentro de acusações criminais contra o atual presidente da República, bem como diversos personagens da vida pública e empresarial. Um dos fatores que desperta considerável polêmica reside nos elementos trazidos pelo delator aptos a respaldar a celebração do acordo. São os denominados elementos de corroboração que visam necessariamente à verificação da idoneidade e veracidade das declarações firmadas pelo delator. Um meio de obtenção de prova de corroboração em particular vem se tornando extremamente controvertido – e que vem (ou vinha) servindo como elemento decisivo de barganha para acordos de delação: a gravação ambiental clandestina.
 
Diferenciada pela doutrina da interceptação ambiental e da escuta ambiental, a gravação ambiental clandestina pode ser definida como a captação no ambiente da comunicação feita por um dos interlocutores sem o conhecimento do outro (ex: gravador, câmeras ocultas etc.). Enquanto não há dissenso ou controvérsia quanto à legalidade, desde que presente determinação judicial, das interceptações ambientais, a questão da (in)admissibilidade da gravação ambiental clandestina, apesar de pacificamente aceita pela jurisprudência dos tribunais, notadamente do Supremo Tribunal Federal, gera grave insegurança e preocupação no que concerne ao esvaziamento dos direitos e garantias fundamentais do cidadão. A gravação ambiental vem sendo cada vez mais utilizada por investigados para tratativas de acordo de delação premiada, tudo com o objetivo de extrair e documentar verdadeiras confissões de práticas criminosas por terceiros, muitas das vezes artificialmente obtidas (configurando ação de agente provocador). O fim é inegável: robustecer o conjunto de elementos de corroboração a (i) efetivamente celebrar o acordo de delação pretendido e (ii) em bases mais interessantes no que se refere à concessão de benefícios. Tal móvel é de todo distinto do que o Supremo Tribunal Federal analisara para reconhecer a licitude das gravações clandestinas (“é lícita a prova consistente em gravação ambiental realizada por um dos interlocutores sem conhecimento do outro” – QO-RG RE 583.937/RJ). Em verdade, toda a jurisprudência do Supremo invoca, de forma reiterada, alguns pontos que justificariam a admissibilidade da gravação clandestina unilateral: (i) a Constituição não trata a privacidade como direito absoluto; (ii) quando há investida criminosa por parte do interlocutor, tendo a vítima agido em legítima defesa, a gravação é admitida; (iii) gravação só é proibida quando houver causa legal específica de sigilo ou reserva de conversação; (iv) inexiste ilicitude em alguém gravar uma conversa que mantém com outrem, com a finalidade de documentá-la, futuramente, em caso de negativa; (v) quem revela conversa da qual foi partícipe, como emissor ou receptor, apenas dispõe do que também é seu; (vi) gravação como prova cabal da veracidade do alegado pela testemunha deve ser permitido e (vii) não há proibição legal para a gravação (pode haver tão-somente violação a preceito ético).
 
 Com o passar dos anos, tais noções permaneceram imutáveis, sendo adotadas e aceitas pelos demais tribunais do país, desencorajando a (re)discussão por parte dos operadores do Direito, seja na lide forense, seja no âmbito doutrinário. Tendo nos dias de hoje a gravação clandestina se tornado prática constante de investigados que pretendem celebrar acordo de delação premiada (e não vítimas de criminosos que agem em legitima defesa), é oportuna a análise, de forma objetiva, acerca da mais completa inadmissibilidade de tal meio de obtenção de prova. 
 
Inadmissibilidade das gravações clandestinas, seja a telefônica, seja a ambiental, se evidencia a partir de alguns standards de índole constitucional e legal, não considerados adequadamente pelo STF. A primeira delas decorre do direito à intimidade, cf. art. 5º, inciso X, da Carta. A gravação clandestina viola decisivamente o direito constitucional à privacidade e à intimidade do interlocutor no sentido de que conversas travadas reservadamente entre as partes contêm o que o Direito norte-americano denomina de reasonable expectation of privacy. Ou seja, quando se trava diálogo privado, em ambiente (e condições) não aberto ao público, há uma inegável expectativa de que o conteúdo de tal conversa permanecerá restrito aos presentes. A segunda objeção repousa no direito constitucional à não autoincriminação, consectário, no Brasil, do direito ao silêncio (cf. art. 5º, inciso LXIII, CF). O terceiro fundamento que caracteriza a gravação clandestina como ilícita encontra guarida na vedação da utilização de meios sub-reptícios (dissimulação) ocultos e enganosos como meios de prova, sem o consentimento de todos os interlocutores e/ou autorização judicial. 
 
Nos Estados Unidos, a legislação dos 12 maiores estados exige o denominado all parties consent (consentimento de todas as partes envolvidas no diálogo) para admitir-se como válida a gravação ambiental clandestina, constituindo, em alguns deles, crime efetuar tal gravação sem aquiescência de outrem, sendo vedada a utilização de gravação por meios sub-reptícios, ocultos ou enganosos (surreptitiously manner). A quarta e última objeção à admissibilidade da gravação clandestina e que a caracteriza definitivamente como meio ilícito de prova é a ausência de regulamentação legal. Configurando invariavelmente sacrifício aos direitos fundamentais, os meios ocultos de investigação criminal estão sujeitos a uma intransponível exigência da reserva de lei. Desprezar os parâmetros aqui estabelecidos em nome de um combate à corrupção e às organizações criminosas é positivar a ideia de que o fim da verdade justifica qualquer meio, sendo certo que, em um Estado de Direito, a ideia de que é unicamente a natureza do meio que garante a regular e válida consecução do fim.
 
*Presidente da Comissão de Processo Penal da OAB/RJ e vice-presidente da Comissão de Prerrogativas

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