07/04/2015 - 17:41

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Direito à justiça

07/04/2015 - 17:41

Direito à justiça

Especialistas apontam que, mais do que acesso ao Judiciário, moradores de favelas querem direitos efetivados
 
VITOR FRAGA
O acesso à justiça, teoricamente, poderia ser definido como o reconhecimento de uma situação prejudicial, a identificação do responsável e a busca por reparação. Por outro lado, o acesso ao Judiciário muitas vezes não contempla a noção de acesso à justiça, na medida em que isso só se daria como resultado de um conjunto de direitos que, muitas vezes, não podem ser garantidos através de uma sentença judicial – em especial, quando se trata de moradores de favelas. O lançamento do livro Cidadania, justiça e “pacificação” em favelas cariocas (FGV Editora, 2015), organizado pela cientista social Fabiana Luci de Oliveira, joga luz sobre o debate, abordando, entre outros aspectos, questões como o conhecimento dos direitos, o acesso a advogados e defensores públicos e a confiança nas instituições formais de Justiça – a partir de estudos feitos nas favelas cariocas do Cantagalo, do Vidigal e Complexo do Alemão, locais onde existem Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs).

É possível afirmar que o acesso à justiça nessas comunidades está no mesmo nível da sociedade em geral? As UPPs ajudam a promovê-lo? Para a autora e outros especialistas ouvidos pela reportagem da TRIBUNA, para além do conhecimento e acesso a instrumentos legais e da questão da segurança, a percepção geral dos moradores de favelas é a de que seus direitos são, sistematicamente, desrespeitados.

“O que a pesquisa permite afirmar é que na dimensão de acesso à justiça que compreende conhecer, fazer valer, reivindicar ou defender um direito, a situação dos moradores das favelas estudadas não está tão longe da população em geral. Ambas ainda estão bem distantes do desejado”, diz Fabiana Luci. Ela acrescenta, no entanto, que a realidade nessas comunidades traz fatores adicionais que dificultam o acesso à justiça, como a irregularidade da ocupação, a insegurança e ausência do Estado. “Como [Maria Tereza] Sadek e eu concluímos em um dos capítulos do livro, embora sejam inegáveis as conquistas das UPPs relativas à garantia de direitos civis mais básicos, como a liberdade de ir e vir, não foi possível constatar um efeito mais direto no crescimento da percepção sobre os direitos. O desconhecimento acerca desses e das instituições continua grande”, lamenta.

Na mesma linha, o professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Alex Ferreira Magalhães também vê obstáculos no caminho para a justiça nessas áreas. “Pela minha experiência de pesquisa, um dos problemas visíveis é que existem bloqueios. Aliás, acesso à justiça é um conceito mais amplo que o ingresso no Judiciário. Em relação a este último, o morador de favela busca basicamente questões de Direito do Consumidor, às vezes de família ou trabalhista. Uma variável fundamental é se existe chance de êxito. Mas tudo que envolva polícia, por exemplo, dificilmente gera procura”, aponta Magalhães. Dessa forma, muitas situações não são levadas aos tribunais. “Quer dizer, questões que cidadãos em geral demandariam ao Judiciário, um morador de favela talvez pense muitas vezes antes de fazê-lo, ou desista mais rápido, vá buscar outro caminho”, pondera o professor. Ele ministra, desde 2011, o curso Direito nas favelas, na OAB/RJ. “Além de advogados, outras pessoas como gestores públicos, pesquisadores, moradores de comunidades e estudantes de outras disciplinas têm mostrado interesse pelo curso. Isso reforça a visão de que a Ordem presta um serviço à sociedade, não apenas à advocacia. E, para o campo do Direito, estamos colocando em pauta o tema das favelas”, explica.

Para a desembargadora Cristina Tereza Gaulia, idealizadora e coordenadora do programa Justiça cidadã, do Tribunal de Justiça (TJ) – o projeto é educativo e foi criado em 2004 –, o acesso nessas regiões não está no mesmo nível da sociedade como um todo. “Não é possível fazer essa afirmativa, pois os séculos de abandono dos territórios onde agora se implantam UPPs precisam muito mais do que o trabalho de polícia e aulas sobre Direito e cidadania. Somente quando se garantirem a todos, nesses locais, os direitos e garantias fundamentais que temos em outros quadrantes da cidade é que se poderá analisar se há efetivo acesso à justiça igualmente”, argumenta a desembargadora, esclarecendo que no âmbito do programa não se utiliza mais o termo favela: “Falamos hoje de territórios em processo de reinserção no Estado Democrático de Direito”. É possível apontar, portanto, a percepção de que essas áreas estariam de alguma forma excluídas do Estado de Direito.

Conhecimento das leis e o papel da advocacia

Dados publicados no livro organizado por Fabiana, principalmente no capítulo 5 – Conflitos e resolução de litígios nas favelas do Cantagalo, do Vidigal e do Complexo do Alemão, escrito em coautoria com Maria Tereza Sadek, ajudam a compreender um pouco melhor esse cenário. Segundo as autoras, a dificuldade dos moradores entrevistados pela pesquisa de verbalizar seus direitos “não os impede de sentir que eles são pouco respeitados. A grande maioria (84%) acredita que ‘os direitos que estão na lei’ são pouco ou nada respeitados”. Elas apontam também que “o relato de vivência de situação de desrespeito também é maior quanto maior é a escolaridade”, o que reforçaria a ideia de que o desconhecimento diminui a busca por reparação.

Os depoimentos indicam que a situação de desrespeito mais frequente é a que envolve problemas com a polícia, seguida por questões de consumo, direitos civis e casos envolvendo o poder público. No entanto, boa parte das pessoas não busca nenhuma forma de reparar o dano sofrido. Segundo Fabiana e Sadek, os percentuais de moradores que “deixaram pra lá” casos de desrespeito são altos: 57% na Fazendinha (Complexo do Alemão), 46% no Cantagalo e 44% no Vidigal. Entre as situações que caíram no esquecimento, os números mais elevados são relativos a direitos civis e conflitos com a polícia, enquanto aquelas que mais geraram busca por solução são as relativas à família, consumo e vizinhança. 

As autoras revelam uma percepção bastante significativa da noção de justiça entre os entrevistados: “No imaginário dos moradores a referência ao Judiciário engloba as diversas instituições, seja a polícia, a Defensoria Pública, o Ministério Público e o próprio Judiciário. E mais ainda, qualquer espaço público é identificado como espaço de justiça”. Elas verificaram também que “os direitos vistos como os mais ameaçados e, portanto, reclamados pelos moradores, são os relativos à família, ao consumo e ao trabalho”. Já os direitos menos exigidos são os que aparecem com maior frequência nas reclamações. “Em contraste, os conflitos com a polícia, as agressões de terceiros, furto e roubo, e a perda de emprego sem o recebimento de direitos, embora sejam recorrentes, são os que os moradores menos percebem como direitos e, em consequência, são os menos reclamados”, reforça o texto.

Para Alex Magalhães, de fato o acesso à informação e o aumento da escolaridade entre os moradores de favelas intensifica a compreensão da violação dos direitos. “A minha percepção é que as pessoas desconfiam que têm direitos, sabem que existem leis que os regulam, mas também sabem que, de fato, muitas vezes esses direitos não são respeitados na prática. Sabe-se que eles existem, mas como a violação é grande e constante, passam a ser uma falácia, não se efetivam. A minha experiência vai na mesma direção que a pesquisa apontou, uma percepção generalizada de que os direitos são violados”, concorda o professor.
 
Fabiana Luci acrescenta outro obstáculo para o acesso à Justiça além da ignorância das leis. “Além do desconhecimento há também a descrença nas instituições. Pesquisas de monitoramento da opinião pública acerca da confiança dos cidadãos no Judiciário e em outras instituições, como a polícia, vêm indicando que existe esse problema nas instituições”, pondera.

Magalhães argumenta que o problema é o conhecimento real que os moradores de favelas têm do Estado. “O juiz, para o pobre, é alguém que pode dar-lhe voz de prisão. E vários eventos vão reforçando essa visão, como esse caso recente do juiz que processou uma servidora pública que queria multá-lo, e inclusive ganhou o processo em primeira e segunda instâncias. O morador de favela pensa: ‘quanto mais distante estiver dessa gente, mais seguro estou, porque não há controle para elas’. Muitas vezes ele pensa que, se falar algo errado, pode ser preso ou processado”, explica o professor. Para ele, a ignorância não é o fator preponderante. “Os pobres não pensam assim pelo desconhecimento da lei, embora ele exista de fato. Pensam dessa forma porque sabem como o Estado funciona, desde crianças conhecem sua pior expressão”, contrapõe. 

Segundo a pesquisa de Fabiana e Sadek, “quase um terço dos entrevistados disse não ter buscado o Judiciário por desconhecimento, medo ou vergonha”; 23% não o fizeram por enxergar “problemas estruturais no acesso à Justiça”; e 22% porque encontraram soluções alternativas. Entre aqueles que buscam o Judiciário, 39% o fazem através de advogados particulares, 30% através da Defensoria Pública e 6% “com advogados conhecidos ou de ONGs e sindicatos”. Para a desembargadora Cristina Tereza Gaulia, diante da carência de defensores públicos, uma solução possível seria a advocacia pro bono. “Falta de defensores e dificuldade de acesso ao Judiciário são questões importantes, a serem, em certo nível, compensáveis por um programa de advogados  pro bono”, defende. Na opinião de Alex Magalhães, o próprio advogado muitas vezes é visto como alguém que não se interessaria pelos problemas do morador da favela, além do fator da ilegalidade. “Ainda pesa sobre os moradores de favela o velho estigma da ilegalidade, que o Boaventura Souza Santos [sociólogo] chamou de ‘ilegalidade existencial’, que começa na moradia, no acesso à terra, e contamina todas as relações do cidadão. Esse estigma já é motivo suficiente para que a pessoa jamais procure um advogado”, diz.
 
A questão da UPPs
 
Um dado significativo da pesquisa revela que entre os moradores de favela que buscam reparação para direitos violados, as opções mais recorrentes são procurar o “responsável pelo dano ou desrespeito” ou a UPP. “O recurso às UPPs nos casos não referentes a situações de crime e violência se deve, em grande parte, à existência da mediação policial”, revela o estudo – o programa de mediação nas UPPs foi criado em 2012, numa parceria entre o Tribunal de Justiça e a Polícia Militar do Rio de Janeiro.

Para o superintendente de Educação da Subsecretaria de Educação, Valorização e Prevenção da Secretaria de Segurança, Leonardo Mazzurana, o serviço de mediação de conflitos seria “um exemplo de acesso qualificado à justiça restaurativa”, e as comunidades não dependeriam de UPPs em relação à promoção de justiça. “No entanto, sabemos que existem contextos que demandam da política de pacificação do estado o estabelecimento de padrões de segurança adequados para a instalação de outros serviços públicos, entre eles os de Justiça e, nesse sentido, o programa de polícia pacificadora contribui para a acessibilidade a instâncias do Judiciário, que dependem ainda de outros atores públicos, sociedade e organizações civis para serem efetivados e tornarem-se acessíveis”, argumenta Mazzurana.

A conclusão das autoras do artigo revela que “não foi possível constatar um efeito direto das UPPs no crescimento da percepção sobre os direitos”. Na avaliação de juízes, promotores, defensores e advogados, seria “recorrente a avaliação de que a Justiça está mais atuante agora, pois essas favelas já não são identificadas como ‘áreas de periculosidade’”. Segundo Fabiana Luci, a garantia de segurança é parte importante para implementação de qualquer política pública, mas não garante o acesso à justiça. “Como Sadek e eu observamos na conclusão do capítulo 5, a política de pacificação, por si só, não é capaz de garantir o conhecimento e a consciência acerca dos direitos e dos meios de reclamá-los, nem a inclusão desses moradores nessa dimensão de cidadania”, observa, acrescentando que uma das principais iniciativas para alterar o quadro “deve ser a educação para os direitos”. 

A desembargadora Cristina Gaulia é enfática. “As UPPs não têm nenhuma ligação com a questão do acesso à justiça. Polícia não tem função de distribuir justiça. Tal função compete ao Poder Judiciário”, afirma. O professor Alex Magalhães propõe uma análise que leve em conta a necessidade de segurança. “As UPPs não são panaceias, tampouco se pode ignorar a necessidade da segurança pública dos moradores de favelas. Acesso à justiça inclui isso, é um problema social e de segurança, um agrava o outro. A ação social não resolve a questão da segurança pública, e a segurança não resolve a questão social”, pondera. 

Para ele, a questão exige que o Estado se apresente como um garantidor de direitos, e não como violador. “Facilitar a regularização de terrenos, casas, pequenos negócios, tudo isso repercutiria muito mais positivamente no que diz respeito ao acesso à justiça do que a instalação de UPPs, por exemplo. Com a moradia regularizada, pode-se buscar outros direitos. Isso poderia aumentar a confiança do morador da favela no Estado, que se apresentaria como um defensor do interesse público. Claro, isso exigiria uma ampla promoção de direitos, porque se o Estado se apresenta como um destruidor desses interesses, o título de propriedade da moradia não altera muita coisa”, conclui.

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