13/03/2017 - 14:27

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Polêmica no p rojeto das teles

13/03/2017 - 14:27

Polêmica no p rojeto das teles

Alterações propostas na lei de telecomunicações, como a do regime de outorga do serviço de telefonia, seriam inconstitucionais, afirmam especialistas
 
VITOR FRAGA

O Projeto de Lei da Câmara dos Deputados (PLC) 79/2016, que tramita no Senado Federal, propõe mudanças na Lei Geral de Telecomunicações no que diz respeito à outorga de concessões de telefonia fixa, entre outras.
Na disputa entre apoiadores da medida, que defendem sua necessidade para a modernização da rede, e os opositores, que apontam inconstitucionalidades na tramitação e no texto – e denunciam possíveis benefícios para as empresas –, a matéria acabou sendo enviada à sanção presidencial no final do ano passado, sem discussão em plenário e à revelia dos recursos apresentados por senadores de oposição. Os parlamentares então ajuizaram no Supremo Tribunal Federal (STF) o Mandado de Segurança 34562, cujo relator, ministro Luís Roberto Barroso, concedeu liminar determinando a apreciação dos recursos, que pedem que a matéria seja debatida pelo plenário da casa. Senadores favoráveis e contrários à iniciativa, além de representantes da sociedade civil ouvidos pela TRIBUNA concordam em um único ponto: o atual sistema de telecomunicações brasileiro precisa de um novo marco regulatório. As divergências começam quando se pensa em que direção essa nova legislação deve seguir.
 
Tramitação

O texto da PL 79/2016 modifica o regime de outorga de concessão para autorização – o que permitiria, segundo os opositores, renovações sucessivas sem licitação – e altera as normas de destinação dos bens reversíveis – equipamentos e infraestrutura que, por contrato, deveriam retornar à União ao final do período concessivo. 

Em função da ação ajuizada no STF por um grupo de 13 senadores, a proposta, originária da Câmara, teve que ser devolvida ao Senado após a liminar concedida pelo ministro Barroso, para debate na Comissão Especial de Desenvolvimento Nacional e em plenário. “Foi uma decisão acertada, que protege a regularidade formal do processo legislativo e o espaço de debate democrático das minorias parlamentares. O caminho agora será: como determinado pelo relator, a comissão terá que apreciar os recursos. Após essa etapa, o STF julgará o mérito, e só então a matéria estará pronta para ser debatida no plenário do Senado”, explica a integrante da Comissão de Direito Constitucional da OAB/RJ Marcelle Mourelle. “A liminar deferida não impõe a retomada das discussões sobre o tema, mas tão somente a apreciação da regularidade dos três recursos interpostos pelos senadores no âmbito da comissão especial”, acrescenta. Os senadores argumentam que a ausência de debate fere o artigo 58, parágrafo 2º, inciso I, da Constituição Federal, que estabelece que sejam deliberadas pelo plenário as propostas que, votadas em comissões, tenham sido objeto de recurso por um décimo (nove) dos senadores.
Polêmica

“Prefiro que ocorra esta votação em plenário, pois vai permitir desfazer uma série de mitos”, declara o autor da proposta, deputado Daniel Vilela (PMDB/GO), acrescentando que seu objetivo é “alterar o serviço de telefonia fixa de concessão para autorização”, que segundo ele é “o regime utilizado em todo o mundo”, nos casos da telefonia móvel e internet, por exemplo. “O projeto propõe mudar o eixo da política pública de telecomunicações, saindo da telefonia fixa, que hoje está em franco desuso, para a banda larga”, defende Vilela. Sobre a decisão do STF, o deputado diz que o que está sendo questionado não é a constitucionalidade do projeto, mas sim “a tramitação da matéria no Senado, por não ter passado pelo plenário”.

Segundo o representante da sociedade civil no conselho consultivo da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) e também representante do Clube de Engenharia no conselho deliberativo do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), Márcio Patusco, a existência da discussão pública já seria positiva. Mas, para ele, a proposta é inconstitucional. “A Constituição prevê que a outorga de qualquer serviço público deve ser feita mediante licitação. O projeto pretende passar os bens reversíveis para as empresas, mas isso não poderia ocorrer sem licitação”, critica. 

O engenheiro ressalta que o mesmo ocorre em relação às frequências do espectro, “que segundo o projeto de lei passariam a ter autorizações renovadas por tempo indeterminado”, e também em relação às posições orbitais de satélites nacionais. “Nenhum país do mundo faz isso. A Lei Geral de Telecomunicações diz que as concessões devem ser renovadas, deve haver novas licitações. Sem isso, retira-se a possibilidade de concorrência de mercado, ou redução de preço. Desde 1997, as licitações de frequência no sistema de telecomunicações arrecadaram R$ 30 bilhões. Com renovação automática, o Estado abre mão de bilhões de reais, violando a Carta e trazendo prejuízo ao erário”, contrapõe Patusco. Os dados apresentados por ele constam da Nota Informativa 129/2017, da Assessoria Técnica do Senado Federal. “O conceito base do projeto é a mudança do regime de outorga de concessões para autorizações, mais leves, no que diz respeito às obrigações das empresas. Se passar como está, a questão será judicializada”, conclui.

A posição é corroborada por Marcelle Mourelle, para quem “há inconstitucionalidade material em lei que permite a mudança de concessão para a autorização”, quando “em violação aos padrões expostos no certame licitatório”, caso do que elegeu as atuais concessionárias, além de outro aspecto. “Nos editais, cálculos atuariais e na celebração dos contratos, tanto a União, como poder concedente, quanto as concessionárias levaram em consideração a reversibilidade dos bens da União e o tempo em que estes ficariam sob a tutela das concessionárias. Aceitar na atualidade que esses bens passem a compor o patrimônio das concessionárias violaria os termos das concessões, mas também o dever da União de realizar licitação pública para alienação de bens (artigo 37, XXI, CF), motivo este gerador de inconstitucionalidade material”, resume a advogada.

Tanto Vilela quando o relator do projeto no Senado, Otto Alencar (PSD/BA), contestam a afirmação de que o projeto repassaria patrimônio público às empresas. “As operadoras terão que pagar valor de mercado. O PL determina que seja feita auditoria independente, com acompanhamento do Tribunal de Contas da União e da Anatel, para verificar quanto valem os bens reversíveis, trazendo a valor presente”, diz Vilela. Para o deputado, quanto mais perto do fim da concessão mais os bens perdem valor, à exceção de alguns imóveis, por isso realizar a transação agora. Além da “depreciação física de cabos e equipamentos e defasagem tecnológica”, ele considera que a operação da telefonia fixa “segue em declínio e logo dará prejuízo para as operadoras”, mas que no momento atual as operadoras “ainda têm interesse nessa infraestrutura da telefonia”, já que “o sistema da banda larga compartilha na maioria das localidades a mesma rede de cabos da telefonia fixa”, e a banda larga “é das operadoras, pois já opera em regime de autorização”. Isto seria um impedimento para novos investimentos, pois “quando encerrar o contrato de concessão, será difícil definir o que é do poder público e o que é do setor privado”. 

O deputado acrescenta que “o projeto determina que os valores sejam investidos em infraestrutura de banda larga onde não há interesse econômico do mercado, como cidades mais afastadas dos grandes centros”, e que “caberá ao poder público direcionar e fiscalizar esses investimentos”. Alencar também defende a proposta. “Em 1998, o valor dos bens poderia ser este que eles estão falando [R$ 100 bilhões], mas de 1998 para cá depreciou-se, e muito. Nos dados que recebi da auditoria que pedi ao TCU [Tribunal de Contas da União], o patrimônio foi avaliado em R$ 16,7 bilhões”, afirma. A senadora Vanessa Grazziotin (PCdoB/AM) rebate. “Um patrimônio avaliado em cerca de R$105 bilhões (segundo dados levantados pelo TCU) seria incorporado sem nenhuma contrapartida à sociedade. Ao contrário do que argumentam seus defensores, não há uma única linha no projeto que estabeleça metas ou prazos para a melhoria dos serviços ofertados. É pura e simplesmente a doação de patrimônio público aos proprietários das teles”, alerta ela, que integra o grupo de senadores que teve recursos não apreciados e entrou com a ação no STF.

Segundo os representantes da sociedade civil, o TCU teria apontado, em 2013, R$ 100 bilhões de prejuízo – o que incluiria os bens reversíveis e também anistias a multas. Vilela, assim com Alencar, critica essa referência à anistia.

De fato, não há nenhuma menção a um suposto perdão no texto. Na verdade, existem termos de ajustamento de conduta (TACs) celebrados pela Anatel em 2016, tanto em relação à Oi (2/2016/SEI/IF, além de três outros em análise), com valor estimado de multas a serem trocadas por investimentos de R$ 1,5 bilhão, quanto à Vivo/Telefonica (108/2016/SEI/IF), revertendo cerca de R$ 2,2 bilhões. Os termos prevêm a anistia de multas em troca de aumento nos investimentos – ambos ainda teriam que ser homologados pelo TCU. No caso da Oi, o tribunal já questionou o termo após a empresa entrar em recuperação judicial, o que ocorreu logo após firmar o TAC.

“Há uma discussão muito grande sobre o valor real. A Anatel alega que estaria em torno de R$ 17 bilhões. Sabemos que uma parcela grande desses bens reversíveis é de prédios, que não se depreciam, só se valorizam”, diz Márcio Patusco. O valor pode sim ter uma depreciação, mas não tanto que se reduza ao número divulgado pela Anatel, argumenta. Para normatizar o setor, há alguns anos entidades como o FNDC defendem a elaboração de um novo marco regulatório da área de telecomunicações, mas diferente do modelo que vem sendo debatido no Congresso.

Patusco lembra que a universalização da banda larga já foi prometida. “Em 2010, criou-se o Plano Nacional de Banda Larga, cuja intenção inicial era garantir a 28 milhões de brasileiros o acesso ao serviço. Só conseguiram 2,6 milhões, ou seja, menos de 10%”, aponta. Ele contesta o argumento de que o projeto teria como objetivo a universalização, “quando, na verdade, seria uma ameaça a ela.” “O que vem sendo dito é que os bens reversíveis seriam utilizados para fazer os investimentos necessários. Mas não existe nenhuma garantia de que as operadoras irão aos locais onde existe deficiência de atendimento. Porque lá ela não irá obter recursos. Ou seja, no regime privado, vai continuar a ocorrer o mesmo problema que já acontece no público, as operadoras não irão aonde não há retorno financeiro, porque não há fiscalização. Basta olhar o histórico da Anatel”, denuncia.

Segundo o engenheiro, “quando o serviço é público, existe o compromisso com a modicidade tarifária”, mas quando é privado “a tarifa é atribuição do prestador de serviço”, e continuaria sendo caro. “Temos, segundo dados da União Internacional de Telecomunicações, uma das tarifas mais altas do mundo, considerando uma cesta de serviços que incluem celular, telefonia fixa e banda larga”, analisa Patusco. Para ele, o fato de o serviço “ser de qualidade ruim e não universal”, a velocidade ser baixa e a tarifa, cara, é resultado direto da prestação privada. “Por isso queremos que seja público. Eles dizem que a telefonia fixa está decadente, que aos poucos a demanda vai diminuindo, e por isso na hora em que retornar ao Estado vai retornar uma rede obsoleta. Isso não é verdade, porque o contrato prevê que as melhorias devem ser devolvidas também”, pondera.

Membro do coletivo Intervozes, entidade de defesa do direito à comunicação, e ex-representante da sociedade civil no Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), o jornalista Gustavo Gindre concorda que a lei precisa de mudanças, e faz coro a Patusco no que diz respeito à necessidade de um novo marco regulatório para o serviço de telecomunicações. “A LGT traz um vício de origem ao ignorar os avanços tecnológicos e tratar quase exclusivamente de serviços públicos (telefonia fixa), ignorando os privados (como banda larga). Diante da convergência tecnológica e da digitalização, como se separa o que é reversível, o que é usado para um serviço ou para outro? A banda larga não é reversível, mas a telefonia é. Como se reverte 50% de um cabo? De fato é complicado, inviável, os defensores do projeto têm razão nisso. Mas por que ele foi criado assim? É a velha história, inviabiliza-se um serviço para depois privatizá-lo”, sintetiza. 

Gindre recorda que a Anatel, diante das críticas à LGT, sempre defendeu a posição de que “o modelo era a oitava maravilha do mundo”, mas atualmente mudou de posição e diz que a norma está defasada. “Em 2008, no plano de metas, o governo colocou obrigações relativas à banda larga no serviço de telefonia. Ou seja, passou-se a ter, no contrato de bens reversíveis, custos e equipamentos não reversíveis. Uma infraestrutura prestada em regime privado passou a constar em um contrato de regime público. Desde o início dos anos 2000, eu costumava brincar que, na hora de encerrar o contrato, as empresas iriam entregar a chave do fusquinha velho que está na garagem e dizer que isso era o bem reversível. Eram favas contadas que essa situação iria aparecer”, ironiza. Segundo Gindre, apesar de o projeto prever algumas obrigações, nada garante que, se a medida for aprovada, as empresas continuarão a atuar em cidades que não oferecem lucratividade.

A principal interessada no rumo dos debates é a Oi, que detém a maioria absoluta das concessões de telefonia fixa no país. “A Sercomtel é concessionária em dois municípios; a Algar, em 85; a Vivo/Telefonica, em 642, todos no Estado de São Paulo; a Oi tem concessões em 4.840 cidades, e em todas possui bens reversíveis”, lista Gindre. Considerando os 5.570 municípios brasileiros, a Oi tem concessões em 86,9% deles. “A Oi seria a principal beneficiada, por ser a administradora da maior parte dos bens reversíveis. Entre as grandes, como antiga Telemar, ela tinha a outorga de todo o litoral e, quando posteriormente absorveu a Brasil Telecom, ficou com as outorgas também do interior, ou seja, o Brasil inteiro, exceto São Paulo”, completa Patusco. 

Em sua coluna de 23 de fevereiro, (“Os truques socorrem”) no jornal Folha de S. Paulo, Jânio de Freitas menciona o processo de recuperação judicial da Oi, no qual a empresa propõe que “os R$ 20 bilhões de sua dívida com a União e com a Anatel, logo, com o país, transformem-se em investimentos ainda por projetar”.
 
Mas a transformação de multas em novos aportes seria necessariamente ruim? “Multas não precisam ser necessariamente pagas, é possível cobrar de outras formas, como através da exigência de novos investimentos. Mas é preciso tomar cuidados, que não vejo nesse caso. Se as multas forem anistiadas em favor de aportes que as empresas já deveriam ter feito, aí é perdoar a dívida, é prejuízo para o Estado. Se for para trocar multa por investimento, tem que ser por novos. Agora, se a própria Anatel já reduziu o valor estimado em R$ 100 bilhões para R$ 17 bilhões, jogando a favor das empresas, é de se esperar que não tenha força para fiscalizar novos investimentos, por exemplo”, finaliza Gindre.

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