03/08/2018 - 21:01

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Intolerância abominável

03/08/2018 - 21:01

Intolerância abominável

Intolerância abominável


Carlos Roberto Siqueira Castro*

As declarações de cunho racista e homofóbico do deputado Jair Bolsonaro em recente programa de televisão podem e devem sujeitá-lo a processo de cassação de mandato por quebra de decoro parlamentar, isto por oportuna iniciativa da OAB/RJ. Afirmou o parlamentar que o enlace conjugal entre um homem branco e uma mulher afrobrasileira constitui “promiscuidade” e que manifestação de movimento gay constitui prática de maus costumes. Numa penada, ofende direta e moralmente a comunidade negra e gay do país. Nada mais repugnante e contrário aos valores do pluralismo e da igualdade que garantem e protegem o admirável sincretismo étnico e cultural do Brasil. Essa apologia do preconceito e do ódio à diversidade já deixou milhões de vítimas no curso da civilização. Enfim, é a velha história: tudo o que não é o mesmo é o outro, o inimigo, segundo a explicação de Harris Memel-Fote: “O outro é o estrangeiro, de nacionalidade, de raça, de etnia, de religião, ou de língua. Para a Ku Klux Klan branca, anglo-saxônica e protestante, o estrangeiro é o preto, depois o imigrante branco recente (latino, sérvio, escandinavo), finalmente o católico e o judeu. Esse preto tornase um negro, na África do Sul. Para os nazistas, são estrangeiros os não-arianos e os judeus. Na África dos Grandes Lagos, no entender dos hutus, os estrangeiros são os tutsis” (no artigo O outro e o mesmo).

Trata-se da visão totalitária dos padrões hegemônicos e excludentes das diferenças, que institucionaliza os regimes de apartheid e a violência oficial. Para a lógica da intolerância não há limite para o massacre a ser infligido aos contrários em sua sanha de faxina étnica, ideológica e cultural. Será o fanatismo do momento que decidirá o maior ou menor mal a ser eliminado, como advertiu Diderot, no verbete Intolerância, em sua famosa Enciclopédia. Por isso, as ousadias da liberdade sempre enfrentaram o ímpeto totalitário, calcado na perseguição e no terror sem fim. Como elucida Hannah Arendt, “a luta pelo domínio total de toda a população da Terra, a eliminação de toda realidade rival não totalitária, eis aí a tônica dos regimes totalitários” (em Origens do totalitarismo). Nesse contexto, as diferenças e as dissidências foram alvo da deturpação estereotipada das marginalidades, pelo que amargaram o tranco da história e do absolutismo das verdades pseudocientíficas transformadas em dogmas da fé ou da política de Estado. A intolerância institucionalizada explica fogueiras da inquisição, patíbulos, decapitações, campos de concentração, fornos crematórios, execuções sumárias, cárcere político, internações psiquiátricas e suplícios de todo tipo. Que o digam Giordano Bruno, Tommaso Campanella e Galileu Galilei, dentre a legião de rebeldes e insurretos de todos os tempos. No campo da sexualidade e das relações homoafetivas, os padrões vitorianos impuseram a doutrina da interdição, do silêncio opressor e da hipocrisia. Isto explica o império do medo, da clandestinidade e da inculpação arbitrária gerado pela intimidação secular no seio da família e da sociedade reacionárias. Como bem adverte Michel Foucault, “dizer que o sexo não é reprimido, ou melhor, dizer que entre o sexo e o poder a relação não é de repressão, corre o risco de ser apenas um paradoxo estéril” (em História da sexualidade). E não se pode esquecer que, no Brasil, são cometidos 200 crimes homofóbicos por ano, um assassinato a cada dois dias, conforme editorial de O Globo (em 10/01/11). Em face dessa violação diuturna de direitos humanos sofrida pela população LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais), urge apoiar a tramitação do Projeto de Lei da Câmara dos Deputados 122/ 06, que visa a criminalizar as práticas de preconceito e discriminação relacionadas à homofobia. Esses crimes não diferem, em essência, da queima de índios ocorrida há alguns anos em Brasília por jovens delinquentes oriundos de uma elite sem luz e com deformada soberba social.

Em boa hora, a Declaração de princípios sobre a tolerância, aprovada pela Conferência Geral da Unesco em 1995, prescreve, no art. 1º: “A tolerância é o sustentáculo dos direitos humanos, do pluralismo, da democracia e do Estado de Direito. Implica a rejeição do dogmatismo e do absolutismo e fortalece as normas enunciadas nos instrumentos internacionais relativos aos direitos humanos”. As declarações de Jair Bolsonaro atentam contra os valores do humanismo contemporâneo multicultural e violam a Constituição de 1988, que o deputado jurou cumprir ao assumir o mandato eletivo. O que está em causa, aqui, são os valores constitucionais do pluralismo e das opções individuais no plano da sexualidade, da igualdade sem distinção de qualquer natureza, da condenação às práticas de racismo e da dignidade da pessoa humana. Impõe-se, por isso, o repúdio dos democratas e de quantos acreditam que a intolerância só pode justificar-se em face da própria intolerância.

* Conselheiro Federal da OAB pelo Rio de Janeiro e professor titular de Direito Constitucional da Uerj


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