25/05/2016 - 17:55

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Como o Brasil trata seus imigrantes?

25/05/2016 - 17:55

Como o Brasil trata seus imigrantes?

Projeto na Câmara dos Deputados que estabelece uma nova Lei de Migrações no Brasil, em substituição ao Estatuto do Estrangeiro, de 1980, gera discussão sobre o tratamento dado no país aos imigrantes e refugiados. Seriam nossas políticas públicas favoráveis para o atual fluxo mundial de migração?
 
CÁSSIA BITTAR
Vez ou outra, em tempos de crise, conflitos mundiais ou desastres naturais, o brasileiro esbarra em um tema que, apesar de parecer familiar, é tratado de forma pouco prática no país: as imigrações. Na terra do “homem cordial”, termo cunhado pelo historiador Sergio Buarque de Holanda em uma das clássicas análises sobre o perfil do nosso povo, o livro Raízes do Brasil, será que as políticas que tratam do recebimento de estrangeiros em nosso país é satisfatória frente ao atual fluxo de migrações?

A resposta é não, segundo especialistas que participaram do seminário sobre Direito das Migrações realizado pela Comissão de Direito Internacional da OAB/RJ entre os dias 4 e 6 de abril. O evento abordou a questão frente à tramitação, na Câmara, do Projeto de Lei 2516/15, que propõe a substituição do Estatuto do Estrangeiro, de 1980, por uma nova Lei de Migrações.

“O estatuto é de uma época com muitos resquícios da ditadura militar. Uma época autoritária. Portanto, é bem autoritário também. É moldado principalmente pelo modelo de migração de trabalho e da soberania nacional. Fala em segurança nacional, avaliando se o imigrante é um risco para o país, se vai trazer trabalho. Já o novo modelo proposto vira isso tudo, apesar de o projeto inicial já ter sido muito modificado”, explica o presidente da comissão, Alexandre Tolipan.
 
A modificação da lei, ainda que necessária, segundo os participantes do debate, não será uma solução por si só para os problemas hoje enfrentados por imigrantes, a exemplo do que ocorre com os refugiados. No caso destes, há uma legislação específica: a Lei 9.474/97, conhecida como Estatuto do Refugiado – considerada boa em comparação a leis que tratam do tema em outros países. São oferecidas facilidades para a entrada em determinadas situações, como a guerra civil que assola a Síria, e quem vem buscar refúgio tem visto simplificado. Mesmo assim, as políticas públicas destinadas a essas pessoas a partir do momento em que chegam aqui não são satisfatórias, na opinião geral.

“É possível imaginar que o Brasil, em um futuro próximo, tenha condições de receber mais refugiados do que já recebeu até agora e esperamos que essa discussão sobre a reforma da lei influencie também a criação de uma nova política migratória, com menos burocracia. É preciso pensar em uma estrutura mais ágil se o Brasil quiser ser um ator mais atuante e com capacidade para acolher um número maior de refugiados e de imigrantes legais” observou, no evento, o diretor do Centro de Informação da ONU (Unic Rio), Giancarlo Summa.

Segundo ele, o Brasil ainda recebe poucas pessoas nessa condição, em comparação ao fluxo mundial: “De acordo com dados das Nações Unidas, nos últimos 15 anos o número de migrantes no mundo aumentou de 173 milhões para 244 milhões. No Brasil, esse número é pequeno perto do tamanho da população, é de menos de 1%. Considerando os indocumentados, talvez o número dobre, mas não chega a 2% da população, enquanto na Europa a média é em torno de 10%; nos Estados Unidos, 14%; e no Canadá, 22%”.

Para a professora do Laboratório de Direitos Humanos da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Vanessa Berner, integrante da comissão que elaborou o anteprojeto da lei, não se pode dizer que há, hoje, políticas migratórias estruturadas no Brasil: “Nunca tivemos política nenhuma. O país se diz uma mescla de imigrações, mas a única migração de fato pensada politicamente foi uma imigração forçada de navios negreiros no período colonial”.

Ela argumenta que a discussão migratória no Brasil só teve início após o começo do fluxo de haitianos para cá iniciado em 2010, ano em que um terremoto afetou violentamente o país. “Isso porque a vinda de haitianos foi uma gota d´água no oceano. Temos cerca de 40 mil deles no Brasil, o que é muito pouco em termos migratórios considerando o fluxo mundial. Mesmo assim isso causou um rebuliço num país desse tamanho e que precisa de mão de obra”, aponta Vanessa, frisando: “Relatórios da ONU comprovam que a imigração é um ganho, não uma perda em qualquer sentido. Não ter políticas migratórias é um erro, e é um erro que nos isola”.
 
Frente ao cenário, ela elogia a iniciativa do governo de convidar especialistas para elaborarem uma nova regulamentação: “Normatizar não é tudo, mas é essencial. É daí que parte a luta. Mas é preciso dar voz aos próprios imigrantes para saber as políticas que melhor caberão às necessidades deles”.

Superintendente de Promoção dos Direitos Humanos do Estado do Rio de Janeiro, Miguel Mesquita, que também preside o Comitê Estadual Intersetorial de Políticas de Atenção aos Refugiados e Migrantes (Ceiparm), explica que o órgão realiza um plano de atenção aos refugiados, que vem sendo estendido para a situação de migração. “Não podemos de fato dizer que estamos preparados hoje para receber com boa estrutura os imigrantes e refugiados, mas estamos trabalhando muito para isso”.

O comitê presidido por Mesquita é um dos poucos órgãos públicos específicos que tratam do tema no país, e é composto pelas secretarias estaduais de Trabalho e Renda, Saúde, Educação e Segurança, além da Defensoria Pública, da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur) e do Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), além da própria OAB/RJ, representada por Tolipan, e da Cáritas Arquidiocesana do Rio de Janeiro. Esta última, por meio de sua parceria com a ONU, se destaca como principal entidade de acolhimento de refugiados.

Segundo o advogado da Cáritas, Fabrício Toledo, o maior problema diagnosticado por quem lida com os refugiados é, de fato, a falta de estrutura para recebê-los. “Nós temos uma lei bastante generosa, considerada uma das melhores do mundo, inclusive porque permite que o solicitante, desde o momento que formaliza o pedido de refúgio, receba um documento que lhe dá direito a trabalhar com carteira assinada e ter acesso a saúde e educação. Isso é bastante raro nos países que são rota principal de refúgio. Por outro lado, a gente não conta com políticas públicas mínimas de apoio financeiro ao solicitante e de abrigo. Os refugiados e solicitantes têm, sim, acesso a todos serviços públicos disponíveis aos brasileiros, mas, como sabemos, eles já são bastantes precários para quem nasceu aqui, imagina para os que estão ainda mais vulneráveis por não conhecerem ninguém e não saberem o idioma, cultura ou localização”, analisa.
 
Refugiados: dificuldades são moradia e idioma
 
Tolipan explica que o acesso à educação para as crianças já foi um problema grave no passado, mas que agora pode ser considerado estabilizado: “As escolas não aceitavam as crianças por não apresentarem o comprovante de escolaridade, mas o Ceiparm atuou para que apenas com o protocolo de pedido de refúgio essa vaga já seja disponibilizada. O problema é quando a Polícia Federal exige uma entrevista antes de emitir o protocolo, o que atrasa tanto matrículas em escola quanto a colocação de refugiados no mercado de trabalho”.

Autora de uma tese sobre êxodos e refúgios de colombianos no Brasil, a doutora em antropologia social pela UFRJ Angela Facundo reforça: “Quando comparamos o estatuto que regula os assuntos migratórios, produto da ditadura militar, com a legislação especifica para o refúgio, é claro que a última é muito mais progressista. Mas se pensarmos na efetivação dessa legislação ainda enfrentamos muitos problemas, como a dificuldade para encontrar emprego, falta de estrutura para aprendizado do idioma etc.”

Refugiado no Brasil há cerca de três anos, o sírio Ebraheem Marhaba, de 21 anos, aponta que a principal dificuldade é o acesso à moradia: “Quando a gente chega aqui geralmente nem sabe onde vai dormir”. Ele conta que, após sair da Síria e se refugiar por seis meses no Líbano, escolheu o Brasil pela facilidade do visto, por gostar do país e também para sair da rota europeia: “Para ir para a Europa teríamos que ir pelo mar, em uma viagem que nos custaria cerca de 3 mil, 4 mil dólares. Além de não ter esse dinheiro, eu não queria passar pelo perigo de uma viagem de navio”.

Quando chegou aqui, Ebraheem passou três dias dormindo no aeroporto de São Paulo por não saber para onde ir. Enfim, ele e seu irmão Armin encontraram na internet o contato de uma mesquita na região, que financiou a ida deles para Brasília, onde Ebraheem teve sua primeira oportunidade de emprego.

“Consegui uma vaga como garçom em um restaurante de lá por intermédio de uma amiga brasileira, que conheci através da mesquita em que ficamos em Brasília. E foi por causa desse trabalho que aprendi português, observando como os brasileiros falavam e perguntando tudo o que podia”, relata o rapaz sírio, afirmando que o idioma é uma grande dificuldade para os refugiados que conhece: “Eu pude trabalhar porque conheci gente que me ajudou. Mas é muito difícil para quem não sabe falar português. Tudo depende de conhecimento”.

A vinda para o Rio de Janeiro se deu pela chance de melhores oportunidades para toda a família, após seus pais e outros irmãos chegarem ao país. A essa altura, Armin, que apesar da experiência em hotelaria não conseguiu emprego em Brasília, decidiu se mudar para o Rio, onde procurou a Cáritas. Por meio da organização, conheceu o padre Alex, da Paróquia de São João Batista, em Botafogo, local em que atualmente funciona o negócio da família: uma barraca de salgados árabes que faz sucesso no bairro.

Também no Rio, Armin ficou amigo de um suíço que se comoveu com sua história e lhe ofereceu um apartamento para abrigar temporariamente a família. “Isso foi essencial para nos manter até agora, porque se tivéssemos que pagar aluguel não iríamos conseguir nos estabelecer”.

Ebraheem e o irmão Mohammed, último a chegar ao Brasil por ter sido recrutado pelo Exército de seu país, conseguiram, este ano, entrar em um curso de português oferecido pela UFRJ. Quanto à situação do caçula, Youness, de 6 anos, declarou não ter tido dificuldade para conseguir vaga em escola pública.

A família Marhaba faz parte de uma comunidade crescente: por conta da facilitação do visto, concedida por um acordo entre o Conare e a Acnur, mais de 2.077 sírios obtiveram status de refugiados do governo brasileiro de 2011 até agosto de 2015, segundo dados do comitê.
 
Imigrantes: tratamento legal e trabalho são os problemas
 
Segundo a professora Vanessa Berner, o acervo normativo para a questão da migração regular é fundamental para regulamentar a obrigação dos estados de seguirem os tratados internacionais, “promovendo o necessário acoplamento” entre o Direito Internacional e as leis internas: “Se não fizermos isso, juridicamente não terá efeito o que é resolvido nos fóruns internacionais”.

Ela exemplifica: “O Brasil não ratificou, por exemplo, até hoje, uma convenção da ONU excelente, sobre a proteção dos direitos dos trabalhadores migrantes e membros de sua família [elaborada em 1990 e que entrou em vigor em 2003]. E qual é o maior problema dos imigrantes que estão aqui? Empregabilidade”.

Para Vanessa, há uma associação inevitável entre a política de migração e a lógica de mercado capitalista: “A maior parte dos imigrantes no Brasil é admitida por representar mão de obra qualificada ou por ser investidora que gera empregos aos nacionais. A preocupação não é com direitos humanos, é com o capital”.

Tolipan reforça, ressaltando que há uma atenção especial da Comissão de Direito Internacional da Seccional para que o bom acolhimento não seja seletivo: “A maioria dos vistos de trabalho no Brasil é para empresários, para trabalhadores técnicos específicos, para gente que ganha razoavelmente bem. Eles recebem toda uma estrutura das empresas, que são as responsáveis por fazer o pedido de visto de trabalho aqui. Mas nossa preocupação é justamente com os imigrantes regulares ou indocumentados que vêm tentar a vida  e que obviamente não têm nenhuma dessas regalias nem facilidades”.

M., imigrante portuguesa que pediu sigilo em sua identificação, é uma dessas pessoas. Portuguesa, ela veio para o Brasil com visto de estudante para fazer uma pós-graduação. “As dificuldades começaram logo na autenticação dos diplomas. Por ser de outro país, isso só poderia ser feito na UFRJ. Aí enfrentei outro tormento: a tentativa de tirar um visto permanente, que considero praticamente impossível, a não ser quando a pessoa se casa com um brasileiro. Para o visto de trabalho são impostas várias restrições, taxas, e o fato de só a própria empresa poder fazer o pedido e arcar com ele dificulta, pois a maioria não quer enfrentar esse trâmite para nos contratar”, analisa.

Em relação a essa questão, Vanessa Berner explica que o projeto da nova lei de migrações pretende trocar a perspectiva de segurança nacional e controle documental de acesso a mercado de trabalho por imigrações internacionais sob a lógica dos direitos humanos: “A terminologia é importante também, nesse caso. Abandonar o conceito de estrangeiro, que historicamente traz mais vulnerabilidade, pelo de migrante”.

Para Tolipan, os indocumentados são “a grande hipocrisia” das migrações: “O país deixa que eles entrem e trabalhem, não impõe efetivas barreiras porque precisa desse tipo de mão de obra, mas ao mesmo tempo não dá um status legal que lhes permita ter uma carteira de trabalho e reivindicar seus direitos”.

Ele informa que a OAB/RJ encaminhará à Câmara propostas voltadas à prerrogativa do advogado militante na área migratória: “A Ordem está voltada também para a defesa técnica desses estrangeiros. Nos processos administrativos, por exemplo, como deportação, expulsão e devolução quando chegam ao país, não há obrigatoriedade de presença de advogado. Já houve caso de eu não conseguir contato com um cliente por não ser permitida, pela Polícia Federal, sua entrada na área internacional do aeroporto. É preciso mudar esse paradigma, inserir a possibilidade de o imigrante acionar o advogado quando o tiver. Trata-se de defender nossas prerrogativas e, consequentemente, os direitos de nossos clientes”.

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