11/04/2017 - 11:53

COMPARTILHE

Mentiras lucrativas

11/04/2017 - 11:53

Mentiras lucrativas

Sites de notícias falsas rendem dinheiro a seus criadores, e ausência de legislação específica facilita a impunidade
 
VITOR FRAGA

Uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade, diz a conhecida frase atribuída a Joseph Goebbels, ministro da Propaganda da Alemanha nazista. Em tempos de prevalência da comunicação virtual, uma mentira compartilhada mil vezes nas redes sociais nem precisa virar verdade para causar estragos, basta ter muitos  likes  – e, de preferência, gerar lucro. Quanto mais uma página é acessada, independentemente da veracidade do seu conteúdo, mais renderá dinheiro com publicidade.

A questão fica ainda mais polêmica se pensarmos que, segundo estudos recentes, a maioria das pessoas hoje busca notícias via redes sociais. Se uma parte cada vez maior dessas informações que circulam é falsa, isso gera diversas complicações, tanto do ponto de vista ético quanto sob a ótica legal. No entanto, a ausência de uma legislação que regule de forma mais específica a produção e a divulgação de notícias – em 2009, o Supremo Tribunal Federal (STF) declarou que a Lei de Imprensa (5.250/67) é incompatível com a Constituição Federal – foi um dos principais problemas apontados por fontes ouvidas pela TRIBUNA.

O universo das fake news
Nos últimos anos, cresceu o número de pessoas que tem acesso à informação através das redes sociais. Uma análise do Instituto Reuters para o Estudo do Jornalismo mostrou que 72% dos brasileiros de grandes cidades usam redes sociais como fonte de notícias (em 2013, eram 47%). Considerando que qualquer usuário é um emissor de conteúdo, quem se informa por esses meios está mais vulnerável a receber notícias falsas (também chamadas de hoax ou fake news).

A empresa Ipsos, de pesquisa e inteligência de mercado, divulgou em dezembro de 2016 o resultado de um levantamento feito nos Estados Unidos que mostrou que, em 75% das vezes, os norte-americanos acreditam em títulos falsos. A manchete “Papa Francisco choca o mundo e apoia Donald Trump para presidente”, que era inventada, teve quase um milhão de compartilhamentos, por exemplo.

No Brasil, nem mesmo autoridades públicas escapam das armadilhas da onda de boatos. Em janeiro, o ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Og Fernandes publicou em sua conta no Twitter um trecho de uma suposta entrevista em que Marcola, apontado como líder da organização criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC), dizia: “Eu li três mil livros, eu leio Dante, mas os meus soldados todos são estranhas anomalias do desenvolvimento torto deste país”. A “entrevista”, na verdade, era uma peça de ficção, escrita pelo colunista Arnaldo Jabor e publicada por O Globo em 2006. A resposta de Fernandes no próprio Twitter, após ter sido avisado do erro, foi irônica, mas também emblemática: “Sobre a entrevista do Marcola ser falsa, eu a recebi e não pesquisei, mas em sendo assim, as intenções foram ‘psicografadas’ pelo Jabor”.

Ex-presidente da comissão de ética do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Município do Rio de Janeiro e professora aposentada do curso de Jornalismo da UFF, Sylvia Moretzsohn diferencia sites declaradamente humorísticos dos que integram uma “usina de notícias falsas”, tentando confundir sua imagem com a de jornais sérios. “Evidentemente, ocorrem violações éticas, não há dúvida. A não ser que seja um site tipo O Sensacionalista, que é explicitamente humorístico, mas ainda assim sempre confunde um pouco. Porém, o que mais leva à confusão é a maneira como lidamos com o ambiente da internet e sua urgência, que estimula o compartilhamento ou comentário sem reflexão. O contexto, tanto por parte de quem produz quanto de quem lê, favorece esse mau entendimento. Alguns têm o propósito de fazer piadas, mas existem dezenas de sites que são, de fato, disseminadores de notícias falsas”, afirma.

“O problema não é só tecnológico, mas também social, psicológico, político e ético”, reforça Sivaldo Pereira, professor da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília e consultor na área de democracia digital e governo eletrônico. A questão é tecnológica porque “a estrutura da internet possibilita a difusão de informação sem filtros tradicionais”; é social e psicológica pois “o ato de compartilhar é uma forma contemporânea de construirmos nossas identidades perante os outros”; é também política na medida em que “quando o indivíduo online discorda ou concorda com alguma informação, o ato de  compartilhar significa adotar um posicionamento ideológico público”; e é ética porque “as pessoas ainda não atentaram para o fato que compartilhar é construir um sentido de realidade que pode ser falso”, e também ser responsável “pela informação difundida e seus efeitos”. 

Assim como Moretzsohn, ele acredita que a internet em si não é o problema. “As pessoas se colocam hoje em uma posição passiva quanto a esta responsabilidade no ato de compartilhar. Então, quando há uma informação que responde aos anseios e visão de mundo de um grupo de pessoas, estas compartilham por impulsão e por aderência, e na prática ignoram a responsabilidade de confirmar sua veracidade. O problema não são apenas as redes sociais online, mas a ausência de uma visão ética sobre como usá-las, aliada ao desejo de moldar o mundo aos próprios desejos”, completa Pereira.

A profusão das notícias falsas chega a criar situações surreais. Por exemplo, desde o final de 2016 circula um texto sobre um estudo da Universidade de São Paulo (USP) que teria apontado os dez sites brasileiros que mais publicam notícias falsas. Integrantes do Monitor do debate político no meio digital, projeto ligado ao Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas de Acesso à Informação da USP, vieram a público para desmentir a existência da pesquisa. “Nada mais viral do que uma notícia falsa sobre um estudo sobre notícias falsas”, escreveu um dos coordenadores do projeto, Pablo Ortellado, em seu perfil no Facebook.

Por outro lado, têm surgido diversas reações a esse incremento das fake news. Em março deste ano, o governo alemão anunciou um anteprojeto de lei que define multas para redes sociais que não removam noticiário falso ou postagens contendo retórica do ódio. O receio é que as notícias falsas exerçam nas eleições germânicas influência similar à que houve nos EUA. A Bitkom, associação alemã de empresas de comércio digital, emitiu um comunicado dizendo que a proposta “é absolutamente impossível de implementar em termos operacionais” e criaria “um mecanismo permanente de censura”. Segundo declaração do ministro da Justiça alemão, Heiko Maas, o anteprojeto teria como objetivo combater discursos de ódio e também as falsas comunicações, especialmente as caluniosas ou difamatórias. Também no mês passado, especialistas em liberdade de expressão ligados à Organização das Nações Unidas (ONU) declararam que as fake news e a desinformação representam uma  preocupação mundial. A Organização dos Estados Americanos (OEA), a Organização para Cooperação e Segurança na Europa e a Comissão Africana sobre Direitos Humanos e dos Povos também assinaram o comunicado. Tanto o Google quanto o Facebook anunciaram que vão adotar medidas para cortar a receita de publicidade de sites com esse conteudo.
 
A verdade é o lucro
Segundo informações publicadas na edição de março da revista Superinteressante, uma história  falsa que seja divulgada em escala mundial chega a gerar lucro de US$ 40 mil em publicidade. No Brasil, o principal site desse gênero é a Folha Política, do mineiro Alberto (Beto) Silva. Em reportagem de Fabio Victor, publicada pela Folha de S.Paulo em fevereiro de 2017, Silva – dono também do Pensa Brasil e outras páginas do gênero – se negou a revelar valores, mas uma consulta a profissionais de área de publicidade revelou que os anúncios de seus sites chegam a gerar de R$ 100 mil a R$ 150 mil por mês para o Google, que repassa até 50% desse valor para o dono da página.

Nos Estados Unidos, um divulgador de notícias falsas declarou ao The Washington Post que arrecada US$ 10 mil por mês. Por exemplo, o The National Report, criado por Allen Montgomery (nome fictício) e que se define como “a fonte número um de notícias independentes dos EUA”, ficou conhecido em 2014 por divulgar a informação falsa de que uma cidade do Texas (EUA) havia sido posta em quarentena por causa de um surto do vírus ebola. Em entrevista à rede BBC, Montgomery explicou que é preciso ter “um site fake que pareça legítimo”, o que aumenta a chance de as pessoas compartilharem o conteúdo. O objetivo principal, ele deixa claro, é o retorno financeiro. “Algumas de nossas histórias tiveram receita publicitária de US$ 10 mil”, confirmou. Afetado pelas mudanças feitas pelo Facebook para dificultar o compartilhamento de notícias falsas, ele relativizou o obstáculo, dizendo que “se há dinheiro para ser ganho, você só precisar ser mais criativo”.

Em relato publicado pelo The New York Times e reproduzido pela Folha de S.Paulo em novembro de 2016, o estudante de Ciências da Computação da Geórgia Beqa Latsabidze, que possui uma rede desses sites, declarou que durante as eleições dos EUA até teria tentado “vender” a candidata democrata Hillary Clinton, divulgando artigos favoráveis a ela. “Não sei por que, mas não funcionou”, disse o estudante, que em seguida passou a disponibilizar textos positivos em relação a Donald Trump, misturando fatos reais com falsos. Latsabidze admitiu que seu objetivo era ganhar dinheiro com anúncios no Google, através de cliques em links que estavam no Facebook. “Meu público gosta de Trump”, resumiu. Em setembro do ano passado, Alexander Portelli, do site pró-Donald Trump  prntly.com, disse ao jornal El País que ganhava bastante dinheiro com seu blog, sem revelar valores. Sobre as consequências das mentiras divulgadas, ele disse que “não são mais que notícias distorcidas”,
e que isso é o mesmo que os “meios [de comunicação] fazem”.
 
Regulação x censura
Apesar de criticar os produtores de fake news, Sylvia Moretzsohn corrobora a tese de que os jornais ditos oficiais eventualmente também publicam notícias sem veracidade. “Isso ocorre também no jornalismo regular. Os sites de notícias falsas exacerbam e magnificam essa situação que os jornais já criam, exageram o que já existe. Muitas vezes os jornais são, eles próprios, sites de notícias falsas”, dispara.

A despeito da existência de leis que tipificam o crime de calúnia, por exemplo, ou mesmo da garantia do direito de resposta (Art. 5º, V, da Constituição Federal e Lei 13.188/15), existe uma lacuna no que diz respeito à fiscalização e eventual punição nos casos em que a divulgação da notícia falsa gera prejuízos para uma determinada pessoa ou grupo social.

“Do ponto de vista legal, não teria dúvidas de que há problemas, sobretudo quando se acusa pessoas. Quando se fala algo que não é verdadeiro, mas não tem consequências diretas para ninguém, fica o problema ético em relação a não dar a informação correta”, argumenta Moretzsohn. Segundo ela, o Código de Ética da profissão apresenta a possibilidade de punições, mas não é respeitado; e as punições, bastante incomuns, geralmente não são equiparáveis aos danos. “Isso não acontece, nem para os jornais. É muito raro a imprensa pedir desculpas por algum erro, ou ser punida. Quantas pessoas ou instituições entram na Justiça para obter algum ressarcimento? Nossa legislação é muito frágil em relação a isso. A própria lei que regulamenta o direito de resposta foi muito contestada, porque temos uma tradição horrorosa, qualquer lei implica censura”, critica.
 
Na opinião da ex-presidente da comissão de ética, achar que criar uma lei que regulamente a imprensa significa instaurar censura “é um disparate”. “Qualquer país democrático tem leis que estabelecem a forma pela qual a imprensa tem que trabalhar, e a internet está dentro disso”, resume. Ela reitera que o uso que se faz das redes sociais hoje cria um ambiente favorável à divulgação de boatos e notícias falsas, algumas vezes de maneira irresponsável. “Cito sempre o exemplo do caso da mulher que foi assassinada no Guarujá. Uma página no Facebook, Guarujá Alerta, que divulgou uma história mal apurada dizendo que na vizinhança talvez houvesse uma mulher que praticava abuso de crianças e cultos satânicos. A mulher foi linchada. E a notícia, que era falsa, nada tinha a ver com ela”, lembra. Mesmo após a morte da vítima, Fabiane Maria de Jesus, o administrador da página sequer chegou a ser indiciado.

“Quando se trata de uma questão individual, os responsáveis por estes sites estão submetidos a sanções civis. Não há nenhuma sanção penal, tendo em vista que não há legislação que criminalize a conduta de quem atinge uma pessoa divulgando determinado fato. A vítima pode entrar com uma ação civil pedindo uma indenização às pessoas que compartilharam a mentira a respeito dela, porque elas potencializaram o dano”, explica o membro da Comissão de Direito Constitucional (CDCon) da OAB/RJ, Renan Figueiredo. 

Ele pondera que existe uma diferença no caso de discursos de ódio proferidos contra grupos sociais. “É importante lembrar que mesmo com a liberdade de expressão, garantida na internet pelo Marco Civil, não estamos livres para falar qualquer coisa. O hate speach contra algum grupo social é um desses limites. Nesse caso, ainda poderia haver a busca de uma sanção civil contra quem veiculou e compartilhou esse tipo de informação. Mas, por conta da legitimidade, seria preciso levar a questão ao Ministério Público, que agiria por toda a coletividade, já que a procura individual nesse caso causaria um verdadeiro caos”, acrescenta. 

Figueiredo acredita que a criminalização desse tipo de prática de fato não seria o melhor caminho, inclusive porque “a sociedade não anseia” por isso. “Acredito que a indenização civil já traria um bom resultado”, defende, acrescentando: “Sites de humor, com notícias irônicas, têm outro objetivo. São totalmente diferentes daqueles que querem passar verossimilhança na informação, e que objetivam lucro. Estes sim, poderiam ser enquadrados como jornais”. Para o constitucionalista, a despeito da existência de interpretações pessoais, a divulgação de notícias deve estar assentada na verdade, e que caso alguém se sinta ofendido por uma notícias falsa é preciso que a pessoa atingida busque a reparação na Justiça. “A internet tem um alcance muito grande. Sua utilização de má fé é um problema cada vez mais difícil de solucionar”, pondera.

De acordo com o Marco Civil da internet, sancionado em 2014, as empresas que abrigam conteúdo estão isentas de responsabilidade. Porém, caso seja determinado pela Justiça, devem retirar a informação do ar, ou podem ser consideradas coniventes.

A questão, ao que parece, não seria a lei, mas sim a ausência dela. “Deveríamos ter uma Lei de Imprensa, mas acabamos com ela. Uma das coisas que a lei poderia fazer seria obrigar a quem publica uma informação falsa, que prejudica ou calunia alguém, dizer de onde aquilo surgiu. Não estou dizendo que o sigilo da fonte tem que ser abolido, pelo contrário, ele é fundamental. Mas sem haver uma lei, você não pode obrigar a pessoa a responder pelo que fez. Confunde-se liberdade de expressão com liberdade de imprensa, e aí qualquer regulação vira censura”, reforça Moretzsohn.

Abrir WhatsApp