13/03/2017 - 14:11

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Márcia Rocha – advogada: ‘Não somos coitadas, somos s eres humanos muito capazes’

13/03/2017 - 14:11

Márcia Rocha – advogada: ‘Não somos coitadas, somos s eres humanos muito capazes’

A carteira da OAB de Márcia Rocha é a primeira emitida no país com seu nome social, registro conquistado este ano pela advogada que assumiu a identidade como travesti e rejeita a posição “vitimista” de setores do movimento social. Em que pesem preconceito e violências decorrentes, ela acredita que o melhor é dar visibilidade aos casos de maior sucesso na luta por direitos. Como Marcos Cesar Fazzini da Rocha, seu nome civil inscrito na Ordem de São Paulo desde 1991, ou como Márcia, defende que marginalização se combate com educação, buscando conscientizar sobre o que é uma pessoa trans, capaz de “contribuir com a sociedade tão bem como qualquer outra”. Ela aponta o conservadorismo no Congresso como obstáculo ao avanço de projetos em benefício da população LGBT, em contraponto à sensibilização do Judiciário para suas causas.
 
PATRÍCIA NOLASCO

A senhora obteve do Conselho Federal, por unanimidade, o direito de ter seu nome social na carteira da Ordem. Qual o alcance e a importância desta conquista para o movimento LGBT no Brasil?

Márcia Rocha – O reconhecimento desse direito pela OAB, entidade extremamente séria e técnica, torna qualquer argumentação contrária bastante enfraquecida de embasamento teórico. Aliás, as argumentações contrárias ao uso de nome social costumam ser deveras vazias de lógica, e embasadas em mero preconceito. Acredito que a maior importância da conquista é o precedente aberto e o exemplo a outras categorias, principalmente quanto ao respeito à identidade subjetiva de todos.

Apesar da vitória pelo reconhecimento, subsiste na sociedade, e nas bancadas conservadoras do Congresso, resistência à garantia de direitos da população LGBT. O projeto de lei de identidade de gênero (PL 5002/2013), dos deputados Jean Wyllys (PSOL/RJ) e Érika Kokay (PT/DF), despertou enorme reação ao estabelecer a possibilidade de realizar, pelo SUS – sem necessidade de autorização judicial -–, procedimentos cirúrgicos ou tratamentos para a adequação, e de registrar em cartório prenome de acordo com o gênero autopercebido, inclusive por menores de 18 anos, mediante consentimento legal e vontade expressa. Qual a sua opinião sobre o projeto?

Márcia Rocha – Acho realmente muito bom, buscando facilitar a adequação de nome de modo semelhante ao existente na Argentina [Lei de Identidade de Gênero]. Quanto ao conservadorismo, ele realmente existe e é a razão pela qual esse projeto, assim como vários outros, não avança no Congresso. Entretanto, é inegável o avanço nos direitos LGBT nas últimas décadas, em especial na última, principalmente em razão da sensibilização do Judiciário no Brasil e em grande parte do mundo.

No caso dos travestis, a marginalização na sociedade é mais forte? O que precisa mudar?

Márcia Rocha – Sim, muito mais. Travestis não se enquadram perfeitamente nos padrões sociais atribuídos a homens, nem aos das mulheres. Assim, são um ícone de contestação de gênero, denunciando as violências decorrentes de valores atribuídos a gênero (principalmente ao feminino) e todas as regras sociais nele baseadas, muitas vezes injustas. Em razão disso, sofrem mais preconceito que as demais características humanas, muitas vezes de forma violenta. Para mudar isso é preciso educação, em seu sentido mais amplo, buscando a conscientização de toda a sociedade sobre o que é uma pessoa trans, um ser humano com características próprias como qualquer outro.

No exercício profissional, já sofreu discriminação ou constrangimento? Por que escolheu a advocacia e qual sua área de atuação?

Márcia Rocha – Sofri apenas um pequeno constrangimento, em razão da ignorância de uma funcionária pública. Mas nada grave. Em geral, tenho sido muito bem tratada e respeitada nos diversos órgãos públicos, principalmente em São Paulo. Acredito que isso se deve à Lei Estadual 10.948/01 [estabelece penalidades para discriminação em razão de orientação sexual].

Sou empresária e minha família sempre teve empresas ligadas ao ramo imobiliário, o que me levou ao Direito para auxiliar nos negócios. Minha área de atuação era Direito Imobiliário, em especial contratos. Hoje, cada vez mais, atuo na área dos direitos humanos.

É possível hoje, para uma advogada travesti, crossdresser ou transexual ser aceita em uma grande banca, num meio tido como conservador?

Márcia Rocha
– É possível, claro. Já existe uma vaga sendo aberta em um dos maiores escritórios de advocacia do país. Recentemente foi disponibilizada uma vaga em um escritório, para estagiário trans, e o retorno foi imenso, há muitas pessoas trans estudando Direito. Quanto a outras áreas conservadoras, como a academia, há uma transexual com mestrado e doutoranda em Pernambuco. Na magistratura e Ministério Público, ainda não existe nenhuma pessoa trans, que eu tenha conhecimento. Mas acredito ser uma questão de tempo, oportunidade, isonomia e justiça.

Como a senhora avalia pesquisa da Transgender Europe que aponta o Brasil como país que mais mata travestis e transexuais no mundo?

Márcia Rocha – Essa pesquisa é um pouco duvidosa. Eu olhei outros dados da mesma pesquisa, existem informações de que no Brasil não há cirurgia de redesignação, o que é falso. Além disso, nem nossos movimentos sociais organizados têm esses dados sobre violência, portanto duvido de que uma ONG da Espanha os obtivesse. Recentemente, uma associação de travestis e transexuais divulgou um número de pessoas trans mortas; eu pedi a relação de nomes e locais dos assassinatos e ninguém tinha. Recebo notícias desses homicídios e calculo cerca de 60 a 70 crimes de ódio por ano, o que já é absurdo a meu ver, mas duvido da quantidade divulgada, quatro a cinco vezes maior do que isso.

Além desses fatos, na Arábia Saudita, Paquistão e Afeganistão não há assassinatos de travestis e nem por isso é melhor lá do que aqui para nós. Morrem travestis no Brasil porque aqui podemos nos assumir e nos expor de alguma forma. Discordo dessa política “vitimista” de alguns setores do movimento social e acredito que devemos dar visibilidade aos casos de maior sucesso, para demonstrar que pessoas trans podem contribuir com a sociedade, tão bem como qualquer outra pessoa. Não somos coitadas, somos seres humanos muito capazes.
De qualquer forma, realmente há muito preconceito, discriminação, violência e muitas mortes de travestis e homossexuais no país e nossa luta é divulgar, apontar e combater. Perder uma amiga ou conhecida por assassinato ou mesmo suicídio, simplesmente por querer se expressar da forma como se sente, é algo terrível. Acho que todas as que morrem são mártires a denunciar essa imensa injustiça.

A ação de indenização por danos morais ganha pela cartunista Laerte Coutinho contra o jornalista Reinaldo Azevedo pelos termos – “baranga moral”, entre outros – com que se referiu a ela em seu blog na Veja não foi impedimento para que ele voltasse a publicá-los. Como uma das representantes da cartunista, como a senhora analisa o caso?

Márcia Rocha
– Ao sentenciar, o juiz reiterou nossa argumentação de que a sentença tem finalidade educativa. Ora, se o senhor Reinaldo reiterou suas afirmações logo após a sentença, demonstrou que a medida educativa não teve êxito. Apenas a Rádio Jovem Pan [onde o jornalista leu o texto publicado] não divulgou essa parte das declarações do corréu, provavelmente ciente de possíveis consequências. Acredito que tal fato reforça nossa argumentação para a segunda instância.

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