13/03/2017 - 14:35

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Sujeira deba ixo do tapete

13/03/2017 - 14:35

Sujeira deba ixo do tapete

Divulgação da lista suja do trabalho escravo está autorizada pelo STF desde maio do ano passado, mas o Ministério do Trabalho optou por temporariamente não revelar a relação de empresas flagradas utilizando-se de mão de obra em situação análoga à escravidão. Decisão judicial estipula que a pub licação seja retomada em março
 
NÁDIA MENDES 
Formalmente, uma pessoa não pode ser dona de outra e nem submeter ninguém a trabalho forçado no Brasil desde 13 de maio de 1888, quando foi assinada a Lei Áurea e a escravidão no país foi extinta. Pelo menos oficialmente extinta. Em 1995, o governo federal brasileiro assumiu perante o país e a Organização Internacional do Trabalho (OIT) a existência do trabalho escravo contemporâneo em seu território.

Segundo dados do Ministério do Trabalho (MTb), entre 1995 e 2015, quase 50 mil pessoas foram libertadas de condições análogas à escravidão. Os números são relativos à fiscalização de trabalho escravo no país realizada em conjunto pelo MTb, o Ministério Público do Trabalho, a Polícia Federal e a Polícia Rodoviária Federal nessas duas últimas décadas.

Decisão judicial proferida em 31 de janeiro pelo juiz da 11ª Vara do Trabalho de Brasília, Rubens Curado Silveira, obrigou o MTb a voltar a publicar, em até 30 dias, o cadastro de empregadores flagrados com trabalhadores em situação análoga à de escravo, também conhecido como “lista suja”. Até o fechamento desta edição, a Advocacia Geral da União (AGU), ainda “estudava qual seria a medida judicial cabível” em relação ao processo. O prazo final do ministério era 5 de março. Em caso de descumprimento, a multa diária foi estipulada em R$ 10 mil. Procurado pela reportagem, o MTb respondeu que já havia se manifestado sobre o assunto através de nota e não daria entrevista.

O cadastro, criado em 2003, é tido como um dos principais instrumentos no combate à escravidão contemporânea e era atualizado semestralmente pela pasta, até que teve sua publicação suspensa em dezembro de 2014, graças a uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) proposta pela Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc). Na ocasião, a liminar foi garantida pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Ricardo Lewandowski durante o recesso judiciário e bloqueou a divulgação da lista que estava prevista para 30 de dezembro.

Direito à ampla defesa
 
A Adin proposta pela Abrainc defendia que a divulgação do cadastro contrariava o devido processo legal, da ampla defesa e da presunção da inocência. A Portaria Interministerial 4, de 11 de maio de 2016, aprimorou os critérios de entrada e saída de empregadores, está em vigor e foi um dos últimos atos do governo Dilma Rousseff. Dias depois, em 27 de maio, a ministra do STF Carmem Lúcia revogou a liminar concedida para a Abrainc, apontando que novas portarias publicadas em 2015 e em 2016 já teriam sanado os problemas apresentados.

O presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), deputado Nilson Leitão (PSDB/MT), também argumenta que a publicação do cadastro não observa o direito à ampla defesa, ao devido processo legal e à presunção de inocência até que haja sentença condenatória transitada em julgado. “E mais, a lista ideal seria aquela que também observasse as normas internacionais como a Convenção 29 da OIT, Na qual não existem as expressões ‘jornada exaustiva’ e ‘condições degradantes’. A adoção de expressões subjetivas permite as mais variadas aplicações e interpretações, sendo comuns inclusive divergências quando comparadas as atuações de um e outro auditor fiscal do trabalho no momento das fiscalizações”, defende o parlamentar.

Para ele, os conceitos aplicados na zona rural são diferentes daqueles usados no meio urbano. “Ao aplicar esses conceitos em pessoas do campo, normalmente gente simples, o efeito é esse. Há um equívoco ao se imaginar que os produtores rurais não oferecem condições dignas aos trabalhadores. Quem afirma isso realmente não conhece o setor”, pondera.

À frente da Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo do Ministério Público do Trabalho (Conaete), o procurador Tiago Muniz sustenta que o empregador flagrado tem, sim, seu direito de defesa garantido no âmbito administrativo. “Ele só entra na lista depois que não existir mais possibilidade de recursos em todas as instâncias administrativas, que são interministeriais, compostas tanto pelo MTb quanto pelo Ministério da Justiça. São essas instâncias que decidem pela manutenção do auto de infração ou por sua anulação. Caso seja anulado, o empregador nem entra na lista. Desta forma, não é apenas a opinião de um único auditor da equipe que foi a campo; o empregador pode expor quaisquer argumentos que entenda que sejam válidos para atacar aquele auto de infração”, explica.

Muniz lembra que existem várias listagens semelhantes à “lista suja”, como a dos devedores da Previdência Social e da dívida ativa junto à Fazenda Nacional, além de listas privadas com conteúdo semelhante, como o Serviço de Proteção ao Crédito (SPC) e o Serasa. “Nenhuma delas é considerada inconstitucional. Interesses econômicos por trás da divulgação da lista suja do trabalho escravo talvez expliquem o porquê da não publicação”. 

Na nota divulgada pelo MTb em 25 de janeiro, a pasta anunciou a criação de um grupo de trabalho com prazo até 29 de julho para propor uma nova diretriz normativa para o tema. A ideia é garantir segurança jurídica. “A portaria que hoje regula a formação da lista, assinada às pressas no último dia do governo anterior, não garante aos cidadãos instrumentos de efetivo exercício dos direitos constitucionalmente assegurados ao contraditório e à ampla defesa, bases sobre as quais se firma qualquer nação civilizada”, diz um trecho da nota. “Nenhum direito é absoluto, e os direitos de cada cidadão são limitados pelos direitos dos outros. Dessa harmonia, dessa convivência pacífica e plural nasce a democracia em que vivemos”, conclui o MTb.

“A escravidão não pode ser um assunto tratado de forma encoberta e clandestina, pois é uma chaga, uma vergonha para qualquer país, principalmente para o nosso, que foi o último nas Américas a declarar seu fim”, destaca o presidente da Comissão da Justiça do Trabalho e secretário-geral da Seccional, Marcus Vinicius Cordeiro. Ele defende a necessidade de que a atuação do Ministério do Trabalho seja mais incisiva. “O acobertamento da escravidão é algo lamentável e inscreve o Brasil em patamares de reprovação de nível internacional”.

Cordeiro diz que é preciso alertar a sociedade sobre a existência de um esforço para tentar deixar o tema na clandestinidade. “Ao se recusar a divulgar a lista, o MTb estimula essa prática lamentável, além de acabar se tornando permissivo com essa prática. Dessa forma, cria-se uma ideia de impunidade. Ao verem que a lei não é tão implacável assim, os empregadores percebem que podem utilizar do trabalho de uma forma ainda mais lucrativa, explorando outras pessoas e transformando-as em coisas”, alerta. 
 
Trabalho análogo ao escravo
Atualmente, a definição de trabalho análogo ao escravo está prevista no artigo 149 do Código Penal (CP) e situa nessa condição o trabalhador que seja submetido a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, “quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto”. Quem se vale do trabalho escravo está sujeito a até oito anos de prisão, além de multa. Essa definição vem sendo questionada no Congresso Nacional, onde tramita o Projeto de Lei 423/2013, que pretende redefinir o conceito de trabalho análogo ao escravo para regulamentar a Emenda Constitucional 81, promulgada em junho de 2014, que prevê a expropriação de terras onde sejam encontradas culturas ilegais de plantas psicotrópicas e exploração de trabalho escravo.

O deputado Nilson Leitão, da FPA, afirma que o conceito adotado no Brasil é diferente do resto do mundo. “Ao setor produtivo brasileiro é aplicado um rigor decorrente da má interpretação da norma internacional, que não existe em nenhum outro país, prejudicando sobremaneira a geração de renda, a formalização de postos de trabalho e a competitividade”, defende. Segundo ele, os conceitos de “jornada exaustiva” e “condições degradantes” são vagos. “Por se tratar de tipos penais abertos, essas duas expressões têm gerado bastante insegurança jurídica para os empregadores em razão da dificuldade de sua compreensão e elasticidade conceitual”, afirma.

A ONG Repórter Brasil, uma das principais referências no combate ao trabalho escravo no território nacional, refuta o argumento de que os termos sejam imprecisos. “O que está tutelado no artigo 149 não é apenas a liberdade, mas sim a dignidade da pessoa humana. Ou seja, é importantíssimo que se mantenha a punição para quem desrespeita a dignidade do trabalhador, sujeitando-o a condições desumanas de alojamento, alimentação, trabalho, saúde ou segurança. Ou que o obrigue a trabalhar tanto e por tantas horas que o seu corpo não suporte e ele acabe morrendo. Os auditores fiscais do trabalho utilizam instruções normativas e normas regulamentadoras para cumprir seu papel. Mas a Justiça utiliza a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e a Constituição para julgar se o trabalho é degradante ou não e se a jornada é exaustiva ou não. Ou seja, leis mais do que consolidadas no país”, defende a ONG, em artigo publicado em seu site.
 
Concorrência desleal
Além da inegável questão humanitária que envolve o trabalho escravo, o tema traz aspectos econômicos à discussão. “A publicação da lista também serve para que empresas que seguem as leis trabalhistas corretamente gerenciem os riscos decorrentes de celebração de contratos com empresas que tenham submetido trabalhadores a essa situação”, destaca o procurador Tiago Muniz. “A omissão não interessa a ninguém, além daqueles que vão figurar na lista. Deixar essa informação à sombra só interessa ao mau empregador. O bom empregador deseja uma concorrência leal em seu ramo. Se seu par está submetendo trabalhadores a uma situação análoga à escravidão ele tem interesse que estes tenham seus nomes conhecidos”, afirma. Bancos públicos, como o BNDES e a Caixa, também utilizavam a “lista suja” como um dos critérios para a obtenção de créditos. No entanto, a não concessão de créditos é apenas uma recomendação.

Oficialmente, a lista não tem caráter punitivo. Para Muniz, mesmo que a Emenda Constitucional 81 ainda não esteja regulamentada, a expropriação de propriedades, urbanas ou rurais, prevista em caso de trabalho escravo, é mais um motivo para que haja a publicação da lista. “A propriedade é justamente a garantia dada em relação ao crédito que está sendo financiado. O banco tem todo o direito – e o interesse – em saber com quem está mantendo relações comerciais. Inclusive porque, muitas vezes, são créditos públicos. Como o banco vai emprestar dinheiro para um empregador que tenha sua propriedade em risco?”, questiona. “A divulgação do cadastro é importante tanto do ponto de vista humanitário quanto do econômico”, pondera.

Nilson Leitão afirma que a publicação tem, sim, caráter punitivo. “A lista tem efeitos imediatos e irreversíveis, como perda de financiamento, vencimento antecipado de parcelas, dentre outros. Sem crédito, muitos não têm como operar. O setor agropecuário funciona com relógio biológico. Se o crédito não sair na hora certa, perde-se o plantio, perde-se a colheita, perde-se a safra, e isso não volta atrás. Trata-se de um dano irreparável ao produtor e ao país”.

Para o deputado, o principal problema é a forma como os empregadores são incluídos na listagem. “Há casos em que o empregador perdeu o processo administrativo e foi absolvido na ação judicial. Todavia, como o processo na Justiça, em regra, é mais lento, os efeitos já foram sofridos e sem que tenha havido uma reparação, e isso é um absurdo”, frisa.
 
Transparência 
Após a suspensão da publicação do cadastro, a ONG Repórter Brasil, em conjunto com o Instituto do Pacto Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo (InPacto), solicitou ao MTb, por intermédio da Lei de Acesso à Informação, a Lista de Transparência sobre Trabalho Escravo Contemporâneo. 

Segundo a ONG, o objetivo é “garantir o direito da sociedade e do setor empresarial à transparência sobre o tema, fornecendo informações sobre os flagrantes confirmados por trabalho análogo ao de escravo realizados pelo governo”. O InPacto é um acordo entre empresas e entidades privadas para afastar qualquer possibilidade de uso de mão de obra escrava na cadeia produtiva de seus produtos e serviços.

Os últimos dados divulgados são referentes a 349 empregadores autuados que tiveram decisão administrativa final entre abril de 2014 e abril de 2016. A lista foi compilada pelo ministério e entregue às organizações em junho do ano passado e está disponível no link https://goo.gl/tEHS8D.

Ainda que a principal concentração de casos de flagrantes de trabalho análogo à escravidão esteja nas zonas rurais, fiscalizações do MTb também encontram, frequentemente, casos de exploração nas zonas urbanas, principalmente na construção civil e na indústria têxtil.

Grandes marcas do setor têxtil já foram flagradas explorando trabalho degradante no Brasil. Na maioria das vezes, empresas terceirizadas que prestam serviço para grandes marcas e contratam funcionários que estão em busca de oportunidade de trabalho fora de seus países, principalmente bolivianos. Em novembro de 2016, a empresa M5, dona da grife M.Officer, foi condenada pela Justiça do Trabalho a pagar R$ 6 milhões em danos morais coletivos por ter se utilizado de mão de obra análoga à escravidão de seis trabalhadores oriundos da Bolívia.
 
O aplicativo de celular Moda Livre, desenvolvido pela ONG Repórter Brasil, monitora 101 marcas da indústria de roupas e divulga quais empresas estão envolvidas no combate ao trabalho escravo no país, fiscalizando para que as peças fabricadas no Brasil sejam produzidas sem mão de obra escrava. Também monitora marcas que já foram flagradas em casos de exploração. O aplicativo está disponível para download nos sistemas iOS e Android.

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