25/05/2016 - 17:37

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Entre o Direito e a literatura

25/05/2016 - 17:37

Entre o Direito e a literatura

 
Escritores de ficção com formação jurídica falam sobre a experiência de conciliar a liberdade ficcional e a seriedade das leis

 
NÁDIA MENDES
A palavra é um dos principais instrumentos do Direito, já que é por meio da escrita que diariamente o advogado emprega seus conhecimentos jurídicos. Talvez seja essa intimidade que leve muitos operadores do Direito a deixarem as leis um pouco de lado e se expressarem mais livremente por meio da literatura.

É o caso de Marcos Peres, formado em Direito e atualmente servidor público no Tribunal de Justiça do Paraná. Para ele, a literatura sempre foi um escape, uma forma de se expressar, mesmo que de maneira muito íntima. E, no princípio, algo que fazia sem contar a ninguém. Mas o reconhecimento nacional veio logo com o primeiro livro, O Evangelho segundo Hitler (Record), que recebeu, em 2013, o Prêmio Sesc de Literatura para inéditos. Ali, o escape tornou-se também profissão. Para ele, a liberdade é, sem dúvida, a principal diferença entre suas duas atuações. “Quando escrevo tenho liberdade para criar vidas e mundos. Aliás, este é um dos pontos que considero mais fascinante na literatura: a possibilidade de ser livre. De ousar”.

Já no tribunal, a obrigação é a eficiência com os jurisdicionados. “É um trabalho inteiramente balizado, sempre buscando a boa prestação jurisdicional, claro. Da mesma maneira, o advogado é norteado pelas leis, pela realidade fática que lhe é apresentada, pelo ordenamento de uma forma geral”. O dia a dia no tribunal, além de garantir estabilidade, é um observatório de relações humanas. “Conheço problemas, situações inusitadas, histórias. Além de me esforçar sempre para dar uma boa resposta aos jurisdicionados, tento ser um bom observador. Nomes, trejeitos e enredos sempre podem virar fagulhas para novos romances”, exemplifica.

O Direito é, para Peres, uma fonte de situações e relações estritamente humanas. Isso o ajuda muito na hora de escrever. Seu segundo livro, o policial Que fim levou Juliana Klein? (Record), tem algumas abordagens jurídicas. “Questões ligadas à adoção, os limites na investigação do delegado, a realização de um júri sob comoção popular, por exemplo. No fim das contas, o Direito vira uma ‘muleta argumentativa’ para muitos temas que decido tratar”, explica. 

Para Peres, o prêmio foi um divisor de águas e ser laureado logo no início da atividade de escritor, uma situação atípica. “No meu caso, entrei no meio literário com a chancela importante de um prêmio – e sei que isso abriu muitas portas. Neste ponto, digo com toda certeza que a premiação cumpre um importante papel: colocar o autor iniciante no circuito literário. Aconteceu comigo, acontece com muitos outros jovens escritores, todos os anos”.

Já o veterano Nei Lopes completa em 2016 cinco décadas de sua formatura pela Faculdade Nacional de Direito (FND) da UFRJ. O escritor e compositor afirma que seus conhecimentos jurídicos contribuem principalmente na hora de discutir contratos e proteger direitos autorais. “Na criação de minhas obras, tanto literárias quanto litero-musicais, funcionam as evocações sentimentais do meu tempo de solicitador e advogado, quando vivi situações e emoções realmente marcantes”, destaca.

Do período como advogado, Nei não esquece o estresse “motivado pelo conhecido emperramento da máquina judiciária” e também o preconceito sofrido. “Fui discriminado por minha condição de negro, filho de operários e sambista”, lembra, ao recordar que na década de 1970 ser sambista não era considerado algo compatível com o “decoro” da advocacia. Ele conta, ainda, que advogados são personagens em alguns de seus romances. “E é neles que coloco um pouquinho de mim, de colegas próximos e de outros que conheci ao longo da carreira”, diz.
 
Em março deste ano, Nei recebeu o Prêmio Faz Diferença, do jornal O Globo, na categoria Segundo Caderno/Prosa. Ele define como objetivo de sua literatura a afirmação da importância das culturas africanas e afro-originadas, principalmente nos dicionários que escreveu. Em 2015, lançou o Dicionário da História Social do Samba (Civilização Brasileira), elaborado em parceria com o historiador Luiz Antonio Simas, e está concluindo um outro sobre a História da África, com foco entre os séculos 7 e 16. “A correlação de forças entre África e Europa era equilibrada e, muitas vezes, mais favorável aos africanos. É isso que nossos jovens precisam saber e não, como estabelecem os currículos oficiais, estudar exaustivamente o escravismo, assunto causador de traumas e desestímulo escolar. Esta é a minha tese, que eu levo também para a minha literatura ficcional”, defende, ao dizer que é preciso criar autoestima positiva nos jovens estudantes afrodescendentes.

Escritor desde a década de 1980, o compositor já lançou mais de 30 livros, todos centrados na temática africana e afro-originada. Em 2009, a obra História e cultura africana e afro-brasileira (Planeta) foi premiada com o prêmio Jabuti na categoria Didático ou Paradidático. Mesmo afastado da advocacia, Nei Lopes mantém ativa sua inscrição na OAB. “Eu sigo o grande advogado afrodescendente Evaristo de Moraes, o velho, de cujo filho fui aluno em Direito do Trabalho, na FND: Sempre advogado!”, defende.
 
Processos criativos distintos

O romancista e poeta Paulo Scott acredita que advocacia e literatura são “planetas distantes ao extremo”. Ele escreve poesia desde os 12 anos, “desde sempre”, e diz que não houve um momento em que tenha decidido viver só de literatura. “Não encaro essas duas realidades como vagões que se alinham em trilhos. Não há decisão, mas a aceitação do risco”, define o escritor, que não advoga atualmente.

Para ele, não há uma hierarquia de conhecimentos. Todas as experiências e acúmulos ajudam na hora de escrever. “Entendo que escrever bem, ou seja, conseguir algo que preste de verdade, está em outro patamar. No patamar da loucura, da imaginação, das linguagens de caráter zetético. Nada próximo do mero domínio técnico, da mera investigação científica ou filosófica que, como pode acontecer em qualquer outra área do conhecimento, pode se verificar nesse objeto cultural de dominação social e econômica, mas também de emancipação social e econômica que chamamos Direito”.

Scott é autor de cinco livros de poesias. O último, Mesmo sem dinheiro comprei um esqueite novo (Companhia das Letras), venceu em 2014 o prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte – APCA. Ele também lançou cinco livros de prosa, entre eles uma seleta de contos. Sua última obra publicada, o romance O ano em que vivi de literatura (Foz) chegou às livrarias em 2015.

O presidente da Subseção da Barra da Tijuca, Cláudio Carneiro, concorda que é totalmente diverso escrever literatura e uma petição jurídica, embora entenda que o ponto de partida seja o mesmo. Ele lançou em 2015 seu primeiro livro de ficção, Moeda - A verdade oculta (Chiado), em conjunto com o romancista Wellington Pinto. Segundo Cláudio, o processo de produção foi bem mais difícil do que pensava, justamente por essa diferença entre o romance e a obra técnico-jurídica. “A escrita literária carece de inspiração para a elaboração de um roteiro e, a partir disso, o desenvolvimento da obra. Já o advogado, ao elaborar a defesa de uma tese jurídica, necessita pautar-se em uma teoria argumentativa que embase juridicamente a sua linha de atuação no processo. Assim, as diferenças são bem maiores que somente a amplitude da temática abordada. Poderíamos dizer que o processo criativo nos dois casos surge de modo distinto”, defende.

Ele acredita que as duas profissões estão longe de ser incompatíveis. “Escrever um livro me deixou ainda mais motivado para o exercício da advocacia, pois realizei um sonho que estava pendente há cinco anos”. Cláudio define a advocacia como sua maior paixão. “Conciliar a carreira de escritor e advogado, para mim, é um grande prazer. Para dizer a verdade, me sinto um felizardo em poder desfrutar de duas profissões que amo”, diz.

Para ele, todas as experiências anteriores de um autor, sejam profissionais, acadêmicas ou empíricas, são importantes para o desenvolvimento de um livro. “Apesar de ter escrito um romance policial baseado em situações reais pautadas em outras experiências, em alguns momentos o conhecimento técnico-jurídico foi relevante para tornar a escrita mais factível e, sobretudo, crível para o leitor. Aliás, a tônica do livro é entrelaçar a realidade e a ficção, de modo que o leitor se sinta desafiado a tentar descobrir o que é ou não real”, observa Cláudio, que foi capitão da Polícia Militar do Rio de Janeiro.

Também advogado, Carlos Eduardo Novaes destaca que sempre gostou de escrever. “A palavra escrita foi a forma que minha timidez juvenil encontrou para me conectar com o mundo. Na Universidade Federal da Bahia, onde me formei, os textos de minhas provas eram intermináveis. Lembro que, no segundo  ano, fomos visitar uma penitenciária. Escrevi um conto sobre a visita e meu professor de Direito Penal não entendeu o espírito da coisa e me deu nota baixa”, conta o escritor, que tem 43 livros publicados entre romances, crônicas e contos. Sua mais recente obra, ainda não publicada, é Memórias de um cão irado, que narra a história de um vira-latas de três pernas que se envolve com o universo fantástico dos cães de raça e de estimação.

Novaes afirma não ver relação direta entre os conhecimentos de Direito e a atividade de escritor. “Mas o Direito, certamente, me deu uma ampla visão da vida que nenhuma outra carreira me daria. Nunca escrevi qualquer obra apoiada em meus parcos conhecimentos da área. Quando ‘viro’ escritor, esqueço que me formei em Direito”, salienta. Segundo ele, a literatura é mais aberta e mais livre em todos os sentidos, inclusive na linguagem. “Como autor, tenho dificuldade em lidar com a rebuscada linguagem jurídica”, frisa.
 
Instrumento para a literatura

Escritor desde os 12 anos, Raphael Montes sempre se interessou pelos gêneros policial e suspense. Quando teve que escolher uma carreira, optou pelo Direito por acreditar que o conhecimento jurídico o ajudaria em seu trabalho literário. “Minha ideia era ser um criminalista e, na medida em que me aprofundasse no Direito Penal, teria propriedade para escrever as histórias policiais que eu queria”, explica.

Mas, ao ingressar na Uerj, Montes viu que a realidade pode ser até mais surreal que a ficção. “Nesta, há uma exigência de verossimilhança que na realidade, principalmente a se julgar o nosso Processo Penal e nosso Direito Penal, soa quase fantasiosa ou distópica. A realidade quase sufoca a ficção”, observa. Com isso, ele viu que o conhecimento jurídico não o ajudaria da forma que imaginava. “Mas, por outro lado, em termos de organização, de quantidade de leitura, de prática da escrita, de cuidado com a palavra, a faculdade de Direito foi muito útil. E, sem dúvida, conhecer como funciona um processo, principalmente questões relacionadas ao Direito de Família, e até sobre o funcionamento da polícia me ajuda a escrever meus livros”.

Para Montes, a principal diferença entre escrever literatura e redigir uma peça jurídica é que, a priori, o advogado conhece a tese que pretende defender e provar. “Na literatura, é comum que o escritor trate de um assunto que o incomoda ou o interesse naquele momento e só depois, com o trabalho concluído, perceba qual era a tese que estava defendendo e provando”, explica. O trabalho do escritor de literatura, diz, é de convencimento. “O leitor precisa entrar no universo apresentado pelo autor e esquecer todo o resto. Precisa acreditar nos mecanismos, reviravoltas e tramas criadas”.

Montes tem dois livros publicados. Suicidas (Benvirá), sua primeira obra, conta a história de jovens estudantes de Direito na Uerj que fazem uma roleta russa. O romance foi lançado quando ele tinha apenas 17 anos, antes de seu ingresso na Uerj. “O livro foi finalista de um prêmio literário e assim pude publicá-lo. Chamou a atenção dos jurados, já que eu era muito novo e o livro é bastante forte”, observa. O segundo romance, Dias perfeitos (Companhia das Letras), foi escrito enquanto o autor estudava Direito. “O livro saiu seis meses depois da minha formatura e com ele decidi me dedicar somente à escrita. Ambos serão adaptados para o teatro”, conta.

Célebres advogados escritores
Clarice Lispector, Jorge Amado, Fernando Sabino, Ledo Ivo, Rubem Fonseca, Ariano Suassuna, Monteiro Lobato, Lygia Fagundes Teles, José de Alencar, José Lins do Rego
 

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