13/03/2017 - 14:31

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Perspectivas do contencioso administrativo tributário

13/03/2017 - 14:31

Perspectivas do contencioso administrativo tributário

IGOR MAULER SANTIAGO*

Os tribunais administrativos tributários estão em crise. No âmbito federal, o Carf [Conselho Administrativo de Recursos Fiscais] funciona aos soluços, sacudido ora por suspeitas de corrupção, ora por greves, ora por liminares que impedem o julgamento de casos ou alteram o seu resultado. No plano estadual reina a entropia, cada estrutura tendo regras próprias de composição e funcionamento. O mesmo vale para os municípios – ou melhor, para a minoria que mantém algum órgão do gênero.

O remédio é aperfeiçoar, e não extinguir, pois esses tribunais são essenciais para a garantia de uma tributação justa: é a revisão que fazem do lançamento – pois aqui não seria de se esperar o consentimento do devedor, como ocorre nos títulos executivos privados – que legitima o acesso direto do credor à execução, com salto sobre o processo de conhecimento. Interpretando o art. 5º, LV, da Constituição, o Supremo Tribunal Federal já afirmou que o contencioso administrativo em dois graus é direito fundamental do contribuinte (RE 389.383).
E aperfeiçoar como? Impondo-se um padrão nacional na matéria por meio de lei complementar vinculante da União, dos estados e dos municípios (CF, art. 146, III). Regras sobre seleção dos julgadores e composição dos órgãos colegiados, meios de prova e outros direitos das partes, nomenclatura, prazos e critérios de admissão dos recursos, entre outros temas, requerem harmonização federativa.
 
O mesmo diploma poderia submeter a câmaras especializadas dos tribunais administrativos estaduais os processos dos municípios sem condições ou interesse para, atendendo àqueles requisitos mínimos, criar a sua própria estrutura de julgamento. A sistemática, semelhante à adotada nos tribunais de Contas (CF, art. 31, §§ 1º e 4º), não atentaria contra o federalismo. Basta notar que teria aplicação subsidiária, visando a efetivar, diante da omissão do poder público, o direito fundamental de acesso à jurisdição administrativa. Repetindo: o município poderia facilmente subtrair-se à instância revisora estadual, desde que instituísse a sua, na forma da lei.

Quanto à composição dos tribunais, temos que a forma paritária – com metade dos integrantes indicados pelo Fisco e metade pelos contribuintes – não é um dogma, podendo-se perfeitamente admitir julgadores profissionais recrutados em concurso específico, à condição de que organizados em carreira apartada da fiscalização e dotados de garantias de imparcialidade similares às outorgadas ao Judiciário.

A manter-se o modelo paritário, que é a nossa tradição, três pontos merecerão cuidado. Primeiro, o resguardo da efetiva paridade, vedando-se o funcionamento de câmaras desequilibradas. Tal falha, devida à atual dificuldade de recrutarem-se conselheiros representantes dos contribuintes para o Carf (subremunerados frente aos representantes do Fisco, vício que reclama pronta reparação), tem ensejado liminares impedindo temporariamente o julgamento de feitos naquele órgão.

Segundo, a prevenção de conflitos de interesses no espírito dos julgadores. Para os representantes do Fisco, impedindo-se que participem dos valores sobre os quais decidem. A vedação existe para o Judiciário (CF, art. 95, parágrafo único, II) e deve, pelas mesmas razões – moralidade e imparcialidade –, ser estendida aos juízes administrativos. A bem dizer, a inconstitucionalidade da MP 765/2016, que destina aos fiscais federais 100% das multas arrecadadas, não seria sanada com a mera supressão do benefício para os auditores cedidos ao Carf. Ainda que restrito aos auditores dedicados à fiscalização, o bônus continuaria a representar apropriação de receita pública para fins privados (ADI 1.145), vinculação de receita à remuneração de servidores (CF, art. 37, XIII) e ofensa à impessoalidade da Administração (STF, Representação 904), entre outros vícios que apontamos em parecer que deve ser analisado pelo Conselho Federal da OAB na sessão deste mês.

Já para os representantes dos contribuintes, evitam-se os conflitos de interesses proibindo-se que atuem como advogados. A incompatibilidade, trazida pelo art. 28, II, do Estatuto da OAB, passou a ser aplicada de forma literal pelo CFOAB apenas em 2015, e mesmo assim só para o Carf – mantendo-se a interpretação anterior (impedimento para advogar contra o ente a que servem) para os membros dos demais tribunais administrativos. O tema suscita paixões, mas aplaudimos a nova orientação e predicamos a sua extensão aos estados e municípios, sem nenhum menoscabo aos colegas que, seguindo a orientação do Conselho Federal, atuaram ou – nos tribunais locais – continuam a atuar como julgadores. A crítica é à regra (ou a uma certa interpretação dela), e não às pessoas que a observam. E nada tem que ver com suspeitas de corrupção, para as quais o tratamento é policial, mas com o ganho de eficiência decorrente da dedicação exclusiva de todos os julgadores ao tribunal e com o imperativo de transparência, hoje mais rigoroso do que outrora.

O terceiro tema refere-se ao tratamento do empate. Pensamos que a solução atual é inadequada, seja por vulgarizar um mecanismo – o voto de minerva do presidente – concebido para resolver a igualdade acidental em cortes com número ímpar de assentos, seja por estimular o alinhamento automático dos conselheiros do Fisco nos casos de vulto. Inverter o critério, como têm feito recentes liminares, mantém o problema, apenas transferindo o benefício para o contribuinte. E acabará por legitimar a Fazenda a contestar em juízo as decisões que lhe forem contrárias, em lance de esquizofrenia institucional: o poder público propondo ação contra um ato seu. Melhor será eliminar o voto dobrado para qualquer dos lados, conservando-se, em caso de empate, a suspensão da exigibilidade do tributo até a sentença de primeiro grau, desde que o contribuinte ajuíze ação anulatória em até 60 dias do fim do processo administrativo. O juiz será o desempatador, e o débito deverá ser garantido após a sentença, se esta for de improcedência. Trata-se, é claro, de alteração a ser realizada pelo legislador, e não por decisões judiciais ativistas.

Duas observações finais: qualquer modelo, paritário ou não, repele o recurso hierárquico, que a legislação fluminense todavia conserva. Ofende o contraditório e o due process atribuir-se a apenas uma das partes, encerrado o debate no âmbito de órgão técnico, a faculdade de suscitar a decisão política do chefe da arrecadação.

E convém, face à sofisticação dos debates processuais e de fundo nos tribunais administrativos, exigir que o particular seja sempre representado por advogado (alteração do art. 1º do Estatuto da Ordem), para o seu próprio benefício e para se tirar o máximo proveito dessa instância, desafogando-se na medida do possível o Poder Judiciário.
 
* Doutor em Direito Tributário, membro da Comissão Especial de Direito Tributário do Conselho Federal da OAB

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