07/04/2015 - 17:50

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Fim da revista vexatória: uma possibilidade nacional?

07/04/2015 - 17:50

Fim da revista vexatória: uma possibilidade nacional?

Especialistas e entidades de direitos humanos comemoram aprovação, na Alerj, de dois projetos que põem fim à revista íntima em visitantes de presídios e de unidades socioeducativas do estado e rebatem críticas à segurança de novo método proposto
 
CÁSSIA BITTAR

No último mês, muito se ouviu falar no termo “revista vexatória” no Rio de Janeiro: no dia 10 de março, foi aprovado, pela Assembleia Legislativa do estado (Alerj), o Projeto de Lei (PL) 77/15, dos deputados Marcelo Freixo (Psol), Jorge Picciani (PMDB) e André Ceciliano (PT), que substitui a revista íntima manual em visitantes dos presídios pela inspeção mecânica (raio-x, detectores de metal e scanner corporal). No dia 26 foi a vez de passar pelo legislativo fluminense o PL 76/2015, de autoria dos primeiros dois parlamentares, que estende a definição às unidades de menores infratores. A expressiva aceitação dos textos trouxe à tona uma questão que é um antigo pleito de entidades ligadas a direitos humanos: há meios alternativos para evitar o constrangimento ao qual milhares de pessoas, a maioria mulheres, são submetidas diariamente no país.
 
A apuração do Instituto de Defensores de Direitos Humanos (IDDH), indica que passam pelo procedimento no país, semanalmente, mais de 500 mil pessoas, incluindo crianças, idosos e gestantes que, ao visitar familiares presos ou internos no sistema socioeducativo, são obrigadas a tirar a roupa e, em alguns casos, agachar repetidas vezes tendo seus órgãos genitais inspecionados por agentes.
 
As votações na Alerj reuniram políticos de linhas divergentes em torno do entendimento de que o procedimento é inconstitucional e de que é possível garantir a segurança com a tecnologia disponível, a exemplo de estados que já a aboliram: quanto ao projeto que diz respeito aos presídios estaduais, 45 deputados votaram a favor e dois contra. Já o texto que trata da revista nas unidades do Departamento Geral de Ações Socioeducativas (Degase) teve aprovação ainda mais expressiva: 51 a 1.

Presidente do Conselho Penitenciário do Rio de Janeiro e representante da OAB/RJ na Coordenação de Acompanhamento do Sistema Carcerário do Conselho Federal, Maíra Fernandes comemorou o resultado: “Foi uma vitória estrondosa termos conseguido aprovar na Alerj o fim da revista vexatória porque essa é uma luta muito antiga de diversas organizações de mulheres, de direitos humanos, da própria OAB e do Conselho Penitenciário.”

O deputado Marcelo Freixo explica que os projetos surgiram com base em relatos sobre as situações vexatórias às quais os visitantes de presos são submetidos: “O procedimento é humilhante e violento, obrigando as mulheres a ficarem nuas, em posições degradantes, e a terem seus órgãos genitais revistados.”

O presidente da Comissão de Direitos Humanos da Seccional, Marcelo Chalréo, reforça: “Já vem tarde a aprovação dos projetos que põem fim àquilo que chamamos de revista vexatória, um ato desumano de submeter pessoas a procedimentos de apalpação corporal, de colocar à vista partes íntimas do corpo, num constrangimento que lembra as bárbaras práticas do nazi-fascismo nos campos de concentração.”

De acordo com Maíra, a prática é ilegal, tal como especificam os textos, pois “a revista íntima viola flagrantemente a dignidade da pessoa humana, o direito à intimidade e o direito à integridade física”: “A dignidade da pessoa humana é um dos pilares do nosso Estado Democrático de Direito. Se o Estado a viola, acintosamente, está violando a Constituição em um dos seus princípios fundamentais mais preciosos”.

Freixo acrescenta que, além de adequar o procedimento de revista de visitantes nos presídios aos princípios constitucionais, os textos ainda seguem a Lei de Execuções Penais, as diretrizes de gestão prisional deliberadas pelo Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) e o Estatuto da Criança e do Adolescente: “A pena aplicada não pode se estender aos familiares dos detentos. E é isso que essa prática impõe. Os projetos são muito claros e, na verdade, só buscam reparar uma injustiça.”

No entanto, apesar de amplamente admitida pelos parlamentares, a extinção da revista vexatória gerou dúvidas em relação às alegações de falta de segurança que ainda sustentam o antigo método na maioria dos estados.
 
Minas Gerais, Paraíba e São Paulo vedaram a prática por meio de legislação; Recife, Amazonas e Ceará a aboliram através de decisões judiciais; e Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Espírito Santo, Goiás e Mato Grosso, com portarias administrativas.

Porém, alguns desses estados não cumprem as determinações: “Lamentavelmente, insistem em realizar a revista vexatória em desrespeito não só à Constituição, mas à própria legislação local que proíbe a medida. Pelo que apurei, sei que são aplicadas no Recife, Amazonas, Minas e na Paraíba”, ressalta Maíra.

A utilização da revista íntima manual vai de encontro, também, a uma tendência nacional, observa ela, citando uma resolução de agosto de 2014 do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP). A publicação frisa que “a necessidade de prevenção ao crime não poderia se sobrepor às garantias do Estado Democrático de Direito” e determina que estariam proibidas “quaisquer formas de revista que atentassem à integridade física e psicológica dos visitantes.”

Titular do CNPCP, responsável pela resolução, a defensora pública Mariana Lobo acredita que não é necessário criar leis estaduais para que a resolução nacional seja cumprida. “Já temos capacidade de aplicar essa determinação em todo o Brasil, basta investimento na tecnologia e, principalmente, treinamento para os servidores das unidades”, observa.

Lobo, que de 2011 a 2014 foi secretária da Justiça e Cidadania do Ceará, diz que as seis maiores unidades prisionais do estado possuem o scanner corporal, que tem capacidade de identificar qualquer substância carregada junto ou dentro do corpo. Nas unidades menores, a revista é feita por detectores de metais e agentes, que podem revistar manualmente os visitantes, sendo vedado o desnudamento.

Autora de um projeto de lei que também trata do tema nacionalmente, a ex-senadora Ana Rita conta que elaborou o texto após ouvir relatos de todo o país. “Realizamos uma audiência pública no Maranhão na qual ouvimos muitas reclamações. Proibir a revista vexatória é atender a um direito principalmente das mulheres, maior parte das visitantes, em relação a seus corpos. Parte-se do princípio que os materiais ilegais só entram através delas, quando o foco deveria ser outro”, frisa.

O Projeto de Lei do Senado (PLS) 480/2013 corre agora na Câmara dos Deputados, após receber emendas nas duas casas. Se aprovado, irá alterar as disposições da Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210/84) que regulamentam o procedimento.

Em âmbito estadual, os dois projetos aprovados na Alerj dependiam ainda, até a data de fechamento desta edição, de sanção do governador Luiz Fernando Pezão. Porém, desde a véspera da aprovação pelo Legislativo, por decisão do então secretário de administração penitenciária do Estado, coronel Cesar Rubens de Carvalho, a revista íntima já havia sido suspensa oficialmente nos 51 presídios do Rio de Janeiro.
 
Oposição e relatos
 
Presidente do Sindicato dos Servidores do Sistema Penal do Rio de Janeiro, entidade que vem se opondo aos projetos que alteram a revista, Francisco Rodrigues nega a generalização do procedimento: “Realizamos a revista corporal com extremo grau de responsabilidade e respeito”. Em suas palavras, só “são levadas ao vexame as visitas que já sabemos que são problemáticas em tentar burlar a vigilância e disciplina.”

Não é o que relata F., de 47 anos, que durante quatro anos e nove meses visitou o marido em diversas unidades prisionais. “Passei pelo procedimento todas as vezes em que o visitei e vi isso acontecer com pessoas de todas as idades, inclusive com senhoras que mal conseguiam andar.”

Segundo ela, em cada unidade é adotado um sistema diferente: “A mais constrangedora para mim foi em Japeri [Presídio João Carlos Da Silva] pois lá, além de sermos obrigadas a ficar peladas, temos que subir em um degrau para a agente colocar a cabeça no meio das nossas pernas, como se esperando que paríssemos um filho. Em outros locais, temos que abaixar três vezes, de frente e de costas, e colocar a cabeça no meio das pernas. Chorei muito na primeira vez que tive que passar por isso, pois além de tudo eles falam conosco de forma muito violenta, como se fôssemos bandidos”.

R., de 39 anos, que acompanha o filho há três em diversos presídios, acrescenta: “Mesmo quando somos selecionadas para o scanner, se desconfiarem de alguma coisa nós temos que tirar a roupa e nos mandam fazer muita força. Já vi gente urinando ali mesmo por conta disso”.

F. conta que, no caso de crianças, o procedimento não é feito da mesma forma, mas que o desnudamento seria obrigatório. De acordo com Maíra, a prática é aplicada até mesmo em bebês.

Principal opositor aos projetos – e único votante contra o que se refere ao Degase –, o deputado estadual Flávio Bolsonaro (PP) alega que a tecnologia de hoje não seria suficiente para garantir a segurança “mesmo tendo o Rio um dos sistemas penitenciários mais avançados do país” : “Praticamente todos os dias são apreendidas armas nas revistas íntimas. Minha preocupação é não dar mais instrumentos para que criminosos aumentem seu poder de comandar o tráfico de dentro das cadeias, de ter acesso a armas como facas, serras, materiais que podem, num caso de rebelião, ser usados para matar agentes. A segurança da sociedade tem que estar acima de alguns direitos individuais”, afirma.

Maíra Fernandes garante que a revista mecânica é, sim, suficiente para a segurança dos presídios. “Em Minas e na Paraíba tive a oportunidade de conversar com membros das secretarias de administração penitenciária e constatar que, com a execução da revista mecânica, não houve aumento significativo de ingresso de materiais proibidos ou mesmo problemas de segurança.”

Além disso, ressalta ela, todas as unidades possuem detectores de metal. “Os visitantes passam por três detectores – um portal, um banco e uma raquete - que denunciam a presença de qualquer arma, telefone celular ou chip. O que pode passar por esses equipamentos são somente drogas ou medicamentos proibidos, que são identificados com o scanner corporal”.

Freixo rebate as críticas citando pesquisa realizada pelo Núcleo Especializado em Situação Carcerária e pela Ouvidoria-Geral da Defensoria Pública do Estado de São Paulo. Segundo o estudo, dos 3.407.926 procedimentos de revistas íntimas em 2012, em apenas 0,013%, foram encontrados aparelhos celulares e, em 0,01%, entorpecentes. Em nenhum caso houve apreensão de armas. Ou seja, argumenta o deputado, “além de indigna e inconstitucional, a prática é insignificante. Não é a família que entra com material ilegal, na grande maioria dos casos. Ele chega por outros caminhos”.
 
Mulheres encarceradas, leis violadas
 
Segundo dados da Pastoral Carcerária, 95% das mulheres presas no Brasil foram vítimas de violência em algum momento da vida, na infância ou na fase adulta, pelos companheiros ou companheiras, ou ainda nas mãos da polícia no momento da detenção. Com essa informação, a presidente do Conselho Penitenciário do Rio de Janeiro e membro da comissão OAB Mulher da Seccional, Maíra Fernandes, fechou a palestra que realizou no dia 18 de março na OAB/RJ, como parte da agenda da comissão pelo Dia Internacional da Mulher.

Intitulado Encarceradas: um olhar sobre a vida das mulheres na prisão, o evento abordou as dificuldades enfrentadas por elas: “Essas mulheres acumulam todos os estigmas que se pode imaginar. Reúnem, em uma mesma condição, o próprio fato de serem mulheres, de a grande maioria ser pobre, negra, com pouquíssimos acessos a recursos e oportunidades de emprego, e ainda o estigma da prisão, que já e uma chave dificílima de romper para os homens, quanto mais para mulheres”, destacou Maíra.

A advogada apresentou números do Conselho Nacional de Justiça, de junho de 2014, que mostram que, dos 563 mil detentos no sistema à época, em torno de 7% são mulheres. “Porém, esse número tem crescido estrondosamente, muito mais do que o de homens”, observou. Dados do Instituto Penitenciário Nacional (Ipen), de 2000 a 2012, aponta que o número de presos cresceu 136%, porém, considerando só o número de mulheres, o aumento foi de 256%.

“Isso vem acontecendo especialmente por conta da Lei de Drogas, de 2006, que encarcera muito as mulheres, em grande parte dos casos pelo simples fato de serem a pessoa que está em casa no momento em que a polícia vai fazer a apreensão. Muitas, por amor ou por medo, acompanham os companheiros no crime e algumas também o escolhem como alternativa até para sustento da família”, explicou Maíra.

A dificuldade é grande, segundo ela, especialmente por conta da estrutura do sistema prisional: “Está construído para homens, pensado para homens e apenas adaptado para mulheres. Não há um sistema estruturado, construído desde o início sob uma perspectiva de gênero”.

Com isso, disfunções recorrentes se agravam nos presídios femininos, como o acesso à saúde. Em todo o país, segundo Maíra, mais uma vez citando números do Ipen, há somente 18 ginecologistas para toda a população de detentas. “Elas não fazem nenhum dos exames necessários para prevenção de câncer de mama ou de colo de útero, por exemplo, e muito menos têm o tratamento adequado. Quando grávidas, não fazem o pré-natal da forma prevista”.

Maíra citou normas e leis violadas constantemente, como a Lei de Medidas Cautelares (Lei 12.403/2012), que prevê o regime domiciliar para presas provisórias que estejam gestantes ou que tenham filhos pequenos sob seus cuidados. “Sem contar algo que fere qualquer norma internacional de direitos humanos e a nossa Constituição, que é o parto algemada. Não é uma realidade no Rio de Janeiro, mas é em São Paulo, por exemplo.”

Integrante do Subcomitê de Prevenção e Combate à Tortura da ONU, a advogada Margarida Pressburger apresentou um quadro internacional da questão e falou sobre a dificuldade de presas estrangeiras no Brasil, que sofrem mais com a falta de contato e em alguns casos não sabem nem ao menos falar o idioma.
O evento contou também com a presidente da OAB Mulher, Rosa Maria Fonseca, e da secretária de Políticas para as Mulheres do Rio de Janeiro, Ana Rocha.

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