13/03/2017 - 14:32

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Internet não é terra sem lei

13/03/2017 - 14:32

Internet não é terra sem lei

STJ pacifica entendimento sobre músicas na rede e autoriza cobrança por direitos autorais ao Ecad
 
RENATA LOBACK
Sai mais barato do que comprar diversos álbuns. Há um grande catálogo à disposição, que vai desde a chance de conhecer o novo até a possibilidade de reviver clássicos. É mais prático, já que dá para ouvir em casa ou na rua, por um computador ou pelo celular.

São inúmeros os avanços listados pelos consumidores de música pela tecnologia do streaming – em que não é necessário baixar arquivos. Mercado que cresce a cada dia e abre um leque de dúvidas jurídicas, a distribuição de música pela internet teve um de seus pontos pacificado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ): em decisão a favor do Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad), a corte autorizou a cobrança de direitos autorais nas transmissões pelas modalidades de webcasting e simulcasting.

Por oito votos a um, a 2ª Seção do STJ acatou um recurso do Ecad contra a Oi FM, rádio ligada à operadora de telecomunicações, que também mantém reprodução pela internet. A ação, que gera precedentes para pleitos similares, provocou uma série de debates de especialistas acerca da definição do que é execução pública, preceito que determina a cobrança ou não dos direitos autorais. Demanda que, mesmo pacificada, ainda gera controvérsias. 

Para entrar na questão é preciso definir o que são essas novas tecnologias. Quando há streaming interativo, ou seja, a possibilidade de escolha da programação pelo usuário, esta prática é definida como webcasting. Há simulcasting no momento de duplicação para o ambiente digital de uma transmissão que é feita tradicionalmente fora da internet, exemplo das rádios que transmitem de modo simultâneo sua programação normal em portais digitais. 

Presidente da Comissão de Direitos Autorais, Direitos Imateriais e Entretenimento (Cdadie) da OAB/RJ, Sydney Sanches diz ter sido feliz o entendimento que o STJ deu à aplicação da Lei de Direitos Autorais (Lei 9.610/1998). “A compreensão veio ao encontro da melhor interpretação e dos compromissos internacionais que o Brasil tem com relação ao cumprimento da legislação de propriedade intelectual. Nessa área há uma característica de acompanhar os tratados internacionais firmados pelo país. É um modo de assegurar proteção do repertório musical brasileiro não só aqui, mas em outros territórios também”, salienta.

Para o cocoordenador da Comissão de Estudos de Software, Informática e Internet da Associação Brasileira de Propriedade Intelectual (ABPI), Fábio Pereira, apesar do consenso firmado pela corte, há ainda pontos que não se encaixam na aplicação da Lei de Direitos Autorais. “A lei fala em local de frequência coletiva e os serviços de streaming estão direcionados ao consumo on demand, em que um usuário interage com o catálogo, de acordo com escolhas pessoais”, ressalta.

Segundo Pereira, uma transmissão individual de conteúdo foge do caráter de execução pública simplesmente porque não é uma execução feita em um ambiente coletivo, como a lei de 1998 buscou definir. “Para aceitar este tipo de interpretação, precisaríamos de uma alteração na Lei de Direitos Autorais, redefinindo o que seria um local de frequência coletiva”, defende. 

Mesmo não sendo um posicionamento fechado da Cdadie – que ainda não havia chegado a um consenso interno no momento em que o STJ pacificou a questão –, Sanches acredita que o determinante para o conceito de execução pública é a forma como o conteúdo é ofertado, não tendo a mínima importância como ele será consumido. “Não podemos ter a definição antiga do que é um público. Não cabe mais classificar apenas como um conjunto de pessoas reunidas num mesmo local. Público é a pessoa que, mesmo sozinha em casa, acessa a obra quando quiser”, pondera.

Superintendente do Ecad, Glória Braga reforça este argumento: “O que interessa é a disponibilização e possibilidade de acesso para inúmeras pessoas. Não importa quem usa ou quantas pessoas usam. Se há distribuição ao público, há execução coletiva”.

Outro ponto de controvérsia é a necessidade ou não de uma nova licença e cobrança de direitos autorais nas transmissões por simulcasting.  De acordo com quem critica a medida, por ser réplica de um conteúdo de rádio, em que já houve autorização e pagamento ao Ecad, uma nova autorização caracterizaria dupla cobrança, o que para Fábio Pereira é um absurdo.

“Quando se tem uma reprodução pela internet por esta tecnologia não há qualquer alteração de conteúdo do que está sendo transmitido ao mesmo tempo pela rádio. Permitir uma nova licença é autorizar uma dupla cobrança”, aponta o representante da ABPI.

Segundo Sanches, a radiodifusão tem limites de emissão, pela média da qual é calculado o preço do uso. Quando se transfere um conteúdo para a internet, o acesso a ele acaba ficando ilimitado: “Além da questão de aumento de público, os serviços de simulcasting também costumam oferecer possibilidade de interatividade (webcasting). É possível ver e ouvir a programação em diferentes formatos e horários, por exemplo. Segundo o meu entendimento, que é o mesmo dado pela 2ª Seção do STJ, esses fatores demandam uma licença própria”.
 
Em tempos de um novo Código de Processo Civil, no qual a jurisprudência ganha peso maior, há consenso entre os especialistas de que a decisão do STJ servirá de precedente para pautas semelhantes. De olho na forma como o mercado pode reagir a isso, a ABPI acredita que haverá reajustes no preço final repassado aos consumidores. “As empresas já fazem repasse a editoras e gravadoras, agora elas também terão que calcular a parte do Ecad. É uma conta lógica imaginar que isto terá impacto no preço final, por mais que eles neguem”, afirma Pereira.

O Ecad esclarece que os grandes players do mercado, como Spotify, Apple Music, Vevo, Beats 1, Groove e Superplayer, já realizavam o pagamento dos direitos autorais antes mesmo da decisão do STJ. “Se houver reajuste nos valores cobrados pelas plataformas, poderá ocorrer por diversos motivos, inclusive econômicos, mas não devido ao pagamento feito ao Ecad, uma vez que o percentual destinado pelas plataformas aos direitos autorais é de 12%, sendo apenas 3% ao escritório de arrecadação e, reiteramos, este pagamento já vinha sendo feito antes da referida decisão. Vale acrescentar que, atualmente, mais de 1.200 rádios que têm transmissão pela internet pagam direitos autorais pela modalidade de simulcasting”, pontua Glória Braga. 

Vitória para os músicos?

Teorias jurídicas e definições do que é execução pública não interessam aos artistas, músicos e produtores musicais, que no fundo serão os principais beneficiários da nova decisão do STJ. Para eles, basta saber que foi autorizada a cobrança do Ecad também nas músicas transmitidas pela internet. “O que é ótimo”, resume o diretor fiscal do Sindicato dos Músicos do Estado do Rio de Janeiro (SindMusi), Tim Rescala. “Mas ainda não resolve o problema, uma vez que há inúmeras críticas quanto ao repasse feito aos artistas”, acrescenta ele.

Segundo Rescala, até então os intérpretes foram simplesmente ignorados, como se uma música não fosse tocada por alguém. Considera-se o autor, o produtor e o intérprete principal (o cantor de uma canção, por exemplo), mas não se considera o músico, que entra no repasse do direito conexo. “O que precisa ser consertado agora é o percentual pago aos autores e intérpretes. Atualmente, as editoras recebem o que os players pagam e repassam apenas 25% ao Ecad, ficando com 75%. Estabeleceram esses percentuais de forma absolutamente unilateral. Os músicos recebem somente sobre esse percentual de 25%. É mais um absurdo que precisa mudar. O dinheiro existe e não é pouco. O problema é que editoras e gravadoras, que no passado sempre repassaram o mínimo possível aos músicos, continuam fazendo isso, agora no ambiente digital”, explica.

Advogado do SindMusi, Edson Júnior diz que o repasse para os músicos nunca foi bem esclarecido. “Existe um buraco negro entre o Ecad e as associações. Músico no Brasil não pode depender de direito autoral senão morre de fome”, observa.

Em nota, o Ecad afirma que atua com transparência e repassa, atualmente, 82,5% dos valores arrecadados para os artistas filiados à gestão coletiva. “A identificação de todos os valores distribuídos e as informações sobre a execução das obras são transmitidas aos titulares de direitos autorais através de demonstrativos, produzidos pelo Ecad e enviados pelas associações, pelos quais os músicos podem e devem esclarecer todas as suas dúvidas”, destaca a entidade.

Segundo Glória Braga, o valor referente à transmissão de músicas pela internet ainda é baixo em relação ao montante dos demais segmentos de execução pública – hoje representa menos de 1% do total arrecadado pelo Ecad. Mas, devido à constante migração de conteúdo dos meios tradicionais para os digitais, há um vislumbre de crescimento para o mercado. “Com esta vitória da classe artística no STJ, é possível enxergar a garantia de uma maior valorização de quem cria, produz e vive da música”, defende a superintendente. 

De acordo com a ABPI, apesar de terem conhecimento das questões nebulosas que envolvem o repasse do Ecad aos músicos, o posicionamento tomado frente às questões de streaming pelo STJ não está relacionado a estas críticas. “A associação mantém uma postura técnica tomada pelos seus especialistas. Não sofremos qualquer influência nem de sindicatos nem de associações. Nossa análise é imparcial em relação a todas as nossas comissões de estudo”, define Fábio Pereira.
 
Caminho sem volta
 
Pacificar a compreensão é criar uma ótima oportunidade, acredita Sydney Sanches. “Mesmo com esse impasse, o mercado já estava crescendo. Acredito que agora ele irá só melhorar, oferecendo melhores rendimentos aos criadores e assegurando para os grupos de empreendedores maior segurança jurídica. A propriedade intelectual não é e nem nunca será um entrave à propagação de novas tecnologias”, salienta o presidente da Cdadie.

Também para a ABPI, não haverá diminuição no serviço, mesmo com o acréscimo do pagamento dos direitos autorais: “Está cada vez menor a compra de mídias físicas. O uso do mobile como ferramenta de distribuição e acesso a conteúdos é realmente polêmico no Brasil. Tanto na questão do comércio eletrônico quanto na questão de música para consumo. Mas o streaming é um avanço que veio para ficar”.

Para a superintendente do Ecad, quanto maior a visibilidade ao trabalho dos músicos, melhor para eles. E neste sentido as novas tecnologias só ajudam. “A postura foi no sentido de corrigir um erro desse novo mecanismo, que deixava de lado a cobrança de direitos autorais. No entanto, somos muito a favor das novas tecnologias. É importante que os músicos tenham cada vez mais recursos para continuarem criando. É o que fomenta o trabalho deles”, diz Glória.

De acordo com ela, o Ecad possui outras demandas na Justiça com essa mesma proposta, mas espera que com a pacificação da questão pelo STJ as pautas possam ser resolvidas de maneira extrajudicial.
Para aprofundar a questão, a Cdadie pretende organizar eventos sobre o reflexo desta decisão nos mercados de entretenimento e digital.

Mesmo se opondo à arrecadação de direitos autorais nesses casos, a ABPI deixa claro que não se opõe à correta remuneração dos músicos, editoras e gravadoras. “O serviço de streaming já paga direitos autorais às editoras, pelo uso da composição musical, e às gravadoras, pelo uso do fonograma. O Ecad só deveria receber se de fato houvesse uma execução pública e no nosso entendimento isso não existe. Nossa crítica é ao fato de presumirem que todo serviço de streaming é uma execução pública”, conclui Fábio Pereira.

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