03/08/2018 - 21:04

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Código Penal, avanços e polêmicas na primeira reforma desde 1940

03/08/2018 - 21:04

Código Penal, avanços e polêmicas na primeira reforma desde 1940

Setenta e dois anos após sua edição, o Código Penal vem sendo revisto por comissões de juristas, parlamentares e representantes da sociedade civil na Câmara dos Deputados e no Senado Federal. O propósito é modernizá-lo e atualizá-lo, corrigindo distorções introduzidas pelo Legislativo ao longo das décadas. Discute-se também a polêmica inclusão de novos tipos penais, como por exemplo os crimes de terrorismo e os praticados por milícias. As propostas serão votadas nas duas casas e possivelmente se tornarão um projeto substitutivo de lei a ser apreciado pelo Congresso Nacional.
 
PATRíCIA NOLASCO
 
Presidida pelo ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Gilson Dipp, a comissão de juristas do Senado acolheu uma das propostas da Comissão de Bioética e Biodireito da OAB/RJ, apresentada durante audiência pública. Foi incluída, no Capítulo I, de crimes contra a vida, na forma qualificada de homicídio (artigo 121), a expressão “identidade de gênero”, para abrigar também, com base na jurisprudência nacional e internacional, os transgêneros, travestis e intersexos.

Assim, de acordo com a redação aceita, será considerado homicídio qualificado (pena de 12 a 30 anos) aquele cometido “mediante paga, mando, promessa de recompensa; por preconceito de raça, cor, etnia, orientação sexual e identidade de gênero, deficiência, condição de vulnerabilidade social, religião, procedência regional ou nacional, ou por outro motivo torpe; ou em contexto de violência doméstica ou familiar, em situação de especial reprobabilidade ou perversidade do agente”.

A presidente da Comissão de Bioética da Ordem, Maíra Fernandes, avalia que o grupo do Senado avançou consideravelmente no capítulo dos crimes contra a vida. A primeira inovação saudada é a permissão do aborto em caso de risco à saúde da gestante. “Nossa legislação é tão antiquada que só autoriza o aborto em caso de risco à vida da gestante”. A proposta de reforma atualiza essa previsão, “em respeito ao direito à saúde da gestante, previsto nos artigos 6º e 196 a 200 da Constituição”. Obrigar uma mulher a manter a gravidez mesmo sabendo que, com a gestação, poderá desenvolver um determinado tipo de câncer, exemplifica Maíra, “seria uma grave ofensa ao direito à saúde, ainda que eventualmente ela possa sobreviver”.
 
Maíra também está de acordo com as propostas de se permitir o aborto em caso de gravidez decorrente do emprego não consentido de técnica de reprodução assistida – possibilidade inexistente em 1940 – e, ainda, em caso de comprovada anencefalia (hipótese julgada ou quando o feto padecer de graves e incuráveis anomalias que inviabilizem a vida independente). E louva a iniciativa de prever a exclusão do crime de aborto quando realizado “por vontade da gestante até a 12ª semana de gestação, quando o médico ou psicólogo constatar que a mulher não apresenta condições de arcar com a maternidade”.
Para Maíra, embora não descriminalize de todo o aborto, a proposta de reforma amplia significativamente o rol de permissivos legais à interrupção da gravidez e constituem “um enorme avanço no que se refere à atualização do Código, respeitando os direitos fundamentais da gestante protegidos por nossa Constituição Federal e pelos tratados internacionais de direitos humanos”.
 
O penalista Renato Tonini, conselheiro da Seccional, analisa outras propostas em estudo, algumas delas polêmicas. A definição do crime de terrorismo, por exemplo, “tem base nos compromissos internacionais assumidos pelo governo brasileiro e no açodamento do legislador ao introduzir o terrorismo em diversas passagens do ordenamento jurídico – Constituição da República, Lei de Crimes Hediondos, Lei de Lavagem de Capitais etc. – sem antes se preocupar em tipificar criminalmente o delito”. Tonini diz que a tarefa de tipificá-lo “é desafiadora, eis que se trata de uma ameaça à democracia, aos direitos humanos e ao desenvolvimento da sociedade”.
 
Na realidade, pondera ele, “muitas ações com características de terrorismo já estão previstas como criminosas pela legislação vigente, podendo ser exemplificado o homicídio com emprego de explosivo (art. 121, §2º inciso III), aplicando-se o concurso de delitos se houver mais de uma vítima, dentre várias outras”.
 
Outra ideia em debate, a criminalização do jogo do bicho, é repudiada pelo advogado. “A manutenção do jogo do bicho como infração penal, seja como contravenção ou como crime, é a expressão máxima da hipocrisia. No Brasil, existem a loteria, a loto, a corrida de cavalos, a mega-sena, a raspadinha e outros mais, todos jogos de azar. Por que o jogo do bicho, a roleta, os caça-níqueis são proibidos? Apenas porque não são controlados pelo Poder Público? Qual a razão de não serem legalizados, permitindo o rígido controle estatal da atividade e o recolhimento de impostos?”, questiona.
 
Tonini argumenta que o problema do jogo do bicho não é o jogo em si, “mas sim o que está ao seu derredor, ou seja, a violência para assegurar o domínio territorial, a corrupção de funcionários públicos para que a atividade seja tolerada etc.” Na opinião dele, a legalização da atividade seria muito mais eficaz para inibir a violência e a corrupção do que  simplesmente tornar mais grave a repressão penal, “pois não é pelo fato de ser crime ou de ser contravenção que se vai inibir toda a gama de problemas decorrentes da proibição do jogo”. Aliás, agravar a conduta “só contribuirá para acirrar o problema”, avalia.

A tipificação de crime praticado pelas milícias também não é apoiada pelo conselheiro. “Não vejo sentido nisto, quando já existe o crime de quadrilha armada. Alguns dirão que a pena é muito pequena, dois a seis anos, se a quadrilha é armada. Então, a solução seria agravar essa pena e não criar um novo tipo penal de definição tão difícil quanto esse. Qual seria a descrição do tipo? Exercer domínio territorial mediante o uso de violência ou de grave ameaça?”

Outra proposta, dobrar o tempo mínimo de prisão requerido para a progressão de regime, tem a desaprovação do criminalista. “Sem dúvida alguma, se aprovado esse absurdo, o sistema penitenciário explodirá. Já temos mais de meio milhão de pessoas presas. Onde vamos chegar se isso ocorrer? Essa medida não resolverá nada e só irá agravar o imenso problema do excesso da população carcerária”.
 
A presidente da Comissão de Defesa das Prerrogativas, conselheira Fernanda Tórtima, integra a comissão de reforma na Câmara dos Deputados, por indicação do Conselho Federal da OAB. Ela explica que seu grupo é bastante voltado para a questão da proporcionalidade das penas, tomando-se por base a prevista para o crime de homicídio. Fernanda dá um exemplo: “Foi sensivelmente reduzida a pena para o crime de falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais, que tem, por enquanto, pena de dez a 15 anos”. A pena do tipo básico foi reduzida para três a dez anos, exigindo-se ainda a identificação do perigo de dano para a saúde humana.
 
Para ela, outra questão relevante seria a completa alteração dos crimes ligados à prostituição. “Passaríamos a exigir que a conduta de favorecimento à prostituição seja praticada com violência, coação ou fraude contra a prostituta, ou seja, o bem jurídico tutelado seria a liberdade sexual da prostituta e não mais a moral e os bons costumes”. Fernanda integra especificamente um grupo de estudo de crimes econômicos e propôs a seguinte mudança: “na Lei  nº 7492/86, o crime de gestão temerária passaria a contar com um rol taxativo de condutas que configurariam o conceito de temerária. Se aprovado, creio que será um grande avanço, pois, atualmente, o tipo penal (gerir temerariamente instituição financeira) é bastante impreciso e viola o princípio da taxatividade, corolário da legalidade”, afirma.
 
O secretário-geral da OAB/Paraná, Juliano Breda, também participa da comissão de reforma da Câmara, e foi dele a proposta aceita sobre lavagem de dinheiro, estabelecendo pena proporcional ao crime antecedente. “A lavagem de dinheiro do financiamento do tráfico de armas não pode ser punida da mesma maneira que a lavagem do descaminho”, argumenta. Ele conta que também foram propostas a redução da pena no crime de furto simples, atualmente de um a quatro anos, para seis meses a dois anos, e a criação de um critério de distinção entre usuário e traficante em face da quantidade de droga apreendida.
 
Breda opina ainda sobre questões polêmicas debatidas no Senado. Rechaça a ideia de se penalizar o enriquecimento ilícito com prisão, sob a justificativa de que a única legislação disponível atualmente é a Lei da Improbidade, que é cível. “Tipificar o enriquecimento ilícito é confessar a falência dos órgãos de investigação, é prova da incapacidade das agências de persecução penal em descobrir a autoria e materialidade dos crimes contra a administração pública. Trata-se de uma espécie de lavagem de dinheiro sem crime antecedente, com evidente inversão do ônus da prova”, afirma.

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