17/10/2017 - 13:30

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Perseguição a religiões de matriz africana no Rio aumenta e preocupa

17/10/2017 - 13:30

Perseguição a religiões de matriz africana no Rio aumenta e preocupa

VITOR FRAGA E CÁSSIA BITTAR
 
O recente aumento de casos de ataques principalmente a terreiros de umbanda e candomblé no Rio de Janeiro pode, à primeira vista, parecer algo novo. No entanto, apesar dos números, a perseguição aos praticantes de crenças de matriz africana em território fluminense é um problema que já vem de muito tempo, e o crescimento da intolerância pode ser indicativo de uma reação à afirmação da identidade política, social e cultural do povo negro, que, ao sair da invisibilidade e ocupar posições de evidência, torna-se alvo de grupos que desejam que esse setor da sociedade permaneça marginalizado.

Por medo de agressões ou para fugir do preconceito, muitas vítimas não notificam os casos de violência. Ainda assim, os índices preocupam. Desde 2011, o Disque 100, principal canal da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, registra esse tipo de caso. No primeiro ano, foram 15 denúncias feitas; em 2015, já eram 556 casos, e em 2016, 697. Ou seja, em um período de cinco anos, houve um aumento de 4.546%, segundo relatório divulgado ano passado pela Secretaria de Direitos Humanos, vinculada ao Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania. Publicado em março de 2017, outro relatório sobre o mesmo canal de assistência, resultado de uma parceria entre a Comissão de Combate à Intolerância Religiosa, o Centro de Articulação de Populações Marginalizadas e o Laboratório de História das Experiências Religiosas do Instituto de História da UFRJ, apontou que foram registradas 223 denúncias em 2015, sendo 32 no Rio. Já em 2016, houve no estado 79 denúncias, um crescimento de 147%. Números do Centro de Promoção da Liberdade Religiosa e Direitos Humanos (Ceplir) sobre a assistência prestada pelo estado são ainda mais preocupantes: 1.014 atendimentos referentes a denúncias de ataques à fé entre julho de 2012 e setembro de 2015, sendo que 71,15% tinham como alvo as religiões de matriz africana.

Apenas nos últimos dois meses, a Secretaria Estadual de Direitos Humanos e Políticas para Mulheres e Idosos assinalou 39 casos de ataques, sendo 12 na Baixada Fluminense – 10 em Nova Iguaçu, onde existe a maior quantidade de casas e terreiros de matriz africana conhecidos. Na Bahia, onde os episódios também têm aumentado, espaços de candomblé e o Coletivo de Entidades Negras (CEN) estão se organizando para levar os registros de intolerância religiosa à Organização das Nações Unidas (ONU).

“Isso tudo aumentou terrivelmente após as últimas eleições. É um ataque antigo, mas hoje a mídia anuncia mais. Antes, o negro era tão somente cooptado, muitos até diziam que não havia preconceito, que vivíamos verdadeiramente em uma democracia racial. Só que, além de a história brasileira ser mal contada, a do negro é invisibilizada. As dívidas que o Brasil adquiriu com o povo negro ao realizar a Abolição nunca foram pagas. Tudo lhe foi retirado. Desde a língua, a religião, a família, a vida digna, a saúde, e principalmente a instrução, e até hoje o projeto é esse. No momento em que esse segmento social começa a tomar conhecimento da sua verdadeira história, gera reação”, afirma a diretora de Igualdade Racial da OAB/RJ, Ivone Caetano. Primeira desembargadora negra do TJ/RJ, ela sustenta que um dos efeitos da invisibilidade e da ocultação da história do povo negro foi exatamente retirar a autoestima e impedir a resistência.

Militante desde os anos 1970, quando ajudou a fundar o Movimento Negro Unificado (MNU), Yedo Ferreira reforça a tese de que se trata de uma perseguição histórica, em momento agudo. “A tradição de matriz africana, de modo geral, sempre foi perseguida no Brasil, mesmo após a Proclamação da República. Mas hoje é pior. Antes, a polícia entrava nos terreiros, fazia toda a sorte de desmandos. A partir da década de 1940 o Estado diminui sua ação nesse sentido, e hoje são setores da sociedade que realizam essas ações”, argumenta. Para ele, o que acontece agora é fruto da ascensão de alguns grupos religiosos. “A partir da década de 1980, determinadas denominações religiosas, não todas, cresceram justamente fazendo ataques às religiões de matriz africana. A Igreja Universal é um exemplo. Como as matrizes evangélicas não são unificadas, há diferentes pastores, e alguns deles têm atuação contra as casas religiosas de matriz africana. Muitos contam com determinados setores marginais da sociedade, que eles dizem tentar recuperar, justamente para fazer esses ataques”, condena Yedo, citando um fato que se tornou mais conhecido após a divulgação nas redes sociais de vídeos em que traficantes fazem ataques a terreiros.

Gerações mais novas da luta contra o racismo no Brasil compartilham a mesma consciência histórica. “As pessoas esquecem que o ato de intolerância religiosa é o crime mais antigo da humanidade”, resume a socióloga e ativista do movimento negro Flávia Pinto. Conhecida como Mãe Flávia, a sacerdotisa de umbanda do Centro Espírita Casa do Perdão, em Campo Grande, recebeu o Prêmio Nacional de Direitos Humanos em 2011, e acredita que há uma mudança no cenário brasileiro nessa área. “Os movimentos sociais, as ONGs têm dado destaque na promoção desse debate e isso tem encorajado as pessoas a denunciarem e o poder público a desenvolver equipamentos para atendimento. Há 20 anos mais ou menos, quando um pastor atacou um símbolo religioso católico em rede pública de televisão, foi que o Brasil despertou mais para a questão”, relembra, relacionando o problema ao período do crescimento do segmento neopentecostal no Brasil, mas fazendo coro à ressalva de que é preciso evitar generalizações. “É importante que a gente faça essa separação, muitos evangélicos não são assim. Os desse segmento são oportunistas da religião, que acessam nichos de jovens facilmente manipulados, que estão na cadeia. Essa tradição evangélica é feita de dualidade: para amar a Deus, tem que odiar o diabo. E o diabo tem que estar personificado em algo, em algum símbolo, e elegem as tradições africanas. Não são evangélicos de verdade, ou não fariam isso”, completa. 

Segundo a advogada, militante do movimento feminista negro e também umbandista Marcela Andrade, o Brasil “internalizou e estruturou toda uma concepção de hierarquização racial advinda de teorias racistas”, e com isso “atuou de forma a controlar o corpo negro”, na cultura, na religião e em outros setores. “Se observarmos toda a construção desse controle social vemos como a capoeira, o samba, o funk, enfim, movimentos culturais do povo negro foram historicamente coibidos e cerceados pelo poder público, representado por suas instituições, pela sociedade civil e pela mídia que infla signos estigmatizantes da cultura afro-brasileira”, argumenta.

Ela diz que é “muito perigoso associarmos a religião evangélica à culpa pelos ataques”. Para Andrade, não existe, de fato, aumento desse tipo de violência. “Acredito que a mídia está dando maior visibilidade aos historicamente excluídos e isto em razão do fortalecimento das pautas dos movimentos sociais, por isso a falsa sensação de que o número de ataques cresceu”, sustenta. Embora a quantidade de registros tenha aumentado recentemente, conforme mencionado, estudiosos acreditam que essa relação diga respeito a um maior número de denúncias, e não propriamente dos crimes.

A presidente da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa da OAB/RJ, Guiomar Mairovitch, se soma aos que identificam uma perseguição histórica às matrizes africanas. “A permanência do preconceito em geral está intimamente ligada à ignorância e à falta de informação. Essa ideia de demonização passa de geração em geração, por isso o preconceito até mesmo em relação às crianças nas escolas”, avalia. 
 
Raízes do Brasil 
Ivone Caetano questiona: “O que é que forma uma nação? Se temos 54% de pessoas autodeclaradas de um determinado segmento, que vive uma extrema desigualdade e desqualificação, que nação é essa? Pelo menos, deveria haver projetos e condições idênticas. O negro só vale na época da eleição, depois cai no ostracismo ou no fundo de uma prisão. O sangue do negro lavou e lavrou esse solo. O perigo é ele conhecer sua história”. Segundo a diretora de Igualdade Racial da Ordem, “o negro continua professando sua religião mesmo de forma invisibilizada”. A intolerância, frisa ela, é quase que basicamente relativa às religiões de matriz africana. “É um projeto europeu – primeiro de cristãos judeus, em seguida, de cristãos católicos. Com o passar do tempo assumiram a frente os cristãos evangélicos neopentecostais”, lista, inserindo o tema em seu contexto histórico, mas também nas relações de poder do mundo atual. “Catequizaram os presídios, cooptaram muitos negros que não conhecem sua própria história, mas que se sentiram visíveis através de uma religião que não é de sua cultura. A discriminação é um projeto de poder. Mas é importante deixar claro que são alguns grupos, nem todos os evangélicos pensam assim, conheço muitos que respeitam a religião do outro, até porque cada um fala com Deus da forma que quiser”, resume a advogada.

Mãe Flávia aponta que “o Brasil escravizou durante 400 anos”, e temos “apenas 129 anos de não escravização oficial”, em comparação. “A cultura identitária desse povo teve mais tempo oprimida do que liberta. Naturalmente a sociedade eurocristã colonizada brasileira não aceita a expressão cultural de um povo que ela sempre teve como cativo, como escravo”, critica.

Segundo a sacerdotisa, esse movimento histórico de perseguição fez com que, nos últimos anos, aspectos culturais ligados a essas religiões tenham perdido força na sociedade, como os costumes da festa dos santos Cosme e Damião que, no sincretismo religioso, também é comemorada na umbanda como a dos Erês ou Ibejis, entidades que estão ligadas ao espírito infantil. “Hoje em dia as pessoas têm vergonha de dar doce, ou dão escondido, para não serem julgadas, por exemplo”. Na opinião de Mãe Flávia, vive-se atualmente o que pode ser chamado de uma “guerra santa de proporções culturais”, em que já foi ultrapassado o limite da religião: “É uma ideologia que desconstrói a herança étnica de um povo. Pessoas com ascendência negra, inclusive, chamam a cultura dos seus antepassados de ‘coisa do demônio’”.

O cantor, compositor e advogado Nei Lopes, estudioso das culturas africanas, lembra que “até mais ou menos a década de 1950”, a perseguição era institucional. “Em colunas de memória de jornais como O Globo, há registros de posições absolutamente intolerantes, principalmente quando o terreiro do célebre Joãozinho da Gomeia, em Caxias, começou a ganhar notoriedade. Aos poucos, o candomblé começou a ser folclorizado, nos palcos de teatros e outros espaços, e aí a beleza dos rituais foi amenizando as acusações de ‘selvageria’ e ‘baixo-espiritismo’. Agora, a saudável ousadia de alguns enredos de escolas de samba acirrou a questão”, acrescenta.

“Um grande escritor que trabalhou essa questão do racismo, o [Frantz] Fanon, dizia que o racismo não se manifesta só na impressão da cor da pele. Essa é a mais evidente, mas o racismo se manifesta também no campo simbólico, com a desqualificação dos saberes dos subalternizados, historicamente submetidos à espoliação colonial, à escravidão”, completa o historiador Luiz Antonio Simas. Para ele, “existe o racismo religioso evidente, porque não se trata mais de uma simples disputa pelo mercado da fé”, e sim de “um racismo que é estrutural, naturalizado”, e opera no campo simbólico também. “A República nasce com um projeto de criminalizar as manifestações oriundas das populações afrodescendentes. A Lei de Vadiagem serviu para criminalizar o samba, a capoeira e essas religiosidades. No Rio de Janeiro, o maior acervo de arte sacra afro-brasileira está no Museu da Polícia. E, claro, não se reuniu tudo isso por interesse etnológico ou antropológico, mas em um processo de desqualificação desses saberes”, aponta, citando o caso dos objetos sagrados no Museu da Polícia (ver matéria na página 19). Simas também avalia que há um contexto “de avanço de um setor neopentecostal que é extremamente agressivo e atua na dimensão da demonização desses saberes” afro-brasileiros. “Hoje, há professores de história que têm dificuldade de trabalhar conteúdos de cultura afro-brasileira nas escolas porque há crianças que não assistem, acham que é coisa do demônio”, revela.
 
Legislação específica e educação
O presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB/RJ, Marcelo Chalréo, diz que é preciso “uma investigação profunda”, porque é “muito difícil achar uma casa de umbanda ou um terreiro de candomblé que não tenha sofrido um ataque”. Ele acrescenta que deve haver uma ação “efetiva por parte do Estado que seja inexoravelmente de combate à intolerância religiosa, através de mecanismos que não se resumam ao punitivismo”. A comissão acompanhou como observadora a audiência que houve no Ministério Público sobre o tema.

Marcela Andrade exemplifica como o país “se constitui como nação internalizando teorias racistas”, marcadas no ordenamento jurídico. “Nosso Código Penal criminalizava a capoeira, trazia o crime de vadiagem, que nada mais era do que controlar e prender homens negros que não se adequavam à lógica do trabalho, não tendo uma ocupação. Também se instituiu o crime de quadrilha, outro dispositivo de controle, pois três homens negros livres unidos representavam um risco social. Nesse mesmo momento, as religiões afro-brasileiras foram coibidas. Impossível se pensar no fim do racismo em suas múltiplas vertentes sem pensar em uma discussão séria e responsável sobre o mesmo, sem questionar a situação de privilégios de brancos em detrimento de negros”, questiona ela, antes de ressaltar: “Enquanto não racializarmos todas as discussões e o poder público, a sociedade civil e a mídia não derem a legítima voz e o legítimo espaço a quem de direito, não haverá mudanças muito substanciais e continuaremos em trabalho e luta constante para ocuparmos esses espaços e levarmos nossas vozes”.

Segundo o inciso VI do artigo 5° da Constituição Federal, “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”. A Lei 9.459/1997, que alterou os artigos 1º e 20 da Lei 7.716/1989 (Lei Caó, que define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor) e acrescentou parágrafo ao artigo 140 do Decreto-Lei 2.848/1940, determina de maneira geral que serão punidos “os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”.

O Código Penal não tipifica o crime de intolerância religiosa de maneira específica. Em casos de danos a templos, assim como na maioria dos casos de racismo, a polícia geralmente registra como injúria. “A ausência de uma tipificação específica acaba por estimular a impunidade, já que, muitas vezes, as ocorrências são registradas nas delegacias como injúria, cuja pena é de um a seis meses de detenção e multa. Sem falar no fato de que as pessoas que sofrem com a intolerância, na maioria das vezes, não denunciam o crime por não conhecerem seus direitos e não saberem a quem recorrer, pela ausência de lei específica”, argumenta Guiomar Mairovitch. Segundo a presidente da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa da Ordem, o grupo defende “a aprovação do projeto de lei relacionado ao tema”, e pretende apoiar ações preventivas, além da criação de um órgão de apoio e acolhimento das denúncias.

A forma como o Judiciário trata os casos é outro problema. “Fico impressionada como alguns juízes, quando lhes chegam às mãos questões como essa, decidem que não se trata de religião porque não tem um código escrito. Primeiro, os colonizadores já satanizavam essas crenças, e por isso muitos mantinham em sigilo a prática. Em segundo lugar, não era permitido que os negros estudassem, a maioria não sabia ler nem escrever. Chega a ser hilário, não posso acreditar que sejam desinformados a esse ponto. A Constituição, ao garantir a liberdade religiosa, não determinou se estas tinham que ter código escrito ou não”, defende a advogada. Nei Lopes, autor da Enciclopédia da Diáspora Africana, também relativiza a escrita como critério. “O racismo brasileiro é muito arraigado e nunca deixou de existir. E, por absoluto desconhecimento, as religiões afro-brasileiras são tidas como manifestações inferiores, principalmente por não terem, ainda, um livro. Como outras antigas, não abraâmicas, mas nem por isso menos importantes, também não têm. O retrocesso político e social que neste momento estamos vivendo está potencializando a discriminação”, aponta. Para ele, é preciso “ampliar as garantias constitucionais e os instrumentos de repressão à discriminação”.

Coordenadora do Ceplir, primeiro equipamento público no país a cuidar de casos de intolerância religiosa, Mãe Flávia Pinto concorda com a tese de que a grande ferramenta de combate é a promoção do conhecimento: “O que aconteceu com o movimento negro foi isso, com o de mulheres, também, e com o dos LGBTs, idem. Percorreu-se um caminho no Brasil até que se entendesse que a intolerância religiosa era um caso de necessidade de atenção pública, de promoção de políticas públicas. Mas até isso acontecer, várias pessoas morreram, não foram ouvidas. Então, quanto mais as pessoas, a mídia, estiverem dando voz ao nosso grito, quanto mais estiverem conhecendo esses equipamentos públicos de atendimento à vitima, quanto mais as universidades estiverem estudando o tema, instituições como a OAB debatendo esse assunto, mais isso fará com que se compreenda a gravidade desse crime”, afirma ela, informando que o Ceplir presta atendimento jurídico, psicológico e assistência social às vítimas.

O Governo do Estado do Rio de Janeiro informa, em seu site, que denúncias de intolerância religiosa podem ser feitas à Secretaria de Direitos Humanos pelo telefone (21) 2334 5540.

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